capítulo nove
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1867
O Texas não era a casa dela, era a sua prisão. Fora obrigada a ficar naquele canto terrível por tempo demais, mas não mais. Deixar tudo aquilo para trás a fazia introspectiva e Jasper a observava por cima do ombro de uma distância segura enquanto a cacheada olhava para trás sem parar. Enquanto a maioria carregava ao menos uma mala ou uma muda de roupas, ela seguia o fluxo com as mãos abanando.
Estava acostumada a não ter nada.
— Sentirá falta de algo, senhorita? — ela sentiu a aproximação de Daktari antes de vê-lo. Virou-se e continuou andando, deixando a casa grande em que morrera no passado.
— Pelo contrário.
Eles andavam atrás dos brancos, mas Alika não se incomodava com aquilo. Alguns vampiros mais à frente brincavam entre si. Muitos casais flertavam indiscretamente e ela não queria ficar perto daquela áurea sacana. Aiyana e Hali eram os últimos da fila. Maria liderava o grupo dentro de uma carruagem, com dois recém-criados a puxando ao invés de cavalos.
— Então a mudança lhe fará bem — Daktari prosseguiu. Era um homem grande e charmoso, mas Alika não estava prestando atenção nisso, embora, definitivamente, não pudesse ignorar. — Me senti muito melhor quando abandonei o lugar que me aprisionava há bons anos, com a ajuda, é claro, de Maria. Nasci na senzala, mas felizmente não morrerei em uma.
Alika abriu um sorriso pequeno, porque era bom ouvir a certeza transparecendo no seu tom de voz. Ela nunca mais voltaria para aquilo. Tinha algo mais libertador?
— Foi há muito tempo que o senhor se transformou? Se me permitir perguntar.
Daktari hesitou, olhando para o chão com seus olhos vermelhos.
— Quando seu pai nasceu, eu já empurrava mais carroças que muitos bois e cavalos. Os brancos pisavam em mim e me fizeram matar muitos de meus irmãos para seu entretenimento. Eles agiam como se fosse algo do qual eu devesse me orgulhar, mas eu sempre soube... — Houve uma pausa. O silêncio era pesado. Alika pensou nas mulheres que matou quando não podia se controlar devida a sede vampírica. Não podia imaginar ser obrigada a fazer aquilo para a alegria de alguém.
Ela pensou, também, em dizer que sentia muito pelas dores passadas, mas sabia que elas não desfariam nada. Essas palavras tolas só ajudavam os brancos quando eles perdiam um dos seus cavalos para uma doença ou acidente. Eram só com essas coisas que eles se importavam.
— Não sinto falta de ser tratado como um animal. Eu não sou um animal. — Daktari ergueu o queixo. — Levei anos para me adaptar com o fato de que nós não somos diferentes uns dos outros, independentemente da cor de nossa pele.
Alguns vampiros olharam para trás com zombaria e riram entre si, gesto este que Alika e Daktari preferiram ignorar. O homem mudou o idioma para que os ouvintes não atrapalhassem mais sua conversa.
— Exceto esses idiotas.
Alika segurou o riso. Sabia que Maria era a única que os entendia, e achava a audácia dele impressionante de insultar os soldados dela dessa forma, mas aparentemente não haveria retaliações, pois ele não se preocupava.
Seu vestido varria o chão e seus pés descalços não se incomodavam com a dureza do solo. Será que se mudariam para um lugar com mais vida? Ela rezava para que sim. Tinha um sonho de passar por um jardim coberto de flores, talvez com um rio bonito por perto. Queria conhecer uma floresta grande que seu pai dizia conhecer. Ela começou a querer tantas coisas.
— Não nasci uma escrava. Eu nasci livre. — Ela confessou para ele, mantendo o idioma estrangeiro e irreconhecível para os outros. — Eles me tiraram isso. — Apontou com o queixo para os brancos como um todo. Não foram aqueles exatamente, mas Daktari entendia. — Invadiram minha vila, mataram soldados, queimaram as casas, me separaram de meu pai e dos meus irmãos. Eu era livre até os meus dez anos...
Ela queria continuar, mas não se sentia tão certa se se considerava livre novamente. Também não sabia se iria querer ir embora. Sentia-se bem ao lado de Maria, ainda que como uma subordinada. Ela era uma branca diferente das outras e Alika tinha certeza de que não encontraria outra assim. Nunca nenhuma a tinha abraçado com Maria abraçou.
