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Dark Swan

A beleza do lago de águas cristalinas e tranquilas desaguando em uma corrente mais agitada representavam perfeitamente aqueles olhos verdes que o fitavam tão ferozmente. Era como vislumbrar a imagem espelhada de sua amada mãe que gentil e humildemente lhe ensinou a amar e a respeitar a humanidade como parte integrante dela; poder sentir a vibração calorosa o embalava quando seus temores infantis lhe assombravam.

Entretanto não havia como negar o pesar inflando o peito.

Aquele rosto delicado que invadia seus mais íntimos sonhos e que pertenciam a mulher que amava esculpidos na sua adversária soava como uma cruel e venenosa ironia, entretanto, não havia nenhum rastro, mesmo o mais diminuto, de hesitação por parte dela: aquele semblante moldado de uma guerreira que não o enxergava como um aliado ou amigo, somente alguém para derrotar. Não tinha como voltar atrás em sua decisão; entregou suas armas a Lyana que lhe lançou um olhar alarmado tendo consciência de que a batalha lhe afetava mais do que o mestiço permitia transparecer pelas rachaduras de seu muro. Ela recusou-se a participar daquele derramamento de sangue desnecessário e completamente louco, Dante não a julgou por isso, entendia como a garota sentia-se, embora estivesse um pouco confuso com as motivações de Arya.

Engolindo sua insegurança inicial, brandiu sua orgulhosa Rebellion preparando-se para atacar, não podia dar ao luxo de ser cegado por suas emoções e enfraquecer sua determinação diante de um desafio, ainda que fosse alguém importante — como ocorreu com Trish anos antes.

Derrote-me e assim contarei tudo o que quiser saber, as palavras frígidas dela ainda ecoavam em seu interior.

Seu corpo não obedeceu seu comando para investir em um ataque direto e furtivo, ainda que soubesse que seria uma tarefa arriscada. Ligeiramente aturdido, bloqueou o primeiro golpe, riscando as lâminas com desleixo e distração. Tentando recuperar o tempo de reação desperdiçado, jogou-a para longe e desferiu inúmeros e rápidos cortes com a espada no qual ela, segura de suas habilidades, esquivou graciosamente de todos, porém passou de raspão pelo peito dela deixando o tecido do local retalhado revelando um pedaço da pele pálida e da enorme cicatriz. Em seu interior um alerta apitou ao compreender a gravidade do que acabara de ver, recuando.

Arya avançou mais veloz do que seus olhos treinados foram capazes de captar; anos de experiência e níveis de poder pesaram nesse momento, ele tinha que reconhecer. Tossiu sangue com o impacto súbito, uma rajada sutil de vento soprou sobre si junto com a ardência. Tocou o ferimento em seu abdômen com uma sensação de abrupto despertar, grunhiu com a dor real do corte. Em todo esse tempo tinha afundado em um profundo estado de torpor que o choque tão brusco o trouxe de volta à superfície, obrigando-o a reacender velhas lembranças empoeiradas e reavaliar suas ações — o arrancando de sua zona de conforto. Ajoelhou-se processando o tumulto de sentimentos que o atordoaram por instantes, forçando o cérebro a coordenar a onda massante de pensamentos que brotavam incontrolavelmente. Rosnou contra a tensão nos músculos que limitava seus movimentos, sujeitando-o a uma lamentável bagunça de homem que mal firmava-se de pé.

— Dante! — ouviu a ruiva gritar num misto de desespero e raiva impulsiva. Quase como se o repreendesse por ter falhado pateticamente em uma atividade que não exigia tanto esforço. Lyana tinha um jeito peculiar de demonstrar seu apoio moral. — Vamos lá, Dante! Reaja! Lute!

Mesmo sem prestar devida atenção, seu corpo e seus instintos mais primitivos, conseguia pressentir a aproximação e o risco que ela simbolizava.

— Você parece ter desistido — Arya anuiu em tom piedoso.

Sorrindo, admitindo a si mesmo a patética derrota, esperou sua sentença final, talvez uma dose extra de dor como castigo. A lâmina manchada fora apontada para ele, tão fria e imponente quanto a deusa que ela era. Resignado, fechou os olhos, sustentando o sorriso, escutou o manuseio sobre a arma e os sons que fazia ao fender o ar, porém nada veio em resposta. Ao levantar sua cabeça zonza, deparou-se com a mão estendida ansiosa e ternamente para ele.

— Achei que sabia o que queria ao empunhar sua espada — segurou a mão dela e recobrou a compostura. — Você recuou. Seu amor por ela te faz fraco. — afirmou com dureza.

— Não. Não me faz fraco. — respondeu com a expressão serena, limpando o sangue do canto da boca. — Você nunca vai entender isso, mesmo que seja parte dela.

Arya abriu a boca, sem nada sair — qualquer gesto ou frases para argumentar morreram antes de serem exteriorizadas. Seus dedos percorreram o rasgo no tecido de suas vestes, tocando com melancolia a marca rosada e grotesca que sujava sua honra sempre que o via gravada em sua tez tenra. Esse estigma a acompanhava para relembrar de como fora revivida neste século. 

