capítulo três
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1867
Há quanto tempo não tomava um banho? Não sabia dizer. Ainda mais um digno, onde esfregava as sujeiras com calma e paciência, atentando-se aos detalhes até que não sobrasse nada. Aquilo era gostoso. A sensação de limpeza era milagrosa.
Nua, Alika observou sua pele nova. Não havia cicatrizes em lugar nenhum. Ela estava perfeita. Se apaixonou por aquilo, queria mais.
Não havia remorso ou arrependimento em sua mente, mais silenciosa e pacífica do que nunca. Tirara duas vidas em um espaço curto de tempo, no entanto, não era assombrada por seus fantasmas. Eles estavam no inferno, onde era seu lugar de direito. Alika nunca se arrependeria de mandá-los para lá, eles estragaram qualquer coisa boa que pudesse existir dentro dela.
Afundou o corpo na banheira e não fazia diferença se a água estava fria ou quente. Nada mais a afetava. Nada nunca mais a afetaria.
Ouviu-se uma porta se abrindo e emergiu, olhando na direção de sua visita. Era uma mulher de traços indígenas e vestes polidas — Alika gostava cada vez mais de Maria — e trazia consigo roupas limpas e uma toalha.
Todos ali tinham olhos vermelhos? Ela se perguntou, estreitando os seus.
— Maria deseja conversar com a senhorita. — Informou a estranha, sem se retirar em seguida. Alika a encarou com desconfiança. — A senhorita não vai se levantar? Precisa de ajuda para se vestir.
Ela não respondeu, no entanto, obedeceu. Já foi vestida por outras pessoas algumas vezes e não costumava ser coisa boa em seu histórico. Mas ela não teve medo. Sua curiosidade superaria qualquer barreira que viesse a surgir. O que ela era agora? Era mesmo um demônio que se alimenta do sangue de homens? Tinha tantas perguntas. Esperava poder respondê-las.
— Qual seu nome? — ela perguntou lentamente para a estranha que abotoava seu vestido e puxava seu corpete.
— Aiyana.
Alika abriu um sorriso muito pequeno. Quase imperceptível em seus lábios carnudos.
— É um nome muito bonito.
A outra lhe retribuiu o sorriso. Alika demorou para perceber que ela não piscava nem um segundo que fosse.
— O da senhorita também, senhorita Alika.
A mulher se concentrou em sua audição perfeita. Não podia ouvir quase nada além dos detalhes da natureza, o vento fazendo a casa ranger e ocasionais insetos batendo contra as paredes. Fora isso, o silêncio reinava. Seria seguro perguntar agora? Apenas me tire uma dúvida. Uma que seja, ela pensou.
Mas não perguntou e seguiu Aiyana quando chamada.
Conforme caminhava, percebia como a residência era impessoal. Não havia decoração, flores ou retratos. A casa era limpa, ainda que o aspecto de abandono não favorecesse tal visão. De tantas indagações, a mais frequente era: por quê?
Alika foi levada para uma sala de chá, onde usualmente apenas mulheres eram permitidas, e lá estava o loiro chamado Jasper, parado ao lado de Maria como seu fiel escudeiro. Tinha algo nele que mexia com Alika e ela não identificava se era de um jeito bom ou ruim. Já tivera o bastante de homens por uma vida, pensara. E jamais se apaixonaria por outro branco.
— Minha menina — Maria a cumprimentou com um sorriso doce e apontou o sofá à sua frente. — Por favor, sente-se. Temos muito o que conversar.
Obediente, Alika tomou seu lugar com a maior delicadeza possível, ajeitando a saia de seu vestido rosa. Gostava muito daquela cor e não tinha a visto muitas vezes. Queria perguntar se poderia manter o vestido para si, mas não podia soar indelicada ou desrespeitosa.
— Imagino eu que tenha muitas perguntas — Maria começou. Silêncio. Alika não entendera que aquela era uma abertura para que ela falasse. Não costumavam querer ouvi-la.
Felizmente, Maria tinha paciência.
— Não tem?
— Sim, senhora. — Alika assentiu, mantendo os olhos baixos. — Só não sei se devo perguntar. Há algo que eu não possa saber?
— Só há um jeito de descobrir, querida, e, por favor, olhe para mim enquanto conversamos. Não me diverte me sentir ignorada.
Alika concentrou os olhos nos de sua salvadora.
— Sinto muito, senhora.
— Não se preocupe. Pode perguntar.
Alika tomou um momento para escolher uma de suas muitas perguntas.
— Ainda sou uma escrava?
Maria suspirou e acenou com a mão delicada em sinal de descaso.
— Eu não possuo escravos, criança, possuo aliados.
— Aliados...?
— Todos temos praticamente a mesma força quando nos transformamos. Não tem como forçar um de nós a ser escravo a menos que seja o nosso desejo — Maria se inclinou em sua direção com um riso a caminho dos seus lábios pintados.
— Quando nos transformamos no quê?
Maria trocou olhares com a indígena, Aiyana. Elas compartilharam de uma piada interna.
— Em demônios. Deuses. Sugadores de sangue. Vampiros. Como preferir denominar.
