06
– Pode entrar – disse Aline fracamente.
Ao abrir a porta, Cícero deparou-se com ela deitada em posição fetal na ampla cama, tentando acomodar um exemplar de bolso de Alice no País das Maravilhas nos joelhos.
Antes de entrar, ele lançou um último olhar para a cozinheira, em busca de encorajamento, então deu alguns passos hesitantes. Cícero manteve a porta aberta para que pudesse fugir, caso necessário.
– Ah, é você. – Sua voz denotava dor.
– Consegue ler desse jeito?
– Não. – Ela fechou o livro, colocando-o de lado. – A dor não permite que eu me concentre.
– Parece ser bem chato mesmo. – Ele levantou a mão que estava ocupada. – Aqui. Trouxe uma bolsa térmica.
– Obrigada. – Ela estendeu o braço para apanhá-la, sentindo fisgadas.
Sem jeito, Cícero estudou o quarto. Havia um abajur sobre a cômoda ao lado da cama, e um quadro logo acima. As pétalas cor-de-rosa da gérbera ganhavam destaque contra o delicado tom rosado do papel de parede.
Havia um raque com uma televisão de frente para a cama, próximo à porta do closet. No centro do quarto, um enorme tapete felpudo conduzia até as portas de vidro que davam para a varanda, cobertas por cortinas de tom rosê.
Com uma careta e gemendo de dor, Aline virou-se de barriga para cima, aplicando a compressa sobre o abdômen, por baixo da blusa e permitiu que suas pernas caíssem para fora da cama. Ela fechou os olhos, esperando que o calor fizesse efeito.
A atenção de Cícero recaiu sobre a natureza morta do outro lado. Havia uma penteadeira branca no espaço mais afastado, perto da porta que dava para o banheiro da suíte. Todas as portas encontravam-se entreabertas, permitindo que o ar circulasse pelo ambiente.
Quando o senador voltou a observar Aline, ela estava abraçada a uma almofada.
– É... – começou ele. – Desculpe pela forma como falei com você ontem. Eu estava alterado, frustrado e... Acabei descontando em você.
– Jamais quis te causar problemas, Cícero. – Ela apoiou o antebraço sobre a testa. – Estou aqui apenas para somar, nunca para atrapalhar.
– Eu sei, você não tem culpa. – Ele escorou-se na cômoda. – Meus assessores e eu não temos do que reclamar quanto à sua conduta. Você se mantém afastada de escândalos com maestria, ao contrário de mim, pelo visto. É um verdadeiro exemplo.
Aline abriu os olhos e os fitou nele.
– Desculpe por ter te batido.
Ele assentiu, fazendo um gesto de dispensa.
– Ah, já passou! Agora que estamos entendidos, há um assunto a tratar. Não sei se é o momento mais apropriado, mas...
– Pode falar. – Ela engoliu em seco ao sentir uma pontada. – Eu aguento.
– Não sei nem como começar... Mas vou ser sincero, Aline: ainda preciso de você. Estou planejando deixar o Senado e trocar de cargo, e não fazia ideia de que você queria o divórcio. Achei que teria mais tempo.
– Vai se candidatar a quê?
– A Deputado Estadual. – Ele observou as cortinas ondulando suavemente com a brisa. - Eu preciso que você siga desempenhando o seu papel... Um divórcio pode atrair a atenção indesejada da mídia para esse ponto que queremos disfarçar.
– O que mudou?
– Quero estar mais perto da minha família, entende? Pretendo voltar para São Paulo.
– Entendo... Ô, se entendo. – Ela conteve um suspiro. – Então, deixe-me ver... Depois do episódio da secretária, vai ficar muito feio pra você se a gente se separar, pois vai parecer que é por causa do chifre. Francamente... – Ela revirou os olhos. – Você faz as burradas e eu devo arcar com as consequências.
– Sim, eu mereço ser punido por isso... Mas por favor, não pule fora agora!
Em um instante, Aline estava à beira das lágrimas, deixando Cícero confuso.
– Eu fiz a minha parte... – disse com a voz embargada. – Fiquei quieta em casa, só fui aos eventos que me mandaram... Construí essa personagem reservada, que não se mete em confusão... Enfim, desempenhei o papel que me foi confiado.
– Sim, realmente. – Ele tentou aplacar a situação. – E é por isso que eu preciso que você aguente mais um pouco. Só até eu conseguir me eleger, voltar para São Paulo... – Ele fitou a enorme gérbera no quadro a seu lado, assumindo um ar brincalhão. – Você não me deixaria logo nas nossas bodas de papel, não é?
– Algodão – murmurou ela em resposta, limpando os olhos. – Dois anos são bodas de algodão.
– Viu só?! Não vai nem esperar pelas bodas de ouro?
– E perder cinquenta anos da minha vida com você?
– Também não precisa magoar. Nós fomos tão felizes... – Ele fez um beicinho ressentido, então piscou para ela, zombeteiro. – Prometo que você será recompensada, Aline. Por favor...
Com a dor atenuada, Aline respirou profundamente.
– Espero que não invente de concorrer à presidência, senão estamos ferrados – disse por fim.
