Broken Bubble
A inicial falta de ação de Lucrécia divergia muito com sua natureza afogada e descontraída que abertamente transmitia. Vê-la com um comportamento destoante do habitual fora estranho; ela inclinou ligeiramente a cabeça para poder ter uma visão melhor de mim, seu semblante estava estático e os olhos opacos pareciam sugar-me para as profundezas de uma lagoa funda e pouco confiável. Um calafrio percorreu minha espinha e arrepiou todo meu corpo com a predominante impressão que a garota encontrava-se em uma espécie de transe e seu cérebro operasse com metade da capacidade exigida para as funções normais e convenientes de raciocínio básico. A lerdeza, para alguém com uma personalidade mais flexível, não era o que poderia considerar comum e parte do pacote.
— Ei, Lucrécia? Olá?
Franzi a testa com a atenção fixa e perturbadora depositada em mim, quase que vigiando-me e aguardando que fizesse algo para depois ter uma reação adequada.
— Terra para Lucrécia!
Pigarreei o mais descaradamente possível, sem qualquer discrição. Como se um apito tocasse — um estalo eficaz —, Lucrécia piscou mais ativa e sorriu sem graça, parecendo constrangida e abobalhada. Seguimos para a casa dela, conversando trivialidades pelo caminho. Contudo, não deixei de reparar que as roupas dela estavam abarrotadas e até sujas, um detalhe que para ela tinha absolutamente nenhuma importância e, provavelmente, nem deve ter mesmo. Não sou exemplo de asseamento, sobretudo pelo deplorável estado de minhas roupas atuais: havia rasgos aqui e ali pelo tecido que atribuía um ar mais desbocado e preguiçoso, uma imagem que não queria passar. Assim que tratamos de organizar as compras, fui arrumar minhas coisas para partir cedo junto de Vergil. Pela praticidade optei não carregar tanta bagagem e decididamente conclui que os farrapos que trajava não durariam muito pelo frenético ritmo das lutas e caçadas. Sem alternativa, separei tudo para que, dentro do meu orçamento, comprasse itens críticos. Espectros arruínam tudo que cruzam seu caminho.
Deitei na cama vagando lentamente pelo sedutor mundo dos sonhos, este conduzia-me aos recantos mais simples de seu vasto reino, sem oferecer resistência, tranquilamente, entreguei-me ao abraço acolhedor da inconsciência.
No universo onírico, lábios macios encostaram com extrema delicadeza em meu pescoço, roçando-o sob minha pele eletrificada e sensível causando múltiplas sensações. Igualmente cuidadosa, as mãos errantes deslizaram pelo meu corpo sem aplicar pressão, explorando com ganância contida, mas meus instintos mais sombrios desejavam mais dele e com menos pudor. Arfei timidamente, meu coração batia loucamente sob efeito conjunto da ansiedade, da expectativa e da intimidade. Meus dedos afundaram no cabelo sedoso que tanto amava, puxando-o para um beijo apressado e faminto que fora retribuído com intensidade duplicada — na qual embebia-a tamanha força. Sentia-me cativa daquele abraço poderosamente esmagador, perdida no sabor viciante dele e ansiando mais. O gesto serviu para aprofundar a conexão já existente. Sequer diferenciava onde meu corpo começava e o dele terminava.
Ao nos separarmos para recuperar o fôlego, sabia que minha aparência seria comparada a uma maratonista pelo rubor excessivo e o modo desajeitado que tentava respirar. O sorriso afetuoso que lançou a mim, paralisou-me; a manifestação irreal de Vergil? Não. Definitivamente não era ele. Quando meu cérebro processou melhor as informações recebidas, não interrompi a fantasia de imediato — sendo honesta, diria que gostei da experiência. Minhas emoções prenderam-me aquele curto período: permitindo que deleitasse-me diante do desejo mais primitivo presente. Unindo nossas testas suadas, feito dois amantes envolvidos em um ato de luxúria e amor, tão ofegante quanto eu, ele murmurou uma pequena frase que, por alguma razão, aflorou diversos sentimentos em meu peito.
— Eu te amo, Dante.
Abri os olhos com o susto repentino e escutei um gritinho bem ao meu lado, o que desencadeou outro bendito susto em sequência. Praguejei mentalmente, flagrando Lucrécia caída próxima a cama. Ela entrou em pânico e deu inúmeras desculpas esfarrapadas para coincidentemente estar no cômodo e ter se assustado comigo. Nenhuma delas realmente me convenceu.
Suspirando com a derrota, ela limpou a garganta.
