Gods Among Us
Sorvida em fascínio mudo, despi-me da razão ao percorrer, com grande encantamento, as linhas negras esculpidas na lívida pele descoberta. Eram traços hipnóticos e surreais de tatuagens que estendiam-se em desenhos de múltiplas facetas, havia um padrão singular para a união e interseção das figuras, todas ligavam-se com uma harmonia visual deleitosa. Fidedigna de uma pintura gótica. Seria, sem eufemismo, uma obra de arte eternizado e em perfeito contraste a tez delicada do meu salvador. Os olhos verdes, carregados de calmaria e paciência, que provocaram o choque de reconhecimento, agora encaravam-me com curiosidade. Pude, enfim, tomar consciência do meu pequeno descuido, saindo da proteção dos braços do estranho homem.
Longe o bastante para uma perspectiva menos comprometedora, meu olhar divagou pela silhueta esguia: valorizando a própria estética dos desenhos intricados que espalhavam-se pelo peito, abdômen e os membros superiores, vestia um longo casaco negro com material similar a couro, com riquezas e complexidades de detalhes, juntamente com o que parecia vagamente um corpete preso com cordões que abraçavam bem a curva da cintura delgada. As calças seriam uma combinação, basicamente um complemento do vestuário, também escuras, ligeiramente largas para facilitar a locomoção. Por fim, as excêntricas e, para não dizer, estranhas sandálias que ele usava. E, apesar de serem uma quebra de parâmetros no quesito vestimentas – no qual eu me acostumara –, faziam muito sentido pra ele e sua aura enigmática e inegavelmente cativante.
A primeira vista, o rapaz possuía ar requintado, um possível peregrino, mas que mantinha seu estilo e classe simples e elegante. Ele também carregava consigo uma bengala cinza ornamentada, que lhe conferia uma imagem mais altiva. A face tranquila emoldurada pelos cabelos ônix, moldou-se para uma expressão mais interrogativa.
A ave azul planou sobre nós e pousou sobre o braço do homem, o que chamou mais atenção para seu anormal tamanho – que definitivamente não pertencia a nenhuma classe de animais normais. Um riso de escárnio ecoou quando o bicho esticou levemente o pescoço emplumado em minha direção, evidenciando seu nível de deboche. Podia ver muito mais as particularidades físicas do, suposto, demônio com aspectos bem familiares.
– Ow, ela gostou do que viu, V. – pisquei, aturdida com o comentário descarado. – Ei, gracinha, limpa aqui – sugeriu, fazendo sinal pro canto da minha boca. Eu segui a instrução distraída pensando ser um rastro de sangue seco resultado do acidente de minutos antes. – Está escorrendo um pouco de baba – riu cinicamente.
Crispei os lábios, irritadiça.
Tinha caído no truque de um pássaro esquisito.
– Não se irrite com Griffon, ele costuma falar o que não deve e ser... Inconveniente. – houve uma breve troca de olhares antes do pássaro alçar voo e nos sobrevoar. – E desculpe-me pela falta de cortesia, pode me chamar de V.
– V? – questionei curiosa com a ideia de uma letra solitária compor o nome de alguém. Cogitei ser um codinome, talvez um pseudônimo, assim como Lady que abandonou Mary para sua atual identidade. Optei por guardar minha curiosidade para mim, sem ultrapassar as formalidades do primeiro contato e quebrar o clima amigável. – Sou Diva. Prazer em conhecê-lo, V. E agradeço por ter... Enfim, me salvado.
– Eu mereço os créditos, huh – Griffon protestou, empoleirado em um poste, esfregando o bico nas penas das asas para mantê-las alinhadas.
– Parece que os filhos errantes das sombras agora rastejam à luz do dia – V concluiu, recôndito. – Tenho enfrentado alguns, mas foi a primeira vez que os vejo morrer definitivamente – recolhi Blood do chão, não prestando muita atenção no monólogo de V.
– Eles serem teoricamente imortais é o fator que os torna um perfeito predador para os humanos – esclareci, procurando algum rastro de Vergil em meio a cortina de fumaça densa que subira.
