Capítulo 𝐬𝐞𝐠𝐮𝐧𝐝𝐨
Seul, 2021
Lisa mordiscou o pirulito rosa com um falso gosto de morango e suspirou, ainda com os olhos voltados para o céu. Seus olhos estavam secos e sua cabeça doía, mas, mesmo assim, não conseguia parar de maquinar sobre aquela coisa.
Tudo o que sabia sobre portais era o que vira em filmes e séries de TV. O que sairia de dentro daquela coisa? Perguntou a si mesma várias vezes, incapaz de chegar a uma conclusão plausível.
Por outro lado, o seu dia havia sido muito diferente do que esperava, pois, por conta do fenômeno desconhecido no céu, as crianças estavam na rua sendo atraídas para a doceria em busca de açúcar. Agora, enquanto discutiam sobre o que estava acontecendo, elas se amontoavam na calçada do outro lado da rua.
— Ei! — Lisa gritou e, em seguida, deu-lhes um breve aceno. — O que vocês acham que é aquilo?
Dois garotos olharam para ela e sorriram.
— Eu acho que é por onde os alienígenas entram no nosso mundo — disse um deles. — E você, Lisa?
— Hummm — ela murmurou, torcendo os lábios, pensativa. — Concordo com você.
Quando todos os garotos riram, Lisa entrou de volta na doceria e ligou a TV no noticiário, querendo ter mais informações.
— Hoje pela manhã, algo estranho foi avistado no céu da capital — anunciou a apresentadora, referindo-se a um vídeo amador da nuvem cinza transmitido no telão. — Espectadores nos mandaram registros desse fenômeno bizarro que assusta os moradores de Seul.
Lisa balançou a cabeça.
— Cientistas ainda estão tentando descobrir o que é ou, pelo menos, chegar a uma conclusão, mas parece que seus esforços estão sendo em vão — repetiu a apresentadora. — Seja o que for, é bom começarmos a nos preparar para o pior.
Isso não era nenhum pouco reconfortante.
Lisa supôs que se algo de ruim fosse acontecer, precisava estar em casa com seu pai. Às pressas, fechou as portas da doceria e correu pela calçada fazendo o trajeto de volta para casa.
— Pai! — gritou assim que entrou em casa. — Pai, eu cheguei!
— Aqui em cima! — gritou ele de volta, dando um certo alívio ao coração de Lisa.
— Eu vi no noticiário — começou ela, subindo os degraus rapidamente —, parece que ninguém sabe o que é aquela coisa.
Assim que chegou ao quarto, avistou seu pai em pé em frente a janela com um binóculo colado aos olhos. Lisa lembrava do quanto sua mãe odiava aquilo.
— A mamãe te acertaria um peteleco se o visse com essa coisa — disse ela, com um sorriso.
Lisa tinha poucas lembranças da mãe, somente algumas específicas ficaram armazenadas, portanto, se fechasse os olhos e se concentrasse, talvez conseguisse se lembrar de mais. O tempo havia sido cruel com ela e roubara suas memórias especiais que mantinham sua mãe por perto.
— Ela iria tentar descobrir o que é aquilo — rebateu seu pai, ainda concentrado naquela coisa. — Ela disse que, um dia, o carma voltaria ao mundo como uma tempestade furiosa.
Lisa sorriu.
— É uma boa metáfora, pai.
— Você acha? — ele olhou para ela. — Sua mãe acreditava em muitas coisas, querida.
— E tudo nunca passou de fantasia — disse Lisa, resignada. — As pessoas lá fora estão dizendo ser o fim do mundo, eu só acho que é um furacão.
— Talvez... — murmurou seu pai. — Seja o que for, não é normal. Eu nunca vi nuvens assim antes, Lisa, pode ser qualquer coisa e é justamente isso que assusta. — Os olhos de seu pai tornaram-se ainda mais escuros com a sombra que pairou sobre eles. — Essa pode ser a causa do mormaço e da falta de energia. Como estavam as coisas na doceria?
— Bom, a TV estava funcionando, mas as geladeiras não — respondeu.
— Talvez não tenha energia o suficiente para todos os eletrônicos.
Lisa balançou a cabeça, lembrando da sensação de estática que tivera enquanto estava a caminho do trabalho. Foi como um estado de despersonalização, sua percepção de tempo mudara por alguns instantes.
Quando trocou olhares com o pai, Lisa ouviu um estrondo e o chão sob seus pés tremeu, então olhou para a porta, ouvindo sua própria pulsação nos ouvidos, desejando que aquele barulho tivesse sido um trovão.
Num gesto silencioso, seu pai, que parecia atordoado demais para utilizar palavras, pediu que a filha ficasse ali enquanto ele olharia o que acontecera no outro cômodo da casa. Com um aceno trêmulo, ela concordou e permaneceu no chão, encolhida e apavorada.
Mas ao erguer o rosto para verificar o estrago feito, seu corpo congelou. Alguém estava parado a menos de dois metros de distância; silhueta esguia, olhar mortal e uma energia cruel que fez Lalisa ficar com o fôlego preso na garganta.
