Spiritual Impure
A absoluta ausência de cor os condiciona a ficar imóveis, com os sentidos afiados e a percepção objetiva. Não há, literalmente, nada ali. Essa inexistência perdura por alguns poucos segundos, mas logo dissipa-se, presentando-os com a idílica visão de uma campina aberta: a vegetação com uma variedade de plantas estendidas pelo amplo espaço, flores tímidas que desabrochavam serenamente, o farfalhar inquieto das árvores com o deslocamento sutil do ar que trespassava pelos galhos sinuosos e lançando a brisa folhas soltas.
Uma em especial, frondosa e que parecia abraçar o céu.
Ambos, os meio-demônios, vislumbram, através de um jogo de imagens difusas, pessoas presentes sem, no entanto, identificá-las na primeira examinação. Ao ganharem mais nitidez, com formas mais tangíveis, viram de quem tratava-se: duas crianças, uma loira e outra que Dante conhecia bem com os cabelos negros e os expressivos e angelicais olhos azuis, essa constatação causou uma dor profundo no mestiço – uma lesão tão específica e crua que tinha quase certeza que dificilmente curaria. O menino de madeixas escuras parecia desgrenhado e com um corte fino no canto da boca, contudo, ostentava um sorriso convencido e vitorioso enquanto o loiro tinha um semblante mais desapontado.
– Você não devia se meter em brigas – aconselhou pesaroso.
– Eles que começaram – replicou, não demonstrando arrependimento pelo mau comportamento e sua explosão temperamental. – Só me defendi e te protegi também, para isso que irmãos servem: cuidar um do outro.
– Arya não vai gostar disso...
– O que não vou gostar? – Arya surgiu atrás de uma das árvores, seu olhar severo e repreensivo, que não durou muito ao ver a série de ferimentos expostos.
Suspirou longamente, limpando cuidadosamente as feridas cujo sangue já secara.
– Eu avisei sobre isso, Sebastian – apesar do início claramente aborrecido da mulher, seu tom terno transmitia um amor incondicional.
Dante franziu a testa, muito intrigado com o quão semelhantes Sebastian em sua infância com Ayden, como se os dois fossem um reflexo um do outro.
– Não tenho culpa – resmungou, desviando o rosto ligeiramente enrubescido para longe do vigilante e amoroso olhar de Arya. – Eles não gostam de mim, o que posso fazer? – bufou ressentido. – Só você, meu irmão e o seu pai tem importância para mim. Ninguém mais!
– Talvez se você não saísse batendo em todos que lhe encaram carrancudos, não te aborreçam – o loiro alfinetou, atiçando a ira de Sebastian que saiu correndo atrás, ficando a dúvida se era uma briga ou somente uma brincadeira, embora tivesse certo que não existia rastro algum de hostilidade.
– Demorei para notar isso – a ilusão se desfez tão logo quanto surgiu, revelando a abatida e ínclita figura no centro do lugar. – Sobre Sebastian... E tudo mais...
Em perfeita sincronia, os gêmeos embainharam as espadas, preparados para a batalha.
– Meu erro... – murmurou angustiada, acariciando a pétala da flor que recolheu e que crescia próxima as raízes da Grande Árvore. – Há tanta história nesse solo sagrado.
Descansou a mão no tronco áspero, sentindo a energia leve de tudo que era vivo no espaço colorido e mítico fluir direto para a ponta de seus dedos, vertendo para os nervos e a embebendo de vitalidade. Sobretudo, entorpecendo-a com lembranças, nas quais a transportavam de volta para o passado. Incluindo, também, para época em que Sparda decidiu se rebelar e erguer sua espada em prol dos seres humanos. Eles reuniram-se sob as folhas verdejantes da Grande Árvore para reavaliar os fatos. Ainda que possuísse um poderoso senso de justiça e piedade em seu coração nobre, como qualquer criatura dotada de sentimentos, para ele, não era fácil lidar a ideia de lutar contra seus semelhantes e irmãos. Mesmo na conversa que tiveram na noite anterior a guerra sobre a possibilidade de nunca mais voltar, Sparda preferiu que Arya deixasse ele resolver o confronto final com Mundus sozinho. Naquela ocasião, temerosa pelo destino do amigo e ciente da responsabilidade, como o coração martelando fortemente contra o peito, prometeu não se envolver quando a hora chegar.
A balança pendeu a favor dos humanos, mas não sem um preço. Muitas pessoas morreram, milhares de sacrifícios foram realizados para que a humanidade tivesse a chance de se restabelecer. Nesta lista, contabilizando a morte de seu amado pai, perdendo o que restou do limitado conceito família que conhecia. Em um último suspiro, agarrado a reserva de fôlego que se esgotava, revelou a verdade. Arya nunca teve conhecimento de sua suposta função no mundo, além do simbolismo do clã como Nexus das dimensões, então descobriu ser a personificada Luz. A entidade gêmea e oposta a Escuridão. Havia sido um segredo por anos, um no qual seu pai não queria que soubesse e que apenas lhe contou no leito de morte, para que compreendesse seu desígnio.