Vergil emergiu graciosamente em meio a nuvem cinzenta de escombros. Escovou o cabelo para trás, caminhando imperturbavelmente até onde estávamos, a vibração energética que o envolvia pulsava ameaçadoramente – feito um aviso de perigo que vertia pelos seus poros. Vagamente desnorteada pela sequência confusa de eventos, forcei meu cérebro a processar os fatos com menos ansiedade e mais lógica, embainhando Blood.
– Vergil! – chamei, aliviada com seu retorno.
Um tremor súbito, um anúncio de mau agouro, abalou a estrutura dos trilhos, entortando os pilares metálicos suspensos. Parecia um terremoto pela cadência das oscilações terrestres. Claro que não categorizando esse suposto desastre natural como uma ocorrência realmente natural.
Renascendo dos amontoados de entulhos, a criatura gigantesca assomou sobre o trem, chocando seus braços deformados sobre um dos vagões e trilhos, arrastando-o violentamente. Ele esmagou o cubículo, silenciando os gritos dos passageiros ali dentro, criando uma cascata de sangue e devorando-o em seguida.
Saquei Blood e disparei contra o Espectro colossal, movida pela fúria e adrenalina. Concentrei todos os meus sentidos para encontrar a fraqueza na couraça dura de esqueletos, praguejando com a queimação em meus olhos – prontamente atraídos por um ponto mais avermelhado que pulsava em meio a carne esponjosa asquerosa que o encobria. Afundei a lâmina no pedaço desprotegido, permitindo que o sangue escorresse pelos sulcos.
Atordoada, projetei o corpo para fora do alcance da besta, assistindo-o se decompor lentamente. Griffon rodeou os restos mortais do Espectro, avaliando o estrago.
– Bravo, bravo. – caçoou. – O que você tem nas veias? Ácido?
– Quer testar? – rebati com um sorriso mordaz, utilizando a espada como apoio para levantar. Resfoleguei, um pouco preocupada com a profunda exaustão que drenou toda minha energia.
Engasguei com a dor aguda no peito, mas recuperei a compostura antes de que notassem minha debilitação. Apertei o passo direcionando-me até Vergil, a custo lutando contra a fraqueza apossou-se de meus sentidos, fazendo minhas pernas perdessem as forças. Vergil amparou-me antes de uma queda desastrosa.
– Estou bem – garanti num sopro de voz.
– Você não comeu e nem dormiu direito – afirmou reprovador. – Nesse estado não vai muito longe. Não poderá, sequer, proteger a si mesma. Ainda pretende continuar com isso?
– Já disse que estou bem – repeti, esfregando os olhos para expulsar a sonolência. Mecanicamente fitei V, vendo nele um vislumbre de Sebastian – o que tirou meu fôlego por alguns segundos. – Temos que conversar, V.
×××
Tinha plena consciência do que perderia e que tudo que batalhou para construir através de martirizantes anos, desmoronaria. Rompeu todos os limites impostos em prol de uma afeição efêmera por uma criança que não era sua. Mesmo que esse lembrete doloroso ocupasse sua mente a cada momento que compartilhava com o garoto, não mais podia deter-se, estava sucumbindo ao seu mais íntimo desejo: recuperar seu filho. Seria tola ao negar que preenchia seu vazio emocional em Ayden, desde sua chegada, tem despejado seus ímpetos maternos e tentado a todo custo mantê-lo à salvo.
Um destino cruel o aguardava e queria atrasar o inevitável fim o máximo que suas forças lhe conferiam.
Ayden ainda estava assustado diante da possibilidade de um perigo que pulsava ao seu redor. Ao menos, com a segurança dele sob sua responsabilidade, teria autorização para fazer companhia e cumprir todas as necessidades do jovem.
Sentado, folheando um livro, ele parecia distraído na leitura para perceber o olhar avaliativo do Pecado. Thanatos tentava imaginar como seria a criança que concebera, idealizando seus traços faciais, a cor dos olhos e cabelos, o formato do nariz, os contornos diminutos que acentuariam suas características mais marcantes. Não tinha sequer uma foto como base de interpretação, pois após declarado a morte do bebê, David não deixou que o visse. Nunca soube onde enterraram seu filho.