– Obrigado pelo apoio! – Ele riu, aliviado. – É reconfortante saber a confiança que você deposita em mim. Mas não, eu não chegaria a tanto. Nunca almejei isso.
Aline cedeu ao riso, para em seguida fazer uma careta.
– Então estamos combinados? – indagou ele, com expectativa.
– Eu vou pensar no assunto... – Ela suspirou. – Mas tem um porém.
– Diga.
– Como alguém que se importa com a família, você devia entender que aquela cláusula que me proíbe de ver a minha, é simplesmente ridícula. Há alguma chance de mudar isso? Vocês poderiam permitir que eu viajasse para visitá-los ao menos uma vez ao ano.
– Tá, vamos ver. Vou conversar com a minha equipe.
E assim, ele saiu, agarrado a esse mísero indício de esperança. Quando Cícero passou pela cozinha, Carla terminava de preparar o cappuccino.
– E aí? Como foi?
– Espero que tudo bem. – Ele fitou a caneca fumegante em sua mão. – Quem sabe esse cappuccino termine de adoçá-la. Dedos cruzados, Carlinha, dedos cruzados!
✨
Cícero jogou com os seguranças e aproveitou para pagar o que estava devendo. À tarde, foi para seu quarto a fim de arrumar a mala e conferir seus pertences. Ele se deteve ao passar pela cozinha.
– Carlinha, eu ia pedir hoje cedo, mas acabei esquecendo. Será que você poderia fazer outro bolo para eu levar?
A cozinheira ocupava-se em fazer alguns doces de baixo teor calórico, para que Aline pudesse comer sem sentir culpa.
– É claro! – Ela voltou-se para ele. – Será que você pode pegar os ingredientes para mim? Eu não posso sair daqui agora.
– É claro! Você é um anjo! – Ele sorriu. – Açúcar, farinha, e o quê mais?
Cícero passou pela porta estreita da despensa, detendo-se ainda na entrada ao deparar-se com uma silhueta. Ele acendeu a luz e viu Aline enrijecer-se, voltando-se para ele de olhos arregalados e com as bochechas tão cheias, que lembravam as de um esquilo. Em suas mãos repousava uma cartela de chocolates belgas.
– Carlinha do céu! – exclamou ele. – Você devia ver o tamanho da ratazana que eu encontrei aqui!
– Parem de implicar, crianças! – gritou ela em resposta.
Cícero cedeu passagem para Aline, rindo, e ela foi acomodar-se no balcão, empenhada em engolir o chocolate. Cícero recolheu os ingredientes e os entregou à Carla, lançando um olhar para Aline por cima do ombro.
– E essa é a mulher da dieta rigorosa... – Ele estalou a língua, meneando a cabeça.
– Deixe-a em paz! – interveio Carla.
– Deixe estar, dona Carla! – disse Aline. – Estão tão contente que ele vai embora amanhã...
– Nossa, como você me faz sentir acolhido! Chega a ser comovente, mal posso esperar para poder voltar...
– Eu espero que demore bastante.
Cícero caminhou até o balcão e debruçou-se sobre ele.
– E aí? Está melhor?
– Estou. – Ela assentiu. – Um chocolatinho ajuda.
Cícero fez menção de pegar um da embalagem, e levou um tapa na mão.
– Ei! "Quem come tudo e não reparte nada, fica com a barriga inchada". Você nunca assistiu Chaves?
– Tá. Pode pegar um, mas só porque eu sou boazinha.
– Sei...
Enquanto degustava seu chocolate, Cícero sugeriu:
– Já que está melhor, o que acha de ir caminhar comigo mais tarde?
– Tudo pela imprensa... – Ela revirou os olhos.
– Sim. Alguns cliques, quem sabe. Eu não garanto nada.
– Eu não sei... – rebateu Aline. – Você coloca chifre na sua esposa, e quer consertar as coisas com uma caminhada?! Você devia levá-la à ópera, jantar num restaurante chique... Fazer algum programa de que ela goste.
– Tomara que a sua personagem goste de caminhadas ao ar livre, porque é para isso que a minha disposição está dando no momento.
– Você vai ter que me pagar uma caixa de bombons. De qualidade. E não vamos andar de mãos dadas, nem nada disso. O que você fez não merece um perdão tão repentino. Aliás, nem sei se merece perdão.
– Nem se for porque eu estava morrendo de saudade de você?
– Se fosse esse o caso, que pegasse um avião e viesse visitar sua esposa, ué. As pessoas não são estepes, Cícero.
– Ê complicação... – Ele soltou o ar pelo nariz. – Tá, eu aceito.
Aline arrastou sua banqueta ruidosamente, recolhendo as embalagens.
– Ah, mais uma coisa. – Seu tom solene fez com que Cícero a encarasse. – Quando você se casar de verdade, não apronte com ela, nem de brincadeira.
– Pode deixar – assegurou ele, igualmente sério.
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Dois capítulos para compensar a falta de um na semana passada.
E se a gente não se encontrar mais este ano, desejo Boas Festas a vocês, princesas lindas! Bjinhos! 😘
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