Eyes of God
Os feixes de luz infiltraram-se na estreita abertura da caverna por pequenas fissuras, iluminando a passagem claustrofóbica e fria. As paredes arredondadas estavam úmidas e escorregadias com um fino tapete de musgo lamacento arraigado nelas, cuja a estrutura rochosa não fornecia nenhum tipo de acessibilidade ou suporte para apoio com o intuito de evitar quedas durante o trajeto – o que provou ser um verdadeiro desafio considerando os pequenos percalços, como a fendas íngremes favorecendo as derrapagens em meio ao chão de pedras irregulares e cheio de declives. E mesmo com cautela, inevitavelmente, esbarrava em crostas de rochas disformes e ligeiramente pontiagudas em ângulos acentuados. Obrigando Alexander a escoltar-me e, literalmente, rebocar-me no caminho que parecia ser mais longo do que foi mencionado.
Sons de goteiras e os ecos de nossos passos reverberaram pelo espaço comprimido denunciando nossa presença. Alexander estava mais familiarizado com o percurso e, comparado a mim, atravessava facilmente as armadilhas naturais daquele lugar. Não imaginava a mera possibilidade de alguém com o ar pomposo e aristocrático, se arriscasse embarcando em aventuras em localidades inexploráveis e altamente perigosas. Mas o que é uma caverna apertada perto do Inferno?
Conforme adentrávamos mais fundo no túnel, a umidade começou a pinicar em minhas vias nasais, ocasionando coceiras incômodas. Minhas roupas antes secas, agora encontravam-se levemente molhadas, aderindo mais a pele feito uma camada desconfortavelmente gélida. Talvez isso explicasse porque as pessoas equipavam-se com o tipo adequado de roupa para tal sondagem.
A temperatura variava desde um frio tolerável a um irritante abafado moroso. A luminosidade barca diminuía gradativamente com a chegada ao destino, designando-nos ao final da busca. Alexander estendeu a mão para mim, conduzindo-me até a única fonte de luz radiante e convidativa.
Sob seu véu de proteção, jazia uma mulher em uma posição perfeitamente ordenada, sua falta de movimentação lhe concedia uma imagem surreal de uma bela figura esculpida preservada no interior de uma galeria. Sua tez era uma tonalidade chocolate em contraste com os esvoaçantes cabelos brancos, que ondulavam ao seu redor de modo fantástico e hipnótico. Trajando nada além de um diáfano vestido claro, sua postura imperturbável chegava a assustar. Sentia-me absorta na beleza e particularidade expressiva e pouco afetada da mulher, deliciando-me com a calma na qual ela instigava. No instante que, ao escutar o chamado de Alexander, ela abriu os olhos, era como se enxergasse todo o universo em sua plenitude. A vastidão dos mundos resumidos a duas orbes oculares – que monopolizaram minha atenção.
Não era eufemismo ao declarar que refletia ali a imensidão da galáxia.
– Diva. Essa é a Galatéia. – apresentou num sussurro suave, quase relaxante. – Ou conhecida como Olhos de Deus.
– Galatéia? – repeti bruscamente, quebrando o encanto. – Esse nome soa... Familiar.
A forma que o nome desenrolou-se em meus lábios, estimulando minha impressão, realmente fez com que sentisse certa afinidade.
– Foi ela que me contou sobre você. Que me levou até você. – comentou, sorrindo em vibrante expectativa. – Posso dizer que ela uniu nossos caminhos indiretamente.
– Faz muito tempo, Soph – pisquei confusa com a nomenclatura que ela atribuiu a mim.
– Meu... Nome é Diva. – corrigi, bastante imersa na passividade que enredava-se na atmosfera. – Ou melhor, Ivy. Ivy Valentine.