David também nunca revelou, então, depois de certo tempo de insistência, desistiu. Talvez, a partir disso, que a relação com ele se desestabilizou – ou melhor, ruiu. Ambos viviam apenas de suas posições e servindo o mesmo Senhor.
– O pai do Dante deveria ter sido tão incrível – comentou, tirando Thanatos da sua linha de raciocínio. Surpreendida por Ayden estar, justamente, lendo a fábula de Sparda. – Eu queria que o Dante fosse meu pai, aposto que seria igualmente incrível. Ele é tão confiante e forte! Espero um dia ser como ele! – declarou exultante.
Quem diria que o ídolo de Ayden fosse justamente o mais novo dos filhos de Sparda, pensou.
– Eu não tive contato com ele, só com o irmão gêmeo dele – Thanatos declarou, iniciando o foco do assunto.
– Ele tem um irmão gêmeo? – perguntou num misto de incerteza e curiosidade, abandonando o livro e acomodando-se frente a Thanatos.
– Sim. Vergil. – riu diante do brilho de emoção que reluzia nos olhos azuis de Ayden. – Estive um tempo trabalhando ao lado dele e de Diva.
– Diva também? – consternado, fitou-a mais profusamente. – Não pensei que Diva trabalhasse pra pessoas, sem ofensa, tão desagradáveis.
– Foi uma troca de favores – cruzou os braços. – Nós daríamos as memórias dela de volta e ele executaria tudo que lhe fosse incumbido. Mas isso faz muito tempo, pra ser honesta, ela nos odeia provavelmente.
Ayden ponderou a respeito das informações, sentindo-se seguro para explorar terrenos mais ousados que sua tutora lhe confiava – colhendo os louros de seu carisma natural.
– E quem é aquele homem dormindo?
– Ele é o começo – procurou palavras para melhor elaborar uma explicação. – E o fim. A Escuridão.
– Escuridão? – repetiu, um pouco inerte, incapaz de reprimir as memórias que, agora, desenterravam-se do abismo mais sombrio de sua mente. Recordou-se de quando encontrou um garoto igual a si, que ostentava um olhar frio e a expressão apática. Era flashes aleatórios que não possuíam consistência, tampouco sentido. – Quando se refere a escuridão, fala...
– Da entidade que, basicamente, criou tudo que conhecemos. – completou ao interromper o garoto.
Ayden arfou, abismado.
– Eu não entendo... – resfolegou, inseguro. – Isso ainda é muito confuso. Significa que há deuses entre nós?
Queria oferecer apoio ao menino perdido no choque de informações, tenso pelas novas ameaças que agora estavam mais próximas e muito mais ferozes. Antes que proferisse alguma frase de conforto, seu celular tocou – quebrando totalmente sua postura. Thanatos agarrou, com amargura visível, o dispositivo e esperou a voz do outro lado da linha.
– Thanatos, venha a sala de operações. – a voz de David soou medida e rígida.
– Não posso. Estou cuidando das minhas funções. As mesmas que você mesmo me delegou.
– Isso não é um pedido – anuiu, seu tom aumentando. – É uma ordem. – desligou antes que ela tivesse chance de exigir uma resposta ao comportamento do Pecado do Orgulho.
Respirou fundo, reunindo coragem e paciência para enfrentar mais outro desafio. Afagou a cabeça de Ayden, bagunçando os cabelos negros com o gesto, partindo para uma longa trajetória. Queria entender o grau de urgência do comando de David, principalmente para que fosse a seu encontro.
Pisou firme ante a porta de entrada, que se abriu com o mecanismo automático. Estranhou vendo os Pecados presentes, mas, nada a perturbou mais que a figura pálida e inanimada prostrada na maca: o emaranhado de cabelo castanho revolto em uma caos de infinitas ondas, o semblante pacífico em conjunto com as feições delicadas e a ligeiramente emissão de energia singular.
– Oh, céus! – grunhiu, devastada. – Diva?
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