— Esse lugar... Essa árvore... Carregam o passado. Meu passado... Por isso vim até aqui – explicou, quase inconsciente da intenção dos gêmeos.
Atordoada com a avalanche descontrolada de memórias, permitiu que as demais se desenrolassem, administrando-as e selecionando-as cuidadosamente.
Demorou muito para que o ferimento em seu coração cicatrizasse após ter testemunhado a assassinato de seu clã pela pessoa que mais amava no mundo. Ironicamente, tinha conhecido Sebastian no mesmo lugar há milênios. Ele era um garoto rebelde e irritadiço, porém detentor de bons sentimentos.
A partir disso, viraram inseparáveis, como irmãos.
Quem imaginaria que seria ele a apagar a existência do próprio clã.
Ativando o mecanismo de proteção emocional que implantou em si, afugentou mais recordações, trazendo-se forçadamente para a realidade na qual estava condenada.
A brisa espalhou seus longos cabelos em seu rosto. Os filhos de Sparda estavam preparados para uma árdua disputa na intenção de reaver a alma transplantada. Se eles tiverem, coisa que considerava impossível, a alma no estado em que se encontrava, dispersaria rapidamente. Sequer teriam a chance de resgatá-la. Não facilitaria o trabalho deles em tomar o que lhe pertence por direito.
Folhas pendentes rodopiaram ao seu redor em pequenos redemoinhos, soprando em direção ao céu.
Rasgou os trajes de festa que usava, de costas para os dois homens. A favor do auto consciência de vaidade que ainda tinha, não ousou virar. A cicatriz de aspecto grotesco que ia da metade da região do busto a próxima da virilha, uma linha mal suturada que pulsava e que fazia parecer que seus órgãos fossem ser expelidos para fora em resposta da rejeição do corpo. Não era algo que se orgulhava. Na aurora dos tempos, onde a juventude e a vida residia em si, admirava a aparência nobre e traços selvagens de uma guerreira. Embora não fosse uma mulher que se atesse a pormenores físicos, não negava ser bonita. Agora, no entanto, tratava-se de um cadáver cujo processo de decomposição fora totalmente anulado e a essência real da vida retirada. Basicamente era uma morta que, como castigo, caminhava entre os vivos fingindo ser parte daquele mundo. Colocou roupas confortáveis e que cobriam convenientemente seu estigma, nada sofisticado.
Apesar de estarem crentes, cegamente fissurados com a ideia, de que era inimiga, nenhum dos dois tentou atacá-la. Talvez devesse isso a importância que ambos deram a menina. Por mais que, na questão de personalidade, comparando-se a garota paradoxal e repleta de fantasias e delírios, não fosse uma mulher que se deixasse levar levianamente por emoções, não conseguia sentir-se indiferente a presença deles. A alma dela estava vinculada a deles, fazendo com que, independente de quem seria, se comovesse ao tê-los perto. Justificava também o apelo sentimental que nutriu pelos gêmeos em minutos ao sustentar o olhar rígido sobre eles. Censurou-se diante dos pensamentos que a distraiam, concentrando-se em somente resolver o assunto e se necessário ter que feri-los, faria sem piedade. Testaria o que os gêmeos teriam para oferecer. Certamente eles aguentariam um bom tempo o que guardou.
Não! Não posso machucá-los! Você não pode machucá-los!
Chacoalhou a cabeça para afugentar essa nuvem de pensamentos.
A aura vermelha de Dante vibrou, oscilando perigosamente. Arya teve certeza da contaminação do mestiço mais novo. O azul-cobalto do campo energético de Vergil a impressionou, era perfeitamente moldado a vontade do meio-demônio.
Vergil avançou em uma velocidade que o tornava uma sombra imperceptível, ágil e com movimentos elegantes, desferindo cortes com Yamato. Reconheceu a katana que podia abrir fendas entre o mundo humano e o mundo dos demônios, que Sparda carregava sempre junto consigo. Arya não teve muito trabalho para evitar os inúmeros e fatais golpes, desaparecendo do escopo das múltiplas retaliações. Tinha que dar crédito as habilidades do meio-demônio, se vacilasse, ele a faria em pedaços. Impaciente com a falta de ação de Dante em despeito ao irmão, Arya agarrou o braço de Vergil, no instante que este se aproximou, pegando-o em um ponto cego para um ataque. Comtudo, irradiando feito sol, o calor dele a puxava para o estado mais pleno de júbilo, um contato que parecia ter ansiado durante toda sua vida. Seus braços o envolveram em um abraço caloroso, pela surpresa — algo que concluiu não ser comum com Vergil —, ele permaneceu imóvel sem esboçar reação. Não correspondeu o gesto tampouco o rechaçou.
Não queria machucá-lo — o que era contraditório —, a mera possibilidade a estremecia por dentro. Mas, se eles irredutivelmente prosseguissem nessa tola interferência não teria opção. Engoliu a miríade de sentimentos conflitantes que a condicionavam a eles.