Galatéia fitou-me, dissecando cada traço meu – o mais singular detalhe. Estudando-me como se soubesse das minhas manias, pensamentos e atitudes. Não obstante, seus olhos portadores de sabedoria universal, que transcendiam minha vaga capacidade humana, enxergavam-me em meu mais íntimo. Descobrindo, na profundidade da minha essência, os contornos mais subjetivos da minha alma. E, eu estava plenamente consciente disso, de suas atividades a meu respeito. Não tinha total certeza, mas a ideia de termos nos conhecido em alguma outra época cruzava minha mente sempre que pegava-me encarando-a fixamente. Suas mãos alcançaram a minha e essa troca de sensações, ficou mais evidente a diferença de textura de nossa pele. A minha estava um pouco calejadas devido ao árduo treinamento que Vergil lecionava, as dela, no entanto, roçavam com sutileza, macia e ardor agradável. Não combinava com o ambiente, pois pelo que notei, fazia um certo tempo que ela, desempenhando um papel recluso no convívio social, vivia nas margens mais profundas da caverna. Seus dedos tracejaram padrões por cima da tatuagem em minha mão, percorrendo as linhas negras elaboradas que a compunham. O brilho dourado alocou-se pelos desenhos intrinsecamente cravejados na superfície de minha pele.
– Marca Ain Soph – esclareceu, seu timbre carregado de confiança e conhecimento não despertavam dúvidas. – A ligação mais poderosa e antiga que existe. Tal como o mais sombrio significado.
– Sombrio? – arquejei alto, a angústia tremulando em minha voz.
– Esse pequeno detalhe corresponde a sua manifestação em conjunto com o de seu contraparte. Ambos se apresentam no mesmo mundo e tempo. A marca, em suma, representa a imortalidade – arregalei os olhos, pasma com a constatação. – Virtualmente você e ele são imortais. Ninguém em seu nome pode matá-lo e vice versa. A destruição definitiva vem apenas pelas mãos um do outro.
– Então somente eu posso findar a vida dele? – questionei cautelosa, querendo assumir uma postura mais convincente ao certificar-me desse fato importante.
– Sim. – a clareza objetiva bastou para cessar minhas dívidas referentes a nova descoberta, o que também causou uma preocupação ainda maior.
Alexander tocou meu ombro em um gesto de amparo muito necessário, o que renovou minha coragem – como meu porto seguro. Imaginar que seria uma jornada de auto afirmação e descobertas ia muito mais do que concebia, porque, querendo ou não, saber mais parecia desbocar em um novo curso de eventos. Galatéia não relutou em oferecer sua vasta gama de conhecimento. Ela lembrava-me Eryna, mas sua imponência não poderia ser comparada tampouco descrita.
– Você...
– Eu pareço Eryna? – terminou minha casual observação. – Os poderes dela foram concedidos por mim numa proporção menor, porém em um raio limitado. Eu tenho o que a humanidade denomina como onipotência. – concluiu, impressionando-me ainda mais. – Eu existo desde o começo, minha criança. Nada escapa dos meus olhos.
– Então... – formulei mentalmente a maneira mais convincente de pedir ajuda. – Poderia dizer onde Sebastian está?
– Não. Eu não posso interferir diretamente nesse assunto. Meu papel fundamenta-se unicamente em vislumbrar os acontecimentos sem passar por eles. Essa é a minha função, raras são as vezes que tive que o fiz. Lamento.
Ouvir aquilo, porém, não abalou minha recém instigada determinação. Eu compreendia que uma responsabilidade tão grande tinha que ser executada por alguém distante dos conflitos, conservando a imparcialidade.
– Soph – franzi a testa com a insistência dela ao se referir a mim com esse título. – um tortuoso caminho lhe espera e é importante que esteja pronta pra enfrentá-lo. Não será somente sua vida que dependerá disso, mas a de milhares de seres. Aceita esse propósito ciente dos riscos que essa escolha acarretará?
Olhei para Alexander, adquirindo mais confiança.
– Sim. Eu estou pronta.
Um lampejo, como uma estrela pulsante, atravessou os olhos de Galatéia e, por um breve segundo, senti a coragem vacilar com a ideia do que ela teria visto para meu futuro ao encarar a compaixão e pena neles materializados.
×××
Seu tremor diante da brisa gélida o arrancou do transe antes que sua própria consciência entorpecida, boiando imersa a escuridão acalentadora, o trouxesse de volta a superfície. Seus músculos travados reclamaram com a posição endurecida na qual fora deixado – seu corpo estava deitado em um ângulo desigual e extremamente desconfortável –, o que gerou dores em diversos pontos. Não soube identificar a origem da primeira dor tampouco o final – pois estendiam-se queimando por seus nervos sensíveis e debilitados.
