Phantom Pain
Nico esmurrou o jukebox pela terceira vez para que o aparelho retrô tocasse a música programada: de início, o instrumental ecoou alto pela van, fazendo a armeira balançar a cabeça em aprovação enquanto tragava seu cigarro – cuja fumaça impregnava o ar com o cheiro forte de nicotina. Finalizado seu mais novo Devil Breaker, a materialização de suas competências como artesã de armas, sentiu que merecia uma glorificação e nada lhe proporcionaria mais prazer soberbo que escutar um bom tema musical para contemplar sua prestigiosa obra prima.
– Isso que é arte – sorriu, convencida.
Nero revirou os olhos familiarizado com o ritual de auto celebração da parceira, mesmo com o pouco tempo de convivência adaptou-se rapidamente ao estilo extravagante e exagerado dela, o que lhe garantia ter uma dinâmica regada de sarcasmo e ofensas ironicamente amigáveis. Irritado com o aroma desagradável de fumo, baixou o vidro pra que o ar puro circulasse no espaço comprimido.
O sol a pino no céu favorecia para que a temperatura quente permeasse e aumentasse a sensação térmica de estar num forno, o pequeno ventilador não fornecia o frescor suficiente pra amenizar o calor – o que era estranho para aquela época do ano. O jovem caçador ergueu a cabeça, intrigado com a movimentação anormal de demônios alados, todos de baixo nível de poder, que reuniam-se em uma única localização em uma zona distante de seu campo de visão.
Assobiou para Nico, sinalizando para que retomasse seu posto na direção. Ela pensou em retrucar, por ter interrompido seu trabalho, mas voltou atrás ao também deparar-se com a cena.
– Parece que estão prontos pra fazer um banquete – comentou, ajeitando-se no banco do motorista, brincando com o cigarro pelos lábios rosados.
– E dos grandes – completou em concordância, franzindo a testa.
Nico pisou no acelerador com tudo, arrancando a toda velocidade pelas ruas devastadas de uma – agora – cidade fantasma. Atento a aproximação de demônios, Nero observou melhor a destruição que o rodeava lembrando a si mesmo que precisava – como uma promessa que era seu dever e sua própria vida – achar o causador daquilo e matá-lo. A raiva que alimentou durante as semanas que seguiram desde que perdeu Kyrie serviu como combustível para que não desistisse, continuaria essa jornada até Sebastian antes de Diva. Ele mesmo findaria a guerra prestes a nascer e, em memória de sua amada, vingaria também quem morreu pelas mãos desses odiosos seres.
Seu corpo fora quase lançado para frente com uma poderosa e brusca freada, rosnou em resposta a desastrosa direção de Nico. Ela que se gabava de ser uma excelente armeira, vangloriando-se de suas capacidades acima de qualquer outra, compensava suas tão superiores aptidões na clara deficiência de condução – duvidosa e suicida. Muitas vezes prestes a atropelá-lo – que possibilitava umas manobras arriscadas para estacionar.
– Qual é o seu problema? Onde aprendeu a dirigir? – vociferou. Sem dizer nada, Nico meneou a cabeça para que ele visse o que lhe obrigou a parar. Cercada por um grupo hostil de demônios, havia uma figura diminuta e oculta com uma longa e puída capa deitada no chão.
– Hora do trabalho – assim que levantou, a mecânica esticou a mão e o caçador bateu como um gesto de companheirismo já característico de ambos. – Ei, seus bastardos. Por que não pegam alguém do tamanho de vocês? – agarrou o Devil Breaker que Nico preparou e o alocou em si.
Com exímia desenvoltura, Nero realizou ataques sequências e extremamente velozes para eliminar a corja demoníaca de uma vez: utilizou a Blue Rose melhorada para atirar nos que sobrevoavam ardilosamente sobre sua cabeça em círculo e ameaçavam raptar a vítima desfalecida. Sua renovada pistola marca registrada oriunda de seu antigo treinamento em Fortuna, possuía o tranco mais potente e as balas calibradas possuíam pressão maior e consequentemente eram duplamente mais efetivas e seus danos mais brutais, as criaturas aladas morriam com apenas um projétil – o que facilitava seu combate a longa distância –, decompondo-se em cinzas sopradas ao vento. O restante simplesmente tratou de dilacerar com Red Queen com precisão mortal, executando-os com sincronia de cortes e com o auxílio da prótese aperfeiçoada de Nico, este lhe concedia a vantagem de trazer o inimigo pra perto e outros numerosos atributos.
Grunhidos e gritos bestiais cessaram a medida que os demônios morriam, até que, enfim, o silêncio predominou como um agente solitário pelas ruas abandonadas – um cenário clichê de um filme de terror. Nero guardou as armas e caminhou em direção a pequena criatura encolhida, tentando ao máximo ter cuidado ao carregá-la. Apesar da estrutura corporal mais resistente, temeu quebrá-la se caso não medisse a própria força. Essa preocupação tinha desde que entendeu que não era humano e teria que calcular cada coisa que fazia para não machucar todos ao seu redor.
Ouviu um suave ganido de exaustão vindo da figura, revelando seu gênero: era uma mulher. Levou-a para dentro da van, pedindo para Nico prestar devido socorro a jovem, levando em conta que não poderia tratar de todos os ferimentos dela por baixo de tantas roupas.
Nico assumiu para oferecer cuidados, retirando o capuz que escondia o rosto da mulher.
– Ei, saca só – a armeira chamou de prontidão com o susto, atraindo Nero.
