Supermassive Black Hole
A pressão em minha cabeça empurrou-me de volta para o mundo real com a delicadeza de um coice – indiscutivelmente potente e insuportavelmente incômodo. Resmunguei com o porejar interminável do meu cérebro, como se estivesse prestes a estourar. Massageei as têmporas com uma técnica antiga que Lyana ensinou há anos que atenuava os sintomas da enxaqueca, uma fórmula bastante funcional e eficaz. Sem ter um espelho ao meu alcance poderia facilmente deduzir que minha fisionomia atual – descabelada e amassada – lembrava um doente na sua mais deplorável condição.
Sentei-me mais lúcida, esquadrinhando o aposento em uma inspeção rigorosa, puxando no meu arquivo de memórias quando e como cheguei ali. Ressurgindo das áreas mais desordenadas da minha mente, pequenos e vagamente desconexos flashes esclareceram minhas dúvidas e, por instinto, tratei de procurar por Vergil – identificando e recordando o local e nossa missão. Minhas pernas vacilaram nos primeiros testes de estabilidade, derrubando-me a cada passo mais elaborado ou exigente demais, obrigando-me a usar os móveis como apoio enquanto locomovia-me pelo espaço modesto. Encontrei comprimidos sobre o pequeno balcão e comida pronta para ser consumida, algo que certamente Vergil organizou ali – uma atitude nobre e generosa.
Comi com as mãos trêmulas e ainda grogue com o despertar compulsório e com a desorientação mental que, lentamente, fora desvanecendo. Terminado minha refeição, vasculhei meus pertences em busca do cartão do Joel para certificar-me que tinha guardado para o caso de uma necessidade. Cogitei ligar para ele, mas não achei que seria um bom momento – por hora. Arrastei-me de volta para a maciez e conforto da cama, pensando na vida – ou o que ainda tinha para viver.
Não sei ao certo o quanto dormi ou o instante que cai no sono, porém o descanso extra fez com que ficasse revigorada. Expulsando a preguiça, tomei banho e comi o que tinha, por fim, resolvi andar por aí para explorar o novo ambiente. Peguei Blood – como uma parte fundamental de uma pessoa segura e bem preparada – e parti hotel à fora, com as ruas praticamente desertas e estranhamente frias com um nevoeiro baixo soprado de algum lugar. A cidade de Grayson era composta por prédios, em sua maioria reunidos nos centros, casas e estabelecimentos de comércio aparentemente bastante promissor e lucrativo já que o intenso fluxo de pessoas se acumulava por aquele meio em dias normais.
Ouvi um choro nas proximidades, bastante alto e nem um pouco discreto – a julgar pelo volume e a desafinação, seria uma criança. Averiguei a rua e vi uma garotinha encostada na parede de uma loja de artigos femininos, ora esfregando os olhos, ora limpando o nariz com a manga da blusa rosa, fungando sem parar. Ela olhava todos que passavam perto como se estivesse procurando alguém, mas com medo de sair dali. Aproximei da pequena e ela ergueu a cabeça, o que acentuava a gritante diferença de altura. Abaixei para poder falar com ela cara a cara.
– Está perdida, pequena? Perdeu-se da sua mamãe?
A menina acenou positivamente e voltou a chorar.
– Tudo bem, tudo bem – consolei, tocando sua cabeça. – Vou te ajudar a achá-la.
Segurei a mãozinha dela, guiando-a pela multidão. E pelo que pareceu horas – de busca enfadonha –, encontramos uma jovem mulher, aturdida e frenética, que a criança identificou. Expliquei para a mãe desesperada o que tinha acontecido e ela agradeceu inúmeras vezes por ter amparado a filha.
– Agradeça, querida – a mãe incitou cordialmente.
– Obrigada.
Sorri amavelmente, observando-as ir embora. A cena, por alguma razão, causou um aperto de desalento em meu peito – como se, mesmo sem possuir recordação ou algo do gênero, experimentasse uma sensação inexplicável de dessabor e angústia.
As vezes queria entender a natureza íntima de alguns sentimentos meus e o porquê deles existirem e surgirem algumas ocasiões.
Chacoalhei a cabeça e espalmei as bochechas, resolvendo voltar para o hotel e esperar por Vergil.
Um estrondo em quarteirão atiçou minha curiosidade, então, quando dei por mim, estava próxima a uma rua paralela.
Joguei-me em um salto acrobático para frente para esquivar de um carro arremessado repentinamente contra mim, sacando Blood em seguida.
– Oh, merda! – praguejei ao ver o irritadinho que havia me desafiado: era uma besta com dez vezes o meu tamanho. Lancei-me a uma distância segura até bater as costas desajeitadamente com o que parecia um muro, pelo menos foi o que imaginei a princípio até um braço serpentear minha cintura protetoramente. – Ei! – protestei com a ousadia pretensiosa. - Largue-me! – rosnei.
A risada masculina ecoou pelo ar gelado.
– Não vai fazer essa desfeita comigo, não é? Eu vim de tão longe só para te ver. – a melódica e máscula voz murmurou com charme. – Vou te mostrar como se faz – pontuou convencido e bem humorado, atirando sequencialmente na criatura que urrou com o ataque bruto que mal dava tempo para que seu agente regenerativo pudesse trabalhar. O braço que agarrava-me com um ligeira força, soltou-me e, em movimentos rápidos, incitando-me a tomar a frente.