Observou a cena a sua frente: Dante voltou-se para a ruiva que o bombardeava de perguntas sobre sua saúde e se ele estava bem, o meio-demônio riu da expressão aterrorizada da parceira. No fim das contas, realmente não compreendia totalmente a profundidade da ligação do mestiço com sua reencarnação, tinha conhecimento da afinidade e o carinho, mas não via a situação pelos olhos dele. Nunca experimentou tal poderosa forma de amor romântico, um pelo qual você vive e morre pela pessoa amada. Talvez nunca teria mesmo, tal dádiva era concebida por quem possuía um coração de verdade e uma alma.

Seu batimento cardíaco acelerou com a perda da reserva de energia que mantinha seu corpo vazio e artificial ativo, o que a fez desmoronar no chão feito uma marionete cujas cordas romperam.

— O que aconteceu? — Dante a amparou, preocupado. Ele examinou seu rosto cuja coloração tornou-se translúcida e mórbida, sua mão quente tracejou o tecido úmido de sangue que vertia livremente de seu peito, exatamente como uma boneca com as costuras desfazendo-se lentamente. — Aguenta firme, Arya

— Eu… — engasgou, a voz saiu arrastada e sôfrega. — Ficarei bem. — suspirou com a confusão mental ocasionada pela hemorragia. — Preciso contar… Caso aconteça alguma coisa comigo.

Dante e Lyana trocaram olhares e assentiram.

×××

Flutuando sem rumo no limbo etéreo, procurou em suas últimas memórias registradas para situar-se e compreender sua condição naquele momento. Aquele nada absoluto era vagamente familiar, como um sonho no qual esteve durante muito tempo e, somente agora, pôde libertar-se plenamente. Retornando gradualmente ao mundo hostil e consciente, incontáveis e árduas dores a saudaram com rudeza e, sem deter seus próprios lamentos, emitiu um ganido de sofrimento. Uma grande mão afagou sua testa febril, afastando a franja desordenada para colocar cautelosamente um pano úmido sobre ela; havia um carinho especial nos cuidados que a comoveu em meio ao caos de sensações distorcidas e dolorosas. Piscou sentindo os efeitos da extrema exaustão em sua visão desfocada, um pequeno coro de vozes a informou da presença de mais pessoas além da que lhe tratava. A luz parca pinicava em seus olhos desacostumados e fracos, induzindo-a a cerrar as pálpebras para enxergar através da névoa densa que a restringia. Suspirou com a rigidez de seus músculos e das ataduras que encobria seu peito e abdômen, imobilizando-a parcialmente

— Bem vinda de volta — o humor jorrou da voz masculina, lhe transmitindo conforto. — Achei que ia dessa pra melhor de novo.

— Eu já estou morta — murmurou com um forte ardor na garganta seca.

— Geralmente os mortos não vagam por esse mundo.

— Exceto se forem zumbis — reconheceu o tom espirituoso de Lyana.

— Zumbis são ficção. 

— Você também era, Dante — rebateu rindo.

— Eu sou bem real, ruiva — replicou, segurando gentilmente a mão flácida e gelada de Arya. — E como se sente?

— Sem forças — comentou sem fôlego, mirando as mãos entrelaçadas. — Devo ter ficado desacordada por um bom tempo.

— Apenas um dia — Lyana respondeu, acomodando-se em uma cadeira próxima ao leito.

— Um dia… — repetiu, fechando os olhos reflexivamente. — Talvez não tenha muito tempo.

— Assim parece estar prevendo algo terrível — a mestiça franziu a testa.

— Ouçam… — abriu os olhos, fitando o teto baixo do quarto. — Se… Sebastian não deu fim a humanidade desde que reviveu só tem um motivo... Um único objetivo que o move.

O semblante tranquilo de Dante transfigurou-se para uma face endurecida com a menção daquele nome amaldiçoado.

— Há muitos anos, duas crianças nasceram sob a sombra do adágio de uma estrela. Nessa época as crenças, por mais arcaicas que fossem, moviam a sociedade e até mesmo as leis. Uma dessas crianças é Sebastian, a personificação da Escuridão Original, o outro era seu falecido irmão gêmeo.

— Irmão gêmeo? — o ar saiu numa arfada surpresa com a história, sentindo uma tempestade despontando em seu interior.

— Surpreso? — sorriu com amargura, pigarreando. — Eu e Sebastian não somos irmãos de sangue. O único vínculo biológico era seu irmão. E foi esse garoto que acabou nos unindo no fim das contas. — as lágrimas sorrateiras ameaçaram transbordar, mas lutou contra a vontade avassaladora. 

— Eu não entendo, não faz muito sentido pra mim — Lyana pronunciou, atordoada com o fluxo contínuo de informações. — O que isso tem a ver com o que está acontecendo atualmente?

— Não é somente uma incessante busca para reaver seu poder total, ele está procurando o irmão. Se ele quisesse, de fato, causar um estrago maior pelo mundo, poderia já tê-lo feito com seu bel prazer.

— Impossível! Você mesma disse que o garoto está morto, não? 

— E está sim. Entretanto, não significa que não exista a possibilidade deles se encontrarem.

— E como? — o meio-demônio resfolegou, seu instinto em agitação máxima com um pressentimento ruim brotando de seu âmago. 

— Bem... Vocês o conhecem. Já o viram e tiveram contato com esse garoto nessa nova vida.

Dante levantou-se abruptamente, encarando Arya com a aterrador e atroz verdade.

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