Ao abrir os olhos, pouco acostumados a iluminação fraca, viu a cortina negra de seus cabelos encobrindo parte de sua face desbotada. A precipitação das gotas e os repetidos sons delas caindo sucessivamente no chão e respingando em si, foi mais que o suficiente para acordá-lo do estágio de inércia passiva no qual se submetera. Piscou inúmeras vezes para amenizar a ardência que irritava os olhos, limpando seu campo de visão. Lutando contra as constantes dores musculares, levantou-se com cuidado para não acionar novos gatilhos espalhados pelas articulações que ocasionariam novas fontes de tormento que não ousaria arriscar.
– Onde... Estou? – perguntou, consciente de que não seria respondido.
Sua respiração vinha em jatos de vapor devido a queda de temperatura, obrigando-o a esfregar os braços desesperadamente em busca de calor. Tentava a todo custo recordar-se, mas suas lembranças pareciam vagas e obscurecidas por uma névoa espessa que não cedia aos seus incontáveis esforços. Grunhiu, massageando as têmporas, revisando todos os acontecimentos do dia anterior: era seu aniversário e o orfanato, pelo qual passará a ver como seu lar, estava arrumado para receber uma festa. Mergulhou mais fundo em suas memórias daquele dia, folheando cada pequena lembrança, encorajando o cérebro a trabalhar.
– Dante... Diva... Madre Cecília – gorgolejou, sentindo a secura rasgar sua garganta. Um incômodo estranho como se tivesse gritado por um bom tempo.
Ayden respirou fundo, frustrado por não ter sucesso. Então, desnorteado, esquadrinhou o local com os olhos cansados. Parando, chocado, seu olhar na silhueta disposta no chão sobre a luz dourada do sol refletido na claraboia. Ignorando os protestos de seu corpo, correu desajeitadamente em direção a pessoa, checando tudo que fora ensinado em questão de primeiros socorros: examinando possíveis traumas e os batimentos cardíacos. Suspirou aliviado com a certeza de que ele estava bem em plena forma e com saúde impecável. Contudo, ao vislumbrar o rosto, afastando as madeixas escuras, pôde enxergar com clareza; arfou, desconcertado.
– Isso é...
Não pode ser. Não!
Estremeceu com a verdade revelada, com a manifestação de seus mais íntimos receios. O homem, com expressão pacífica de quem estava apenas dormindo um sonho infindável e tranquilo, era idêntico a Ayden. De modo quase sobrenatural: os cabelos longos negros, com iridescência num suave fenômeno ótico reluzindo em azul assemelhava-se as graciosas penas de corvos, tremeluziam sutilmente a medida que a vidraça da claraboia dividia em diversos ângulos os feixes de luz. A pele corada, poucos tons mais claros comparado a si, ostentavam delicadeza e perfeição impecável – como se nunca tivesse sido maculada. As roupas eram tecidos escuros estrategicamente sobrepostos sobre ele. E como uma obra prima de algum artista excêntrico, cujo prazer de maquiar a morte em um nível soberbo de inspiração, o rapaz transparecia vivacidade mesmo adormecido.
Ayden, tomado pela curiosidade, estendeu a mão para certificar que havia sinais de vida. Ritmado e discreto, seu peito subia e descia de acordo com o exercício básico de respiração.
Quando seu surto inicial passou, percebeu que ao seu redor havia um círculo entalhado no piso de pedra polida. Símbolos que não reconheceu em nenhum dos livros que tivera oportunidade de estudar, pareciam sofisticados e antigos. Pareciam também inscrições de algum povo ancestral cujo significado nunca desvendaria, ainda que esse não fosse seu objetivo.
Era estranho a ideia de jogá-lo num salão isolado junto de um homem desfalecido, sobretudo pelo aspecto sombrio do local. Congelou com o súbito pensamento que lhe ocorreu: será que o tinham deixado para morrer?
Seus sentidos, sobrecarregados pela tensão, entraram em fator de sobrevivência. Mas, como uma onda gentil após uma tempestade devastadora, uma voz revoou de encontro a Ayden, tão confusa quanto ele:
– O que... Você está fazendo aqui, menino?
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