– Não vai querer que eu faça todo serviço, não é? – gracejou. – Até poderia, mas não tenho tempo e assuntos pendentes me aguardam.
Sem olhar para trás, infundi meu sangue na lâmina e, no segundo que meu suposto aliado cessou o tiroteio, finquei a espada no topo da cabeça do monstro que não emitiu som e desmoronou em pedaços decompostos de si mesmo.
– Somos uma boa dupla, não concorda?
Franzi a testa.
– Escute bem, seu intrometido - virei-me no calor da raiva, encontrando uma versão mais desleixada de Vergil; o cabelo longo, a barba mal feita e as roupas no contraste de vermelho com peças pretas eram uma diferença absurda. Recuperei a compostura após o susto e o encarei sem pestanejar, transfigurando toda minha franca – Você aparece do nada e toca em mim com tanta audácia – ruborizei com a última parte. – E acha que pode agir com tal liberdade... Dante! – cuspi seu nome com desdém, um fato que não o abalou. Pelo contrário, ele simplesmente, sem dizer uma palavra, comprimiu-me em seu peito no abraço mais intenso que recebi em anos. Não era um ato de velhos amigos se reencontrando, e sim um gesto de carinho com uma pessoa na qual se importava do fundo do coração.
– Fico aliviado em saber que está bem, estive te procurando por um longo período. Não fuja mais, sim? – afagou minha nuca com suavidade. – Não quero correr o risco de te perder de novo, para garantir, vou ficar de olho em você – brincou, rindo contra meu pescoço, me arrepiando.
– Como... Me achou? – gaguejei, nervosa.
– Segui seu rastro de energia, mas estava muito fraco. Tive que apelar e buscar pelo meu querido irmão. E você perambulando pelas ruas até facilitou mais. – explicou, segurando minhas mãos. – Permita-me estar do seu lado.
Engoli em seco.
Por que não conseguia pensar com clareza perto dele?
Por que me sinto tão envolvida?
Será que é por ele parecer com Vergil?
Ou pelo que o próprio me contou?
Perguntas sem respostas dominaram meus pensamentos que estavam em branco.
Aqueles olhos.
Aquele sorriso.
– Não me importaria de lutar contra o mundo com uma mão se você estivesse segurando a outra – ele riu do próprio comentário como se soasse estranho para seus padrões.
Fiquei imóvel, confusa e assustada com a intensidade do contato.
– Não! – gritei, recuando e fugindo o mais rápido dali, deixando para trás um homem que enchia-me com sentimentos que sobrecarregavam-me.
Por que raios estou correndo dele?
Parei minha corrida percebendo o meu comportamento dúbio e sem sentido: Dante não apresentou ameaça alguma, na verdade, ele foi gentil e cortês em sua investida. Tinha agido de acordo com uma adolescente maluca que não pensa muito, movida pelo instinto mais básico – e por ser idiota. E ele nem atrás de mim, provando o quão irracional fui. Indecisa, permaneci parada sem saber como proceder, lutando ferrenhamente com o impulso de voltar.
Respirei fundo, avaliando mentalmente a situação e decidindo que o correto seria retornar para agradecer a ajuda. Entretanto, antes que chegasse a executar o plano, uma figura se interpôs no meu trajeto, parcialmente oculta nas sombras.
Protegi o rosto com a brusca e violenta rajada gélida que atingiu-me com tudo. O céu noturno limpo e estrelado fora encoberto com nuvens de aspecto pesado que cobriam todo céu, desdobrando-se em várias camadas... Cinzentas feito lápides. O ar ganhou um fraco odor de ferrugem e mato. A medida que o vento tomava força, criando um furioso vendaval, instintivamente posicionei-me de modo defensivo, os fios de alta tensão agitaram-se e a névoa junto a alguns papéis de lixo formavam um redemoinho, senti como se o clima em si tivesse sendo manipulado ou reagindo a algo que estava acima de tudo que conhecia. Que aquilo era uma demonstração de poder, de uma energia superior.
A figura encapuzada quase que deslizava ao mover-se, encurtando o espaço que nos separava. Tudo ao redor reagiu com sua influência, mexendo, rasgando, quebrando: as janelas das residências e lojas próximas abriram e bateram, o impacto estilhaçou o vidro e uma tempestade de proporções descabidas caiu sem piedade. Os pingos seriam capazes de ferir qualquer desafortunado que, por causalidade, estivesse desprotegido e sem cobertura. Pisei firme, em uma desenvolta investida, virei para escapar, mas quase tropecei, chocada, ao encontrá-lo a poucos centímetros bem atrás de mim, em uma distância que normalmente seria detectado. Só os mortos não exalam calor.
– Quem é você?
– Não é uma pergunta pertinente, criança – respondeu sem traços de emoção, um timbre mecânico e sem vida, porém muito familiar. – Não me reconhece? – tirou o capuz que lhe ocultava a face, expondo-a.
Ofeguei.
– Não reconhece seu próprio rosto? Eu sou você, ou melhor... Você é minha reencarnação.
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