Shattered
A deriva em um oceano de sensações apuradas, e sob feixes ociosos de luz púrpura, experimentei diversas ondas calmantes que embalavam-me, encorajando-me a mergulhar no mundo dos sonhos. Maya cantarolava enquanto adicionava mais substâncias ao líquido roxo na qual estava afundando.
Procurei através do meu limitado campo de visão, algum dos rapazes, mas não tinha como vê-los estando deitada e imóvel. Fitei o lustre pendendo no teto e girando sem parar, reluzindo em múltiplas faces coloridas.
Acordar sem ter liberdade para mexer o corpo, estar quase totalmente submersa em um caixão de vidro, não era uma condição agradável em nenhuma instância. Exausta demais para protestar e exigir um esclarecimento, lentamente guiei-me para o descanso superficial, ainda parcialmente atenta ao que acontecia. Os sons pareciam ampliados; o bater interminável de pés no assoalho irritava meus ouvidos e fazia minha cabeça latejar com uma pulsação dolorosa.
Maya pegou minha mão e avisou algo sobre absorver. Não compreendi o que ela queria dizer, minha mente não processava as informações com rapidez o bastante para assimilar tudo com clareza. Após alguns minutos, o líquido ganhou densidade e rastejou por mim, sendo prontamente absorvido pelo meu corpo. Não doeu como quis acreditar a princípio, foi mais como se estivesse renovada e a medida que eu o solvia, a impressão ficava mais intensa. No final do procedimento, senti minha musculatura menos travada e meus pensamentos mais dispersos.
– Ei!
Maya gesticulou para alguém se aproximar e não me surpreendi ao ver os gêmeos, ambos visivelmente esgotados e com a aparência meio doentia – embora Vergil parecesse menos afetado. Imediatamente, tomada pela infinita compaixão e afeto inerente, tratei de aprumar-me, sentando. O que não foi uma ideia muito boa considerando que essa breve ação despontou uma série de dores que martelaram por toda extensão de meu corpo debilitado.
– Sem esforço, doçura.
Dante afagou minha mão para tranquilizar-me, agradeci mentalmente o gesto. Não encontrava ainda palavras para conversar mais abertamente, era quase que redescobrir a capacidade de falar.
– Como se sente? – o tom composto de Vergil tirou-me da brisa momentânea. Enviei perguntas desconexas para ele, em uma frequência sucessiva de difícil interpretação, sequer podia comunicar-me telepaticamente. O meio-demônio cobriu-me com seu casaco e sorri pela gentileza. Tinha esquecido que estava nua. Depois de tanto tempo convivendo juntos, esse pequeno desconforto de outrora não incomodava.
Mexi meus dedos para certificar-me que meus reflexos estavam normais e, novamente, forcei-me a sair da zona de conforto e sentar. Não houve dores tampouco meus músculos reclamaram de cansaço.
Estava revigorada.
Vergil estendeu a mão e a segurei por instinto, não precisávamos verbalizar o que queríamos para entender o outro. Ter uma relação profunda e dinâmica com alguém como eu tinha com ele facilitava esse tipo de interação. Podia até mesmo perceber que Dante não gostou por eu ter escolhido Vergil para tirar da contenção de vidro no qual inseriram-me.
– Obrigada
Ajustei o casaco para vesti-lo adequadamente enquanto não tivesse minhas próprias roupas para usar. Maya conduziu-nos a uma outra sala, pedindo para que aguardássemos. Reparei que o ambiente era novo em todos os sentidos, o que me fez chegar a duas conclusões: que elas fizeram uma reforma ou mudaram de casa. Confirmei a segunda suspeita com um comentário de Dante.
– Como se sente? – Maya inquiriu, preocupada.
– Bem, eu acho. – passei a mão pela testa, escovando meu curto cabelo para trás.
– É bom que tenha tudo ocorrido bem.
Assenti, meio incerta.
– O que aconteceu? – intercalei meu olhar entre Dante e Vergil. Dante deu de ombros como se não fosse uma questão de grande importância. Vergil mirou-me, sem mostrar um único traço de afetação ou aborrecimento.
– Eles estiveram transferindo a energia vital deles pra você – Maya contou, vendo que não tiraria respostas dos gêmeos, antecedendo minha apreensão. – Você ficou cinco dias em estado de sono e para reconstruir sua alma...