– O que foi? – Nico indicou a face adormecida da mulher e, dessa vez, o jovem caçador arfou com a visão: estendida no sofá com aparência cansada e destruída estava Diva. – Diva!? – acariciou cautelosamente o rosto ligeiramente gelado. – O que houve? Como veio parar aqui? – questionou retoricamente em tom angustiado ciente que ela não lhe responderia.
– Ela passou por maus bocados – afirmou categórica, desabotoando as roupas que Diva vestia, mas, quando estava perto de despi-la, a mão firme gélida a interceptou, impedindo seu progresso. Não era um aperto doloroso e sim um modo de aviso para não ultrapassar determinada fronteira. – Ela está lúcida.
Diva arrumou, trêmula, cada botão e cobriu-se. Seu olhar febril vagou pela van equipada com todo tipo de conveniências: sofá, uma pequena mesa, cadeiras, um balcão e outras coisas que não identificava pela natureza mecânica e tecnológica além de seu tempo.
– Diva. Ei, você está bem? – murmurou solene, Nico sorriu sarcasticamente com o caçador que demonstrava menos dureza e rigidez diante da velha conhecida. – Não está nos reconhecendo? Sou o Nero, lembra? Somos amigos, consegue lembrar?
– Acho que é até mais do que isso – Nico cantarolou, graciosa.
– Dá pra calar a boca? – replicou, arrancando risadas da parceiras. – Não ligue pra Nico, ela tem uma boca grande.
– Nero – o sussurrar de seu nome por entre os lábios ressequidos e a voz tão clara e serena, enviou um arrepio estranho pela espinha do mestiço. – Nero, huh – a mão pálida segurou seu queixo como se o examinasse, Diva removeu o capuz, os olhos cheios de perplexidade toldados em lágrimas. – Você cresceu tão bonito.
Nero não entendeu o contexto das palavras proferidas pela jovem, mas a sensação de ter presenciado algo semelhante o engolfou. Não somente isso: a resplandecência esverdeada que tremeluzia no olhar afetuoso dela o trouxe a realidade da identidade da mulher tão assombrosamente igual a Diva.
– Arya – elucidou hipnotizado.
– Fico feliz que me reconheça – firmou-se de pé.
Arya, cambaleante, saiu da van sob o olhar vigilante e desconcertado de Nero. A brisa revigorante lhe recebeu, trazendo consigo a cheiro de sangue e morte. Fechou os olhos para poder captar melhor as vibrações energéticas que pulsavam ao redor como um organismo vivo que não queria desaparecer. O fluxo de energia circulava em feixes de tons mornos, uma mistura de tons de verde com aqua. Apesar do local estar nos domínios da morte, tudo que, longe da visão humana, ali emanava era resquícios de vitalidade. Tudo que ela carecia para poder restabelecer-se e prosseguir em sua viagem e sua busca, não poderia voltar a descansar em paz ciente de que quem ela aprisionou esteja livre.
Concentrou a aura de modo que ela entrasse em sintonia com a onda energética disforme, absorvendo-a em grandes doses – embebendo-se de vigor. Não somente isso, o sangue outrora seco ou mesmo recém saído, separou-se da matéria e em diminutas partículas uniam-se em uma grande quantidade que dançava por Arya como convocadora, o líquido escarlate penetrando pelos seus poros e solvendo-os com prazer doentio.
– Uou, essa sua amiga sabe como aparecer – Nico gracejou, tragando fundo o cigarro e soprando a fumaça.
Nero, cético, encurtou caminho até a mulher e a arrancou bruscamente do torpor induzido pela absorção de vida em meio ao nada.
– O que está fazendo? – esbravejou enraivecido.
Arya, vagamente entorpecida, procurou uma aceitável forma de explicar o que fazia, mas quando sua mente clareou, sua razão optou por ignorar o senso de decência e afastou o mestiço.
– Não fique no meu caminho – replicou, ácida. – Eu preciso disso, mais do que pensa – chacoalhou a cabeça, dispersa. Delimitou uma curta distância de Nero e abriu friamente parte da roupa, mostrando a deformação que violava seu corpo, resultado de uma profanação da ordem natural das coisas.
– Oh, porra – a armeira praguejou com repulsa.
Nero sustentou a atenção na marca, indiferente ao aspecto pouco agradável aos olhos, mas curioso com o que aquilo representava para o atual estado de Arya.
– Estou morta. E viva ao mesmo tempo. – olhou para as próprias mãos com desprezo. – Me trouxeram de vota a vida para propósitos ruins... Mas essa chance que ganhei... Essa última oportunidade farei com que paguem. – resfolegou, enfurecida. – E eu preciso dessa energia para me manter viva! Você não entende? Estou condenada a ser uma parasita! – gritou. – E com isso eu vou matar Sebastian! Vou terminar o que comecei há séculos! – Nero estremeceu diante da convicta determinação e das chamas vorazes de ódio que cercava Arya, mas decidiu que a acompanharia.
– Eu vou com você. Vamos levá-la até ele. Também tenho assuntos pendentes a resolver com esse... – evitou o insulto em respeito a mulher aristocrata a sua frente. Estendeu a mão convidativamente cuja aura azul reluzia fortemente, Arya segurou com firmeza. – Esse será nosso pacto. Tem a minha palavra, Arya.
– Agora que os dois se resolveram, arrastem seus traseiros de volta pra cairmos fora! – Nico demandou, sorrindo.
Nero balançou a cabeça e, junto de Arya, retornou a van, certo de que as coisas estavam ganhando outras proporções.
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