— Vergil — o nome dele escapou com doçura enquanto sua mão movia-se para afagar seu rosto. Queria ter experimentado tais sensações quando a vida ainda pulsava em si. A sua morte soou mais injusta e menos martirizada. O ódio germinou mais potente, tecendo suas raízes e consolidando-se.
Sentiu-se indigna de receber qualquer sombra de afeto.
— Não deveriam ter me seguido... — estreitou os olhos, melancólica. — Eu poderia tê-los destruído... Ainda que... — curvou os lábios em um sorriso triste e encostou nos dele. Não era um beijo, mas estando tão perto, simplesmente seria capaz de selá-los. Repentinamente, consumida pelo ódio, fincou as unhas nas roupas de Vergil descarregando nele uma imensa e incapacitante onda de energia. Quase assemelhando-se a milhares de volts que facilmente matariam um ser humano. Ele resistiu alternando entre sua forma humana e demoníaca. Olhou de esguelha para Dante que disparava em uma corrida frenética para salvar o irmão.
— É tão bonito ver o amor entre dois irmãos. Pena que como qualquer outro sentimento, esse se suja. Se contamina. — a compressão de ar culminado pela aura de Arya, criou um vórtice com eles no centro. — Eu fui uma boa pessoa. Tive bons sentimentos. Zelava com grande afeição por todos que precisavam de conforto. Renunciei sonhos e ilusões certa de que meu sacrifício valeria a pena. Agora sequer posso entrar em locais sagrados.
Arya não satisfeita, lacrou temporariamente os poderes de Vergil.
— Olhe pra mim — pediu com o rosto contorcido de raiva. — Conservo a aparência humana de como eu era antes de morrer, mas sou um cadáver que foi condenado a vagar neste mundo. Não passo disso e que para se manter vivo se alimenta de almas e energia de outros seres. Uma farsa. — apertou as pálpebras, espremendo algumas lágrimas. — Ao menos fora do propósito daqueles que me ressuscitaram, terei como cumprir meu dever. Não será você — segurou os ombros dele, o gelo aflorando em seu coração, congelando suas lágrimas. —, sua criança estúpida, que vai me impedir!
A aura de Vergil expandiu-se entrando em colisão com a de Arya em resposta a tamanha hostilidade e violência, rompendo o influência dela. A força de vontade dele era muito mais intensa que previu, ultrapassando o que imaginou.
— Você... E seu irmão... Fariam tudo por ela, não é? — questionou num misto de compaixão e inveja. — Vocês morreriam por ela? Por que?
- O amor funciona assim - Dante respondeu sem fôlego.
Vergil levantou-se, ajeitando o cabelo como costuma fazer sempre que suas madeixas rebeldes lhe caiam sobre o rosto. Dessa vez, quem lhe comportava em um abraço era Vergil. Aquilo gerou uma forte perturbação em sua alma.
Quando a essência dele se confundiu com a dela feito uma explosão harmônica de sentimentos e percepções, Arya percebeu que não manteria aquilo sob seu domínio. A consciência adormecida de Diva ganhava mais terreno, enchendo sua mente com pensamentos embaralhados.
— Por amor, você morre — sussurrou, confusa com a própria linha de raciocínio. - E pelo ódio, você vive.
O que ele pretendia afinal?
Vergil entrelaçou seus dedos com os dela. Surpreendida pelo olhar envolvente do mestiço, Arya encolheu-se. Quando deu por si, seus lábios encontraram-se. Os dela frios e os dele, em contraste, cheios de calor.
É a Diva que ele vê em mim que está beijando, pensou desolada, as lágrimas deslizando silenciosamente pelas bochechas coradas.
A alma fragmentada agitou-se, algumas partes escapando de seu corpo mortal.
— Não. Ainda não! — gritou, empurrando Vergil para longe e abraçando os cotovelos para conter sua alma, algo que não deu certo. Os fios de luz rasgaram o céu como estrelas cadentes, retornando a sua casca original.
— Não! Voltem! Não terminei! Não! — berrou estendendo os braços incansavelmente para pegá-las. — Voltem! Voltem! Não! Não!
O impacto do golpe repentino vindo de Dante a arremessou com truculência em meio as flores.
— Você... Isso não é nobre e cavalheiro, Vergil — vociferou. — Tudo que queria era desestabilizar minha alma. Seu maldito!
Prontamente firmou-se de pé, apontando a flecha aparentemente simples para os gêmeos. Ambos preparados para lutar.
— Minha alma não vai voltar totalmente para aquela menina... Eu não vou desaparecer! — dito isso um portal se abriu sob os dois homens, que foram impedidos de fugir por correntes que os imobilizaram. — Vou levá-los para o inferno, pois se eu cair os arrastarei junto comigo! — prestes a atirar a flecha, uma mão agarra seu pulso forte o suficiente para travá-la, intervindo no impasse.
— Você tem o que me pertence — a voz gélida acusou, sua mão livre pressionando o pescoço de Arya.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro