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Castle of Sand

Nero estremeceu cercado e dominado pela escuridão infinita, um breu profundo e difícil de assimilar. Não havia nenhuma luz para guiá-lo a alguma saída, nem sons que não fossem das suas passadas pesadas no terreno úmido e escorregadio tampouco uma essência de vida que seus sentidos mais apurados detectassem. Estava sozinho e desamparado, exatamente como quando apenas era uma pequena, inofensiva e desafortunada criança: desfavorecido e abandonado pelos pais em um ambiente humilde e convivendo com outros como ele que zombavam de sua suposta origem – que gerou diversas teorias e especulações das mais desagradáveis.

A miséria e a tristeza da dura e inclemente realidade secando e murchando com suas esperanças gradativamente, mas como se o arrancasse do mar interminável de sofrimento sem tempo para processar, mãos amorosas o trouxe para um radiante mundo transbordando novidades, abrindo um leque de possibilidades para ter a liberdade de desfrutar de uma existência digna e, com o abraço mais perturbadoramente apertado, sentiu cada fragmento de seu espírito e coração quebrantado e subjugado ser unido peça por peça e reconstruído como se o ato tivesse o poder de salvá-lo de seus mais vis demônios internos que alimentou durante anos.

Inalou o perfume de flores, que brincou com seu olfato com a pluralidade de aromas em apenas uma pessoa, lhe prendeu mais no lugar praticamente rendido e a mercê daquela que o aconchegava com tamanha ternura; a familiaridade do contato e do fortalecimento do vínculo, o coração inquieto preenchido por tranquilidade foram seu bálsamo.

Vislumbrou o sorriso singelo direcionado a si com um fascínio sonhador, reparando em como ele ampliava-se ao mirá-lo. As mãos cálidas, regidas por um sentimento de apego, acariciavam sua face como se estivesse familiarizada com os padrões e contornos que o compunha. Seus lábios ressequidos moveram-se para verbalizar ou formular uma frase para questionar o que estava acontecendo, porém mal soube encontrar a voz que ecoava em um coaxar sufocado e entrecortado. Um som resignado e submisso que mascaravam sua impotência e lhe concedia uma imagem fragilizada que não representava em nada a confusão que discorria e sua personalidade – ser um caçador, ter uma parcela demônio e um sangue quente conferiam uma fama de casca grossa. Foi quando finalmente, em uma espantosa e inusitada epifania, entendeu: seu corpo infantil e suas mãos pequenas agarradas ao traje pesado da mulher. Não somente; a generosa figura que o embalava serenamente contra si era uma versão mais jovem de Arya - reconhecendo-a imediatamente pela coloração esverdeada dos olhos que a luz revelava.

Escutou ela cantar uma música singular que fazia um efeito calmante que o mantinha cativo nos braços dela feito um filho com sua mãe...

Resmungou enxotando os resquícios do sonho para uma área ignorada dos seus pensamentos, não querendo cruzar a fronteira que ele mesmo criou com relação a essa alucinação realista mesclada com onirismo.

– Sonho ruim, machão? – Nico perguntou com os cantos dos lábios a custo segurando um sorriso.

– Talvez – murmurou cansado e com o humor instável. Saiu do assento com a vibração negativa pairando sobre si, optando por andar por aí para espairecer.

Nico observou o parceiro sem entender sua reação com um simples devaneio.

Deu de ombros.

Caminhando pelas ruas desertas e quase em ruínas, com alguns prédios ainda intactos se erguendo a sua frente, percebeu estar sendo seguido indiscretamente – a pessoa não parecia preocupada em esconder a própria presença – e surpreendeu-se ao ver Ayden ali, com os grandes e expressivos olhos azuis o fitando com uma curiosidade típica de um garotinho da idade dele.

Não entendia bem, mas nutria uma estima pelo menino.

– Não deveria ter vindo – censurou com um sorriso de amabilidade e simpatia, levantando o pequeno menino que não esboçou nenhuma resistência com o ato. – É perigoso ficar aqui.