— Em minha defesa, só estava checando. — pousou a mão no peito e ergueu a outra, atuando como uma testemunha de um crime no tribunal em postura de juramento. — Você sussurrou o nome de um homem. Esse Dante é o seu namorado?
Enrubesci com a revelação capciosa.
— Ex — disse insegura, porém objetiva. Não tinha como dissecar mais a respeito dele e do que significou pra mim, porque, infelizmente, não lembrava tudo. Meu conhecimento resumia-se ao relato superficial de Vergil — que não narrava a realidade com muito otimismo. Entretanto, o sonho instigou minha vontade para saber mais. Se tivemos uma relação tão simbólica, gostaria de entender como chegamos a essa distância afetiva. Uma parte incoerente minha ousou cogitar um encontro tórrido com ele, ignorando o mais básico do desenvolvimento de relacionamentos. Normalmente não se dorme com o ex.
— Desculpe se soar intrometido, mas você parecia entretida e feliz. Até sorriu. Seja lá como seja esse Dante, posso arriscar que ele foi seu grande amor… — a face agitada converteu-se em uma careta de assombro. — Perdoe-me, Diva! Não queria te fazer chorar!
Chorar?
Abismada, tracejei com dedos trêmulos minhas bochechas úmidas e pisquei, agora ciente das lágrimas que escorriam livremente. Como eu não percebi antes?
— Não se preocupe, está tudo bem — assegurei com um sorriso falso. — Eu nem notei…
Preciso reencontrar Dante e sanar as minhas dúvidas… Não! Eu tenho uma missão! Não posso desviar dela por um mero capricho do meu coração confuso!
Chacoalhei a cabeça, espantando pensamentos indevidos e desnecessários — descartar tudo era estritamente essencial para findar a guerra vindoura. Lucrécia escolheu ficar calada e agradeci internamente por essa sábia decisão, não suportaria mais escavar esse assunto que soava mais como um terrível fantasma que assombrava-me e resolveu testar minha sanidade e construindo meu calvário.
Pela manhã, mais precisamente de madrugada, partimos para estação de trem semi deserta da cidade pseudo abandonada. Evitar despedidas era o modo mais saudável para um desfecho, assim pôr um ponto final em um capítulo e começar um completamente novo — principalmente sob o preceito de que se apegar seria um grave erro cometido nessa jornada e cortá-los seria fundamental para segurança da família. Enquanto eles estivessem protegidos da rotina maluca e perigosa na qual girava minha vida, valeria a pena. Para consolar Lucrécia, escrevi uma carta e a depositei na cômoda para que fosse achada tão logo quando despertasse.
Bocejei.
As consequências de uma conturbada noite mal dormida enxertava minha carne, dificultando a locomoção e atravancando meus músculos bastante desgastados com o estresse dos últimos dias. Em contrapartida, Vergil seria a definição de classe e postura, ele possuía um certo grau de insônia e aparentava mais disposição que eu em muitos âmbitos, um exemplo de resiliência. Adentrei o vagão designado e respirei fundo, um desafio complexo permanecer atenta ao tempo que seu corpo fatigado implorava por algumas preciosas horas de sono extras para compensar a derrocada de mais cedo.
— Dormiu mal? — Vergil indagou com a voz aveludada tão característica.
— Mais ou menos. Dormi, mas não o suficiente.
— Descanse. Não adiantaria nada prosseguir quase caindo de sono. — aconselhou com os olhos fixos em mim, sorri com a preocupação dele e segui sua prudente recomendação.
Descansar por uma hora seria mais que o meu corpo carecia.
×××
Soltei vapor no vidro da janela, desenhando padrões aleatórios com o indicador como uma distração esdrúxula de passatempo. O ócio prolongado e o tédio não tornavam a viagem mais proveitosa e, ainda que meu acompanhante talvez pudesse oferecer algum diálogo produtivo, não pretendia aborrecê-lo com bobagens. Detestava a noção da minha mente não trabalhar e não ocupar-se com uma atividade independente, justamente por ela acabar ultrapassando a linha tênue que separava meu lado destemido e o medo colossal do encontro com Sebastian. Assumi o manto de Arya e a responsabilidade que discorria disso, porém, tinha ciência de que a cada passo irremediavelmente me aproximava da morte. Balancei a cabeça, espalmando as bochechas para voltar a pensar sem pessimismo.
— Não deveria se torturar tanto com preocupações desse gênero — Vergil fitou-me com uma expressão um pouco mais dócil que o seu habitual. — Você enfrentou muitas provações para temer mais uma. Se continuar com essa visão, vai ser rapidamente destruída.