Vampiros, que palavra era aquela? Alika ficava cada vez mais confusa.
— Estou morta?
— Sim — a resposta veio sem hesitação. — Para todo o sempre.
Ela olhou para a própria mão, examinando-a.
— Isso é real? Estou no inferno por matar aqueles brancos?
— Inferno é relativo, e pode ser que este seja o seu, nunca se sabe! Para mim, é o verdadeiro paraíso — Maria se encostou em sua poltrona e cruzou as pernas. Ela estava mais do que confortável com sua posição e seus... poderes? Poderiam ser denominados assim? Imediatamente, Alika queria ver o que tinha de especial com a sua transformação. Sabia que estava mais rápida graças a forma como atacou o homem acorrentado mais cedo.
Muito, muito mais rápida. Sentia que não havia nada mais rápido do que ela.
— Se é o paraíso da senhora... por que escolheu compartilhá-lo comigo? — ela perguntou em voz baixa, tímida. O sorriso desapareceu do rosto de Maria sem deixá-lo feio, apenas sereno. Ela suspirou e virou o rosto para a janela à sua direita. Era perfeita a todo momento, ainda mais quando divagava assim.
— Deixem-nos a sós — ela desejou subitamente. Aiyana não discutiu, abaixou a cabeça e se retirou em um sopro. Jasper já parecia pronto para bater o pé.
— Maria.
— Isso inclui o senhor, caso eu não tenha sido clara. — A mulher determinou, sem olhá-lo. Irritado, o olhar de Jasper encontrou-se com o de Alika e ela entendeu que qualquer deslize de sua parte faria com que o loiro viesse ceifar a sua vida recém adquirida.
Dentre tantas anormalidades acontecendo, a ex-escrava se sentia mais impressionada com as coisas mais humanas que sua salvadora fazia. Seus olhos vermelhos e sua força capaz de tirar um homem do chão não eram tão impressionantes quanto a sua capacidade de fazer com que um homem cedesse aos seus desejos. Com raiva, sim, mas cedendo.
Quando elas ficaram sozinhas, Alika sentiu o mais puro terror em seu coração morto. Maria era claramente a dona de tudo e todos ali, ainda que de forma discreta. Ela emanava poder além do sobrenatural. Era uma líder que nasceu para ser líder. Alika tinha medo de pessoas competentes e confiantes. Maria era isso e muito mais.
Ela se levantou e caminhou até a janela, sem pressa, as mãos entrelaçadas nas costas. Demonstrou mais uma vez a confiança de quem sabia que não corria nenhum perigo. Alika a admirava muito por isso, embora olhasse ao redor a procura de coisas afiadas para se proteger caso necessário.
Será que estaria mais rápida do que Maria?
— Compartilhar esse mundo com alguém me parece mesmo uma benção difícil de ser entregue a qualquer um. Contudo... eu vi potencial na senhorita no momento em que coloquei os meus olhos em você. — Ela começou, mexendo na cortina e mirando o horizonte. Alika queria saber como poderia se aproximar daquele abridor de cartas na mesa de centro sem causar alarde e se inclinou para frente devagar. — Eu não costumo errar quanto as minhas escolhas e talvez seja o meu talento... descobrir os outros. Jasper e Aiyana são provas disso. Se surpreenderia com o que eles podem fazer quando instigados.
Maria se virou e Alika ajeitou a postura imediatamente, escondendo o abridor de cartas sob a saia.
— O que a senhora viu em mim? — ela fingiu naturalidade, entrelaçando os dedos sobre o seu colo. Maria sorriu e se aproximou. Seus olhos não entregavam nada além de cobiça. Era uma cobiça bem diferente do que a que Alika estava habituada, mas estava ali.
— Vejo muitas coisas além da senhorita, coisas das quais nem deve fazer ideia do que significam. Se fizesse, jamais teria sido uma escrava em sua vida e jamais teria aceitado a minha ajuda. — Maria se sentou com Alika, que franziu o cenho.
— O que quer dizer?
Maria não respondeu a princípio. Apenas aproximou sua mão do rosto de Alika e correu os dedos pela sua bochecha. Alika ficou parada, sem ter noção do que aquele toque poderia significar.
— Eu quero dizer — Maria sussurrou de um jeito hipnótico, seus olhos tinham um brilho malicioso e cativante. Havia algo nela que não impressionaria Alika? — Que se eu estiver certa sobre a senhorita também... — seu sorriso cresceu, exibindo dentes afiados. — Você será um dos meus maiores tesouros.
Ela segurou o queixo de Alika em um aperto firme.
— E Deus sabe como espero que não me desaponte. — Ela se aproximou mais, de um jeito que daria a entender que tentaria dar um beijo na outra, cujos pensamentos disparavam rapidamente em todas as direções sobre o que fazer. — Tem que saber mais uma coisa, querida: eu não gosto de ser desapontada.
A profundidade do buraco no qual estava enfiada era desconhecida. Estava escuro e as correntes ainda existiam, um pouco mais escondidas. Alika tinha certeza de duas coisas. A primeira: ela ainda era uma escrava. A segunda: ela também não gostaria de desapontar Maria.
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