– Perigoso para qual de nós? – inquiriu com um tom sombriamente convicto. – Eu sei me cuidar, sabia? -cruzou os braços, fazendo o caçador rir. – E você que estava disperso e seria um alvo fácil.

– Estou acostumado a esse tipo de coisa, garoto – o soltou com cuidado, retomando o passeio com Ayden em seu encalço.

– Arrogância é um substituto da inteligência – alfinetou acidamente.

– É mesmo? – em um tom ameaçador, girou nos calcanhares e correu para pegá-lo.

Ayden desviou e seguiu em disparada para longe de Nero que foi logo atrás, porém parou ao ver uma parte mais devastada da cidade.

– Demônios são muito irracionais pensando que destruir tudo que querem vão obter algum benefício real. Destruição é necessária, mas não tudo – Nero franziu o cenho com a maturidade exprimida em cada frase do menino, um comportamento muito ponderado para alguém tão jovem e inexperiente. – As pessoas vivem sob a falta de sorte de serem mais fracas e facilmente são escravizados por seres superiores. Isso significa que a humanidade está fadada a perecer e ser sempre salva em um ciclo sem fim desde o começo dos tempos.

– Quando o mundo que vivemos está em jogo, ou lutamos ou morremos. – comentou destemidamente, adentrando uma loja saqueada. Vasculhou as prateleiras com peças avulsas espalhadas e pegou um bichinho de pelúcia. Apesar da sua óbvia falha em comunicação e interação com crianças, pensou que talvez o brinquedo fosse agradar Ayden para que o pobre garotinho não ocupasse sua mente com pensamentos tão pessimistas e desencorajadores. Aproximou-se dele, ajoelhando para ficar a sua altura e entregou a pelúcia que fora recebida com um semblante confuso, mas que transformou-se em um semblante de alegria.

– Sei que é grandinho para essas coisas... – esfrega a nuca.

– Não se preocupe, eu gostei. Obrigado. 

Esperava que o gesto tivesse iluminado o coração ferido do menino tanto quanto o sorriso dele ter lhe despertado uma emoção única de apreço.

Ayden abraçou o bichinho felpudo com carinho, partindo com o caçador com sua nova e gentil aquisição.

×××

Em um remoto passado, em séculos de glória e prosperidade ocupando o centro do palco, o antigo Palácio Lunier ostentava sua imponência e luxo, nada muito exagerado como a aristocracia humana exibia, mas ainda com seu charme. O império em constante desenvolvimento possuía uma cultura rica e tecnologias mais avançadas de seu tempo, uma civilização visionária de recursos ilimitados. No entanto, tudo que transmitia naquele momento era a decadência fruto de anos de negligência e deterioração. Não sobrou absolutamente nada para narrar a história complexa por trás dessas paredes marcadas que outrora sustentava uma das construções mais majestosas da ilha, deixando a cargo da imaginação individual dos que tiveram a sorte de achar esse lugar – que protegido por um selo mágico não se via nos mapas – o que poderia ter ocasionado a queda e, consequentemente, seu esquecimento das páginas envelhecidas e podres dos livros nas velhas estantes ali dispostas e sobrevivendo a invasão de plantas e insetos.

O amplo espaço da biblioteca parecia mais conservado que o restante dos cômodos, embora não estivesse nas melhores condições.

Seus passos reverberavam na quietude insípida para continuamente lembrá-la que sua companhia real vinha do duradouro eflúvio do período de ouro e, também, da morte – última página retratada do clã Unchant e sua sociedade antes do extermínio. 

A energia que fluía pelo ar, fundida com o oxigênio, emitindo uma espécie de radiação e causando efeito sutil de queimação em seu corpo consequente da proficiência do selo. Incômodo, mas suportável.