Um sorriso sincero desenhou-se em meu rosto, tanto pelo descomunal esforço de Vergil em ser mais delicado quanto pelo auxílio moral que ele proporcionou.
— Eu vou tentar ser mais otimista. — descansei a mão sobre a dele para mostrar meu agradecimento. — Você não é ruim para dar conselhos, quem diria, não é?
Vergil mexeu a cabeça como se estivesse desesperançoso com meu senso de humor fora de hora.
— Quando uma garota se viu numa missão, com Vergil Sparda, surgiu essa canção — entoei criando uma melodia própria. — Lutou com o guerreiro de cabelo branco, um diabo astuto. Os malditos espectros com seus dentes rasgaram tudo. — empolgada com a atenção de Vergil, apesar do semblante ser o estóico usual, continuei: — Vieram me pegar, tentaram me matar. Até minhas roupas ousaram retalhar. Os chifres do diabo fizeram grande estrago; gritou grande demônio: "Tá afim de apanhar?"
— Isso não aconteceu — replicou com apatia.
— Dê um trocado pro seu devil hunter; Oh vale abundante, oh vale abundante. Dê um trocado pro seu devil hunter. Oh vale abundante — segurei o impulso de gargalhar, mantendo o ritmo da música. — Nos confins do mundo, pegou espectro imundo e deu uma surra pra não esquecer. Os monstros trespassou; Ele os exterminou e foi nas cidades que eles vem! Ele os dizimou, até o fim lutou. Ele é quem nos garante; A batalha cessou. Essa é a canção de um grande campeão. Arrumem um vinho pra ele então! — Vergil suspirou com minha divagação fantasiosa exprimida pela canção. — Dê um trocado pro seu devil hunter; Oh vale abundante, Oh vale abundante. Dê um trocado pro seu devil hunter. Ele é quem nos garante! Dê um trocado pro seu devil hunter; Oh vale abundante, Oh vale abundante. Dê um trocado pro seu devil hunter. Ele é quem nos garante! — terminando minha interpretação dramática, identifiquei um arquear quase imperceptível no canto dos lábios do mestiço o que poderia categorizar como um sorriso legítimo. Com nossa convivência, após ele recuperar as memórias, eram raras as ocasiões que sintetizava o que sentia a ponto de externá-las. E conseguir tal proeza me colocava num patamar mais alto de confiança.
Chegando na estação para desembarcamos, usei o recurso de mapa do celular para buscar a loja mais perto e segui com longas passadas pela plataforma. Queria comprar exclusivamente o básico para não acabar em frangalhos e também seria uma oportunidade de espairecer a mente.
Segurei a mão de Vergil para convencê-lo a embarcar no lugar comigo. Ele não parecia muito adaptado às convenções humanas e, pelo meu poder de observação, diria que o meio-demônio detestava pessoas e interação social. Peguei uma camisa com tons que se adequam ao seu gosto; azul, preto e cinza mais especificamente. Franziu a testa assim que indiquei algumas peças.
— Viemos aqui para perder tempo? — perguntou impassível, mas bastante paciente.
— Precisamos de roupas novas, você sabe.
— Não se preocupe comigo, estou bem assim.
Dei de ombros, separando poucas roupas para comprar. Convenientemente, permitiram que saísse vestida com minhas novas aquisições ao pagá-las. De energia renovada, dirigimo-nos para uma igreja em uma área mais isolada do centro — na verdade, por intermédio de uma vibração estranha que manava do local que parecia abandonado que nos atraiu.
— Que estranho. — murmurei pensativa. — Acho que esse é um bom lugar para ficar por enquanto. Bem, não gastamos dinheiro com hotel. — vasculhei minha bolsa com o intuito de achar o celular, logo digitando o número de Lyana e torcendo para que atendesse de primeira. O coração batia descompassado e a palma da mão suava horrores com as chamadas. Pronta para cancelar a ligação, ouvi uma voz rouca responder do outro lado da linha.
— Alô? Lyana está?
— Diva…? — puxei o ar com força para os pulmões, incapaz de verbalizar uma frase coerente. — Não precisa falar se não quiser. Devo ter pisado muito na bola com você e entendo que não queira conversar comigo.
— Eu…
— É bom ouvir sua voz, no entanto. Espero que meu irmão esteja cuidando bem de você.
Em uma explosão de pânico, desliguei o celular e cambaleei para sentar em um dos bancos, mortificada.
Não! Não estou pronta!
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