— A senhorita se lembra do seu pai ou dos seus irmãos?
— Pouca coisa. Parece-me que os meus dez anos foram há mil anos — ela sorriu amarelo. Daktari sorriu de volta.
— O tempo passa diferente para nós. — Ele apontou para o seu peito e depois para a mulher ao seu lado. — Bem mais devagar. Acha que sua família ainda está viva?
— Prefiro imaginar que não estão — ela respondeu, quase que automaticamente. Já lhe perguntaram isso muitas vezes antes. A maioria só queria saber se seus irmãos eram fortes para poderem compra-los.
Daktari hesitou mais uma vez.
— Eu entendo. A morte é muito mais bonita do que a escravidão. Porém, se estivessem vivos, a senhorita poderia...
— Daktari, por que não vem me fazer companhia? — Maria interrompeu, mas era tarde. A ideia já havia contaminado a mente de Alika como uma praga e Jasper olhou para ela quando uma chama de esperança a acendeu.
Ela agora podia fazer qualquer coisa e com certeza poderia encontrar sua família de novo, se eles estivessem vivos. Ela podia lutar de volta. Ela podia encontrá-los! Mas, para isso, precisava primeiro aprender a ter autocontrole. O que faria se conseguisse vê-los de novo? Será que acabaria os matando, como matou suas amigas? Não podia arriscar, teria que dar um fim à própria vida se ferisse as pessoas que mais amou. Ficou tão imersa em pensamentos que não percebeu que Jasper tomara o lugar de Daktari ao seu lado. Só que ignorá-lo não era ideal.
Alika encarou o perfil do loiro e pensou novamente no quanto ele era bonito, apesar de aterrorizante com suas cicatrizes. O mais bonito dos homens. Uma pena que, ainda assim, fosse igual a todos os outros por dentro. Ela olhou para frente e não se incomodou com a companhia quieta dele.
Só não imaginava que ele fosse querer interrogá-la.
— Por que a senhorita ficou tão esperançosa, de repente?
Como era possível para ela se esquecer do que lhe foi avisado sobre ele? Ele lia as emoções dos outros. A esta altura, Alika não devia ser cética quanto ao que lhe dizem. Não esquecia quando ele a deixou com tanto medo que ela poderia acabar chorando, se ainda fosse capaz.
— Bobagens, senhor. — Ela tentou desconversar.
— Costuma se excitar com bobagens?
Ela ficou quieta e ele parou de andar, segurando-a pelo braço enquanto os outros continuavam. Logo, os dois eram os últimos da fila, esquecidos e ignorados como poeira deixada para trás.
— Sei que tem um talento perigoso — ele sussurra, aproximando-se dela de um jeito intimidador. — Mas se eu sentir o mínimo que seja que a senhorita é uma ameaça para mim ou para Maria, eu a matarei. Não importa quanto tempo leve. Saiba que eu sou muito bom com isso.
Alika sentiu uma pontada de raiva em seu coração morto. Já passara o tempo em que um branco lhe diria o que fazer e ela se desprendeu dessa obediência agora mesmo. Ela não os temeria nunca mais. Se enchendo com a audácia que extraiu de Daktari, ela fulminou o loiro com o olhar, erguendo o queixo como uma mulher teimosa que não pudera ser antes.
Ele estava certo. Ela tinha um talento perigoso e o usaria em seu favor, quando necessário.
— Tire as mãos de mim — exigiu em uma voz baixa, entredentes, para garantir que ninguém além de Jasper escutaria sua afronta perigosa. Ele ainda era o amante de Maria. Sentiu muito medo enquanto se arriscava dessa forma, mas não recuou. O canto dos lábios de Jasper subiu e ele olhou-a tão profundamente que o corpo de Alika não soube como reagir. Só tinha certeza de que estava tensa. Muito tensa.
Ele a soltou e o alívio a contaminou com tanta intensidade que ela quase desconfiou de que ele estivesse a provocando. Alika obrigou suas pernas duras a se moverem e o loiro a seguiu como uma sombra ou um demônio obsessor. Ela não conseguia deixar de pensar que ele estava de olho nela e não teria sua atenção desviada por muito e muito tempo.
[...]
Eles se moveram durante a noite e se esconderam do sol durante o dia. Invadiram uma propriedade a vários quilômetros de distância da sua última residência, matando os moradores adormecidos em poucos minutos.