– Reconstruir o quê? – interrompi, mortificada.
– Sua alma. – respondeu com simplicidade de uma pessoa que fala do tempo. – Eu posso te dizer tudo se não me interromper.
– Ah... Certo. Desculpe.
– Dante te trouxe aqui e relatou sobre o ocorrido, o encontro com a Arya... – Maya pausou, imersa em pensamentos. – O que chegar ser absurdo... Alguém que já morreu e reencarnou voltar a vida como um corpo vazio. É assustador.
Dante pigarreou.
– Eu entendi, feioso. – Maya acomodou-se na poltrona e enrolou uma mecha do cabelo loiro. – Quando minha irmã te examinou falou que sua alma estava partida. Por sorte nenhum dos pedaços se desprendeu – com uma ilusão mágica fez um demonstrativo do meu diagnóstico tendo um pedaço de vidro como um exemplo. Ela o rachou, várias fissuras se abriram, mas nenhuma saiu. Todas, independente do estado do vidro, permaneceram unidas. Condicionadas a um irrecuperável estado de fragmentos fixados. – Não é uma situação na qual esteja acostumada a testemunhar. De todo modo, com a ajuda dos dois minha irmã estabilizou o dano. O resto foi obra dos gêmeos. Eles cuidaram para que a energia escapava do seu corpo retornasse em segurança.
Orgulhosa por ter os melhores companhias – se é que posso chamar assim dada as circunstâncias –, sorri ainda que estivesse triste. Havia mais motivos para ficar abatida que para comemorar, embora a certeza de estar respaldada amenizasse os maus presságios.
– A propósito, uma alma não é imortal?
– E é. Quando inteira. – falou com veemência. – É necessário muito poder pra quebrar uma alma e, de acordo com Dante, Arya tinha pressa mesmo não estando em plenas condições, obteve êxito parcial. Geralmente almas despedaçadas somem depois de determinado tempo, neste percurso, elas ficam propensas a corrupção. Ou também reencarnam separadamente. No caso, talvez a intenção de Arya fosse facilitar a separação do corpo e do espírito, deste modo, tomá-la de volta pra si. É estranho que um corpo queira recuperar a alma que já renasceu é... Errado.
Arya queria ter uma vida que já se perdeu há séculos, afirmei pensativa.
Sozinha com meus pensamentos, olhei tediosamente para a decoração da nova moradia de Eryna: prateleiras organizadas e dispostas pela sala chamavam atenção devido ao acervo de livros bem conservados. Quadros com pinturas e símbolos estavam alinhados próximos a enfeites delicados feitos com coisas naturais e exóticas. A mobília toda trabalhada em madeira de boa qualidade e, pelo que notei, limpas e enceradas. Maya perambulava de um lado para outra, animada com um festival planejado na cidade. Nesses anos afastada, a jovem bruxa cresceu um bom palmo e suas roupas baseadas na moda vitoriana e retro, agora eram mais de acordo com a sua escolaridade – ficando uma grande parcela de tempo com o uniforme – esbanjando maturidade de uma colegial de quinze anos.
Dante colocou uma lata gelada na minha cabeça para despertar-me do meu monólogo. Entregou-me o refrigerante e, em silêncio, bebemos. Cogitei interrogá-lo a respeito de Arya e o fato deles se conhecerem, porém fiquei na minha, não querendo encher a cabeça com problemas.
– As coisas mudaram muito nesse tempo – comentei informalmente.
– Você nem imagina. – deu de ombros.
– Então... Ex namorados? – instiguei meio em dúvida quanto ao que seria seguro falar. – Por alguma razão, não consigo lembrar bem de você participando da minha vida.
– Não se preocupe, eu lembro por nós dois – o sorriso dele afugentou os temores do meu coração, iluminando tudo ao nosso redor como um sol. – Só não fuja mais, sim?
– Eu não fugi, ora!
Dante fitou-me com desconfiança.
– Não me olhe assim, não fugi não.
– Se você diz, senhorita – brincou, rindo com diversão. – Você aceitou ir ao festival que Maya comentou?
– Ah, sim. É bom... Espairecer. Esquecer um pouco os problemas.
Não seria uma ideia ruim uma longa pausa por uma noite e aproveitar. Quem sabe quanto tempo eu ainda teria antes da batalha contra Sebastian.