Thanatos caminhou em silêncio até onde um quadro enorme, sujo e enegrecido pela poeira e resíduos de musgos propagado pela umidade bastante presente, emoldurado com ouro igualmente escuro encontrava-se, na pintura havia um pequeno grupo de pessoas – Arya, Gael e um garoto que não soube identificar. Pelo que conhecia da família Lunier, inicialmente era composta também por Lumina – matriarca da casa – e a falecida irmã mais nova de Arya, Emilie. Após a perda, Arya tornou-se a matriarca e única herdeira, visto que seu pai nunca casou-se novamente. Ele tinha um amor devoto e leal a sua amada esposa e permaneceu assim até sua morte muitos anos depois.

– Caesar Thomas Lunier – informou David, alinhando-se com a jovem mulher. – Irmão adotivo de Arya e irmão biológico de Sebastian.

Thanatos arregalou os olhos com a descoberta, pasma com a ligação tão controversa.

– Um verdadeiro prodígio. Esse garoto nasceu com um inimaginável poder, por conta disso sua saúde era deteriorada. Uma criança especial com uma poderosa força latente incapaz de controlá-la que, como resultado de tamanha bênção, definhava lentamente. Um corpo incompatível. – relatou com os olhos afiados fixos na pintura. – Caesar uniu o destino de Arya e Sebastian sem sequer se dar conta disso.

Atentou-se com o que David dizia com tanta propriedade, obstinada a conhecer mais a fundo sobre a árvore genealógica Lunier, suas ramificações e de seus membros agregados.

A imagem com bolor em sua superfície não facilitava a identificação concreta das características físicas do garoto, tudo que pode visualizar era um olhar enigmático e composto, uma particularidade da nobreza.

Caesar.

O garoto oculto tomou o protagonismo da realeza e foi epicentro de tudo que atualmente acontecia por seu elo com seus irmãos. Entretanto, ao analisar mais profundamente a situação em sua totalidade, estranhou o interesse de David em uma criança que provavelmente morreu junto com os demais do seu clã há mais de dois séculos. Como o homem inescrupuloso e friamente meticuloso, ele não estaria aqui visitando um império fantasma em ruínas sem uma motivação, havia mais alguma coisa que o movia, a verdade fez Thanatos temer pelo pior – a natureza controladora e taciturna que ele emanava conhecia muito bem. Precisava garantir que sua exploração ambiciosa não fosse muito longe, e seu maior desafio seria prever as ações do Pecado do Orgulho.

– Como você já deve deduzir, o garoto está morto. – um sorriso maquiavélico desenhou-se nos lábios finos. – Contudo, ele reencarnou. – fechou os olhos reflexivamente. – O que para nós é um grande problema, querida Thanatos. – a intimidade que ela a tratava lhe revirou o estômago. – A mera existência dele é um empecilho para os planos que tenho e não posso permitir que todo sacrifício feito seja descartado.

– Do que está falando? – indagou cautelosa.

– Sebastian foi atrás da encarnação atual do irmão sabendo dos riscos e do seu estado vulnerável. Ele é a fraqueza do nosso soberano e para não haver falhas, temos que eliminá-lo. Apenas assim completaremos nossa missão.

A maneira insensível que David expressava seu desagrado e sua postura pragmática para livrar-se do suposto obstáculo deu mais certeza a Thanatos quanto a sua decisão, não desejava compactuar com essa medida hedionda.

E uma coisa que realmente a surpreendeu também: Sebastian era mais humano do que poderia conceber. Sempre o viu como uma entidade de autoridade máxima perversa e inflexível, contudo ele possuía um coração e amor pela família, de um jeito peculiar entretanto.

Seria errado arrancar a chance dele, mesmo não concordando com seus métodos. 

– Além disso, erradicaríamos uma das peças que destruiria a escuridão. Nesse jogo, daremos o xeque no Salvador.

– Quem é essa pessoa afinal? – respirou fundo, cheia de apreensão que conseguiu disfarçar.

David sorriu, Thanatos engoliu em seco sabendo o que aquilo significava.

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