A casa era mais humilde e estreita e Alika achou uma tortura passar por aqueles que estavam se alimentando dos moradores sem brigar para conseguir alguma gota de sangue fresco. Autocontrole, ela pensou, virando o rosto. Você precisa de autocontrole.
Por muito pouco não deu meia volta e eles foram obrigados a se reunir na sala de estar, que mal cabiam todos. Alika preferiu, como estava virando costume, ficar perto de Aiyana, Hali e Daktari. Infelizmente, Jasper também ficava muito perto deles.
Os dois trocaram olhares breves, tentando não se estrangular. Alika cerrou os dentes e se concentrou em Maria à sua frente. Talvez Jasper tenha provocado um pouco mais a sua impaciência, mas este era um detalhe.
— Sei que os senhores e as senhoritas sabem que estamos nos mudando. Nossa viagem durará mais do que um dia, portanto, sejam pacientes com nossas estadias provisórias. — Maria começou, confiante e decidida. — Vamos abater uma ameaça em Arkansas em poucas semanas, depois de nos estabelecermos em uma casa com lugar o suficiente para todos nós. Lhes prometo um futuro confortável, pois agora moraremos bem mais perto da cidade grande. Preparem-se para verdadeiros banquetes.
Ela sorriu quando seus soldados comemoraram em aprovação. Ignorando aquela alegria, Alika olhou para baixo, pensativa. Quantos escravos será que eles mataram pelas costas de Maria? Quantos inocentes? Ela não queria fazer aquilo. Se fosse para matar, que fossem homens culpados... a que ponto tinha chegado? Estava a fim de decidir quem machucaria. Ela conseguia explodir um celeiro com a força da mente, por que não conseguiria escolher?
Enchendo-se de remorso, ela voltou no tempo mais uma vez. Por que sequer hesitara em atacar suas amigas? Seus gritos ecoaram na sua cabeça e ela fechou os olhos vermelhos. Tão profundamente vermelhos que não tinha como comparar com outra coisa se não com o sangue de inocentes.
Ela não se controlou. Ela tinha que aprender a se controlar se fosse procurar por sua família... como e quando? Não imaginava.
Jasper olhou para ela de rabo de olho e cruzou os braços. Ele entendia aquela culpa irradiando da cacheada, sentia ela nos outros e em si. Estava cercado por ela, pois ela o devorava todo santo dia.
Seu dom era a sua maldição. Ele não sabia por que o tinha, não fazia ideia de onde vinha aquela empatia que o obrigava a sentir tudo o tempo todo. Talvez fosse uma punição divina. Era insuportável ter que lidar com as dores dos outros e ele só queria poder se desligar daquela sensação que o causava tanta agonia. Serviria bastante já não ter que lidar com ela quando tirava uma vida. Sentia a dor de suas vítimas em sua própria pele, como se estivesse arrancando pedaços da sua carne com os dentes.
Entendia a náusea de Alika e, insuportavelmente, sentira pena dela por isso.
Ele bufou.
— Seus sentimentos estão me incomodando. — Ele disse, aproximando-se dela e tirando Hali do caminho. Queria acabar com o problema pela raiz e seu dom funcionava melhor quando ele tinha um contato direto com o outro.
Alika o olhou confusa e Jasper colocou as mãos em seu rosto, tomando conta de praticamente toda a visão que ela tinha do resto do cômodo. A mulher ficou tão chocada com a atitude inusitada que nem se moveu, entreabrindo os lábios carnudos. O loiro a olhou nos olhos e acalentou sua ansiedade em um passe de mágica. Ela foi contagiada pela calma dele e seu semblante se suavizou.
Sequer se dera conta de que havia franzido tanto a testa.
Seu reflexo se refletia nos olhos do loiro e ele tirou as mãos de seu rosto, deixando-as cair. Ela não sabia o que falar. O que aquilo significava? Por que os sentimentos dela o incomodavam? Ela não estava sendo dramática e estava um tanto longe dele.
Ele a mediu de cima a baixo, ajeitou os ombros e voltou para sua posição anterior. Alika olhou para frente e Maria estava a encarando fixamente por cima dos ombros de seus soldados. Não significou nada demais. Não tinha motivo para ela a encarar daquele jeito. Com um sorriso duro no rosto, os olhos de Maria investigaram brevemente seu amante, mas ele parecia tranquilo. Não provocara seu ciúme possessivo propositalmente.
Não.... ele nunca pensaria em fazer uma coisa dessas...
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