– Sei que está preocupada com o rumo dessa guerra, mas também merece um descanso.
Assenti.
Meu estado de espírito acabava detonando meus planos de atividade, então minhas opções se resumiam a ler, praticar feitiços que via em pergaminhos e livros e socializar com alguns dos presentes no casarão. Apesar de Maya ter ensinado um encantamento que criasse roupas, não larguei o casaco de Vergil por gostar do cheiro dele. Dante, em contrapartida, possuía uma diversidade peculiar de aromas, incluindo álcool e pólvora. Vergil, no entanto, era dono de fragrâncias mais complexas de identificar, nada muito forte e semelhante a perfumes almiscarados.
Imersa em pensamentos, continuei catalogando as diferenças físicas, comportamentais e energética dos dois. Vergil se juntou a nós minutos depois, sentando do meu lado esquerdo enquanto Dante estava no direito. Estar entre os dois trouxe uma imensa segurança, apagando meus receios. Aconcheguei-me em Vergil, deitando a cabeça em seu colo e as pernas no de Dante. Ambos reagiram a minha ação com singularidade: Dante surpreso e Vergil intrigado.
– Vocês são os melhores travesseiros do mundo – murmurei, olhando para a poltrona e com preguiça tomando conta de meu corpo.
Dante riu.
– Somos de múltiplas utilidades, agora, por exemplo, somos travesseiros. – escarneceu, massageando meus pés.
O toque frio da mão de Vergil na minha testa, assustou-me, não de um jeito ruim. Era um aspecto natural dele não ser tão afetuoso em suas interações e nunca ser adepto de demonstrações de carinho. Raramente o via agindo menos rígido e ficava imensamente feliz por ele estar burlando a própria regra comigo e afagar meus cabelos. Ele cogitou afastar-se, porém o detive, incitando-o e aceitando de bom grado seu afago.
– Suas mãos são frias – sussurrei, meditativa. – E eu gosto de senti-las. É bom.
Vergil não sorriu. Mantinha as feições endurecidas, contudo, mais amenas.
Ficamos assim por um longo tempo, e quando estava perto de dormir sob o efeito relaxante das mãos dos gêmeos, escutei vozes que preencheram o ambiente.
Todas familiares.
Eryna entrou na sala e, em seu encalço, Nilin. A princípio lembranças antigas da nossa convivência e de como ela fez tudo que pôde para tornar meus dias cativa de Ace melhores vieram, mas logo o sentimento de agradecimento e ternura transbordou em mim. Corri para abraçá-la com força, na euforia, Nilin se assustou e derrubou as compras.
– Sinto muito – proferi, ajudando-a a recolher as sacolas. Durante nossa breve conversa, tipicamente explorar terreno e pôr as notícias em dia, descobri que nesse intervalo, Nilin e Nina tem vivido com Eryna. Saber disso foi reconfortante, entretanto, não mudava o fato de que estava chateada por ela ter, mancomunada com os outros, despachando-me de volta para minha dimensão.
Nilin teceu elogios as duas irmãs bruxas pela hospitalidade e explicou que Nina estudava em período integral em uma escola particular custeada por Eryna. Nunca duvidei da bondade dela quanto a demonstrar afeto para quem realmente necessitava. Ouvi tudo com interesse, sentindo-me novamente parte daquele mundo sobrenatural. Enquadrada naquele restrito círculo de pessoas.
– Você também pretende ir para o festival? – Nilin inquiriu após Maya trazer uma amostra de vestidos para que eu escolhesse. – Eu posso fazer algo especial pra você.
– Não será muito incômodo?
– Não. Eu adoro costurar. Quem você acha que ajuda Maya nos... – Nilin parou, procurando um termo correto a ser usado. – Looks?
– Oh, muito obrigada. – ri com sua dificuldade em seu dialeto em relação a palavras que para outros eram simples. Chegava a ser fofo.