Era, de forma impossível de explicar, ela mesma. Era como olhar para si mesma através do espelho.
&
Lalisa sabia que sua chegada poderia chamar a atenção de curiosos. Viajar por portais, quebrar as barreiras entre as dimensões poderia ser catastrófico, principalmente ao que estava relacionado a sua própria linha temporal.
Ao olhar pela janela, conseguiu ver a nuvem nimbos sobrevoando o céu. Ela tinha um brilho azul característico, uma névoa resplandescente originada do caos da travessia entre dimensões que atraíra a atenção das pessoas.
— Q-quem é você? — Ouviu alguém perguntar.
Estivera tão distraída com a paisagem que esquecera seu verdadeiro propósito.
Lisa.
A garota estava encolhida no canto do que poderia ser denominado como quarto — tinha uma cama pequena, uma escrivaninha e um tapete felpudo que cobria quase todo o chão. As pernas da garota estavam dobradas próximo ao peito e um lampejo de pavor atravessava seu rosto toda vez que seus olhos pousavam em Lalisa.
— Não me reconhece? — perguntou. — Eu sou você.
Lisa balançou a cabeça.
— N-não...
Isso era tão comum que chegava a ser repulsivo. Todas tinham a mesma reação, o mesmo olhar cheio de espanto como se tivessem passado horas ensaiado tais expressões e Lalisa as odiava porque também pertenciam a ela.
A morte de Lisa era o preço a ser pago.
Porque não deve existir duas rainhas em um mesmo tabuleiro.
— Ouça — disse Lalisa, aproximando-se da garota. — Você sabe, lá no fundo, que eu estava vindo. Você sabe porque estou aqui.
— Você... Você veio me matar? — perguntou a garota com o choro entalado na garganta. — De onde você veio?!
Lalisa ajoelhou-se em frente a ela e suspirou.
— Prometo que vai ser rápido — murmurou, estudando as lágrimas da garota. — É por isso que deve morrer. É fraca.
Com a ponta do dedo indicador, deixou que uma pequena lágrima pingasse sobre sua pele. Pequena e cristalina. Repleta de horror.
— N-não — murmurou Lisa, estremecendo.
Lalisa retirou do bolso um pequeno punhal de lâmina prateada e o aproximou do rosto de Lisa, mirando com cuidado a carótida. Podia ver o coração pulsando por baixo da pele. O suor acumulado na testa. Cada gotícula de puro pânico.
— É por uma boa causa, Lisa — assegurou. A garota deveria saber que sua morte teria algum valor. — Feche os olhos.
Lisa obedeceu e apertou as pálpebras.
Seu rosto ficou tenso, os lábios presos em uma linha reta e firme, o tremor insistente que castigava cada membro de seu corpo estava começando a deixar Lalisa nervosa. Nunca era fácil tirar a vida de alguém — a própria vida. Mas imagine só um mundo com centenas de dimensões paralelas com inúmeras versões de si mesma vivendo sem ter a mínima noção do que acontece bem acima de suas cabeças? E pior, a existência delas culminando para um fim terrível.
Lalisa estava a um suspiro de acabar com tudo aquilo e não voltaria atrás.
Sua dimensão dependia disso. De seu sucesso.
O portal ainda vibrava atrás dela, iluminando todo o pequeno comodo e numa contagem de trés, ela passou a lâmina do punhal de um lado ao outro na garganta de Lisa. Ignorou os sons grotescos que a garota fez, debatendo-se em desespero enquanto a vida abandonava seu olhar.
— Está acabado — disse ela, colocando-se em pé.
Limpou o punhal na bainha da camiseta e girou sobre os calcanhares, para o portal que diminuía gradualmente até tornar-se uma fina fissura flutuante no ar. Lalisa se aproximou, com as sobrancelhas unidas, tentando entender o que estava acontecendo e então um ruído lhe chamou a atenção.
O corpo de Lisa começava a se dissolver como poeira. Pequeninos grãos iridescentes rodopiando sobre o chão até desaparecerem completamente e então, um estrondo contra a porta e um rosto masculino e pálido surgiu através dela.
— Lisa, você está bem? — O homem estava ofegante e quando percebeu que algo estava diferente, a expressão em seu rosto tornou-se confusa. — Que roupas são essas?
Lalisa meneou a cabeça, sentindo um nó contrair seu estômago, estranhando o sentimento de familiaridade. Olhou para onde deveria estar o corpo de Lisa e depois, para onde antes existia um portal azul e brilhante. Tudo tinha desaparecido e agora ela estava presa naquele mundo.
Para sempre.
Nota da autora:
Olá, eu sou a Clove.
Tenho 23 anos, sou historiadora e escrever para mim é um sinônimo de liberdade.
Conheço o FU há um bom tempo e já participei de uma collab no passado, mas sempre é bom retornar às raízes.
por: clove_ris
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