×××
Todos olhavam para mim em expectativa, até Vergil que não estava tão esperançoso ou interessado, esperava que eu fosse adiante. Com o peso de tantos espectadores ansiosos, não tive alternativa a não ser beber o chá cujo cheiro remetia a plantas mofadas. Ingerir algo com cor, aroma e textura suspeita demandava esforço e coragem, com nenhuma das duas disponíveis, foi determinante a pressão dos presentes. Tossi devido a acidez do chá e tentei imaginar que o sabor fosse de refrigerante, mas quando o amargo se acentuou em meu paladar, torci o nariz de desgosto. Eryna garantiu entre risos que que ele serviria para fortalecer meu corpo e estabilizar minha alma. Dante encorajou-me a tomar o restante disfarçando a risada. O único que não achou graça da situação foi Vergil que parecia preocupado. Sua perturbação flutuou até mim através da nossa ligação e entendi o que estava deixando-o inquieto: minha aura oscilava enfraquecida.
– É melhor que descanse um pouco – a voz fria igual lâmina afiada de Vergil se destacou entre vozes altas as risadas. E ele só focava em mim, como se existisse nós dois naquele ambiente.
– Tem razão – roubei o suco de tomate de Dante e bebi para tirar o gosto desagradável da boca fazendo caminho para o quarto de hóspedes.
Fui direto para o banheiro, sonolenta.
A água quente do chuveiro lavou tanto meu corpo quanto minha alma – os pedaços colados dela.
Pensamentos a respeito dos atuais acontecimentos povoavam minha mente aliados com o alvorecer de um novo entendimento. Sempre que fechava os olhos, flashes da face de Arya toldada de tristeza atormentavam-me.
Meu passado nunca descansaria em paz no lugar a qual fora sepultado e assombrariam-me pelo resto da minha vida.
Ou o curto período que ela durar.
Vendo a água escorrer pelo ralo, refleti sobre o que Maya comentou. Talvez não fosse ruim parar para respirar e pôr as coisas em ordem.
Enrolada na toalha, dei de cara com Dante deitado confortavelmente na minha cama. Ele virou a cabeça para olhar pra mim e quase fiquei desorientada pela intensidade.
– O que faz aqui?
Minha razão dividia-se: com a naturalidade dos eventos e a ligeira estranheza. Talvez não fosse tão absurdo aquilo tudo.
– Nada realmente. Esperando você sair. Espero que não se importe que eu durma com você essa noite.
Meditei por segundos antes de tomar a decisão:
– Tudo bem. Fique a vontade. – respondi, secando o cabelo sob sua vigilância.
O mais fora de qualquer sentido, eu sentia que conhecia o caçador como a palma da minha mão – sugerindo que tal conhecimento era estritamente profundo.
Diria até com certa propriedade que Dante seria o tipo de homem preparado pelos modos cheios de si e personalidade charmosa, exceto quando o assunto é relacionamento pelo que ficou evidente. Era adorável o espanto estampado em sua face com minha resposta positiva.
Íamos passar a noite na mesma cama, isso nunca fora uma novidade pra nós. Afinal já fomos namorados, suponho que deveria ser comum.
Compartilhar a cama não significa propriamente ter relações íntimas.
Vesti um pijama que Maya deixou pra mim e deitei no espaço vago.
– E então, vai dizer o motivo que o trouxe para minha cama?
– Sua companhia. – não existia malícia em seu tom de voz e nem segundas intenções em seu sorriso caprichoso. – É tão difícil acreditar que estou aqui por...
– Mim? – completei. – Agradeço a preocupação. É confuso, não me sinto desconfortável estando aqui com você. Parece tão... Familiar. E tecnicamente não lembro muito de tudo que tivemos. Lamento por isso, Dante.
– Não tem problema, vou te fazer se apaixonar por mim de novo. – sorriu pretensioso, contudo, também, com ar de promessa.
– Pouco modesto o senhor. – declarei com graça.
– Eryna me contou algo interessante – Dante entrelaçou nossos dedos, atento ao próprio discurso. – Que quando duas pessoas que se gostam dormem de mãos dadas, tem o mesmo sonho. – apertei sua mão, sentindo a diferença evidente de temperatura e textura de nossas peles. – Por isso segurei sua mão durante todos esses dias que esteve inconsciente... Vergil também, mas como, pra te reconquistar, preciso fazer mal juízo dele, tenho que centrar o foco em mim. Não dizem que no amor e na guerra vale tudo?
– Que maldade – abafei a risada no travesseiro. – De qualquer forma, obrigada por ter me dado uma parcela da sua energia... – Dante puxou-me para um abraço apertado.
– Sempre que precisar.
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