Blood Sin
As vozes masculinas produziram zunidos em minha mente exaurida, tons distintos em uma incessante e enfadonha troca de ideias – uma rede de compartilhamento bastante restrita ao círculo de homens presentes. Não fazia questão de acompanhá-los, preferindo o aconchego do isolamento, uma opção menos estressante que obrigar meu cérebro a operar na carga máxima com o tumulto desordenado de pensamentos.
Meus dedos preguiçosamente viajaram pelas linhas exóticas que compunham a marca em minha mão, imaginando se seria algum tipo de ligação com o que vinha ocorrendo nos últimos tempos – principalmente se possuía relação com Sebastian.
Com um suspiro pesaroso, recostei no sofá, olhando para o teto. O giro monótono do ventilador de teto recordava-me de tempos mais tranquilos, de momentos mais agradáveis e de que vivi um período de genuína felicidade mesmo com todos os percalços. Ao mergulhar mais fundo nesse baú de memórias, mais sentia-me flutuar em meio a um limbo sem fim. Como rolos de filme, uma a uma, cada emoção e eventos passados foram revividos: quando cheguei acidentalmente nessa dimensão, conhecendo Dante e construindo um relacionamento estável com ele. Até mesmo a lembrança mais agridoce, a primeira vez que estive de corpo e alma com Dante. E parando para analisar nosso estado atual, certamente não seria nem a sombra do que foi um dia. Ocasionalmente dormíamos juntos e era mais para alimentar o costume e uma forma de consolo dos problemas que, de fato, um ato de amor – com um pouco de desgosto por ter deixado que algo que realmente valeu a pena lutar e que arriscaria tudo para reaver, tenha virado uma conveniência.
A sublime decadência das minhas conquistas e a lamentação do que restou.
Vivenciar novamente aquilo apenas por ficar desocupada e com abundante tempo livre, fez como que acreditasse que fosse uma masoquista. Ninguém em sã consciência remexeria em partes felizes de sua vida antiga pra comparar com a desgraça do agora – exceto se quisesse se condenar pelos caminhos errados e escolhas mal feitas durante esse ínterim, o que poderia ser o meu caso. Toquei minha testa com o propósito de massageá-la, deslizando a mão para o topo da cabeça. Bocejei com os efeitos da noite mal dormida e voltei ao incidente, ainda conseguia sentir as mãos fortes esmagando minha traqueia e bloqueando a circulação de ar: Vincent não estava só com um sério problema em controlar sua escuridão, que lhe concedia o poder de modelar sombras, mas também perdendo parte da própria razão e livre arbítrio.
Um estrondo interrompeu minha linha de pensamentos, atraindo minha atenção para o causador do burburinho. Nero parecia ter corrido uma maratona pela maneira irregular de sua respiração, ele inspirava rápido e forte então respirava num único impulso superficial. Seu olhar percorreu toda extensão do escritório, procurando por algo ou alguém. Tudo isso desenrolando em segundos: meu olhar cruzou com o dele, no meu havia curiosidade e no dele, uma faísca – não, uma labareda – de preocupação desesperada.
Encurtando a distância entre nós, Nero agarrou-me com um pouco de rudeza – uma característica natural dele, uma vez que não conseguia ser tão suave em suas investidas – e apertou-me em um abraço imbuído de afeto e exacerbada e desconcertante apreensão. Todos encaravam a cena tão confusos com a situação quanto eu – menos Vergil, ele manteve uma distância segura por questões morais possivelmente. Soltei um gemido com a pressão que ele exercia, apertando-me contra ele como se quisesse se fundir comigo. Nero sussurrava baixo, frases inteligíveis, que arrepiavam minha pele com a proximidade e intimidade do momento. Conhecia-o suficientemente bem para saber que tinha uma razão para o comportamento aparentemente carente e emocionalmente abalado. Depois de muita relutância, apreciei o gesto reconfortante, retribuindo-o na mesma proporção. A mão dele descansou confortavelmente em minhas costas, porém não havia o segundo contato, o calor suave do Devil Bringer. Desfiz o abraço e fitei o braço direito, abismada pela falta do membro.
– O que...? – minha voz perdeu-se no horror engolfante. – Seu... Devil Bringer...?
A mão humana de Nero percorreu meu ombro e desceu pelo meu braço. Por mais que não existisse explícito a luxúria ou qualquer outro sentimento além da amizade, não pude evitar o rubor.
– Fico feliz em saber que Dante está cuidando como deve de você – provocou, lançando um olhar desafiador ao meio-demônio.
– Eu cuido muito bem do que é meu – pisquei com a aspereza e hostilidade em Dante, também na resposta vagamente indócil. – Como pode ver, ela está ótima.
Antes que Nero retrucasse Dante, pisei firme e em tom imperativo, exigi uma explicação.
– Diva – o telefone tocou alto, ecoando pelo escritório, antes que pudesse ouvir o esclarecimento. Dante atendeu e em poucos minutos desligou, esfregando a barba mal feita. O que eu tolamente insistia em convencê-lo de aparar, o que conduzia a comentários a respeito de nossas atividades noturnos e o embaraçoso e comprometedor detalhe de gostar do atrito que o roçar dele em minha pele ocasionava.
– Temos um trabalho – anunciou, estudando cada um de nós, talvez avaliando as opções de parceria disponíveis. – Você – apontou pra mim, surpreendendo-me. – E... – olhou para Alexander. – Você fica e cuida do garoto – coordenou, referindo-se a Vincent que ainda estava em processo de recuperação. Então dirigiu o dedo criticamente pelos dois restantes, deliberadamente ignorando Vergil descaradamente e parou em Nero, como se ele fosse a pessoa indicada para o serviço. Lancei um olhar cúmplice a ele, que retribuiu com um arquear de sobrancelhas indiretamente ciente dos métodos de Dante para resolver os problemas complexos. Ao menos, comigo e ele perto, contribuímos com a comunidade em impedir a destruição de patrimônio público desenfreada do meio-demônio. Lutar, obviamente, trazia danos ao nosso redor, mas Dante conseguia dobrar absurdamente esse feito – com entradas triunfais e que deveria se resumir em uma única palavra: porta. A veia dramática e a alta dosagem de adrenalina, eram as duas combinações extremamente perigosas, unidas no mestiço significavam dor de cabeça pra mim.
Detendo poucos minutos, troquei minhas roupas – as que usava outrora serviam para passar o dia trancada no escritório me chafurdando em auto piedade e roubando os sundae de morango que Dante comprava –, e me equipei com minhas armas. Ajustei a luva sob olhares atentos de expectadores curiosos, Dante ostentava a tranquilidade plena e Nero portando nada mais que um olhar vago e cheio de nuances de sentimentos, nada que me desse uma resolução.
Abri a porta e vi as dobradiças frouxas e que desabaram no chão com um forte baque. Suspirei, anotando mentalmente mais um item em minha lista de consertos a serem realizados por ali. Eu contabilizaria o dinheiro do prejuízo e colocaria na conta de Nero, mas, no quesito destruição em massa, ele e Dante ocupavam a mesma posição no pódio. E entre o certo e o duvidoso, escolhi a estabilidade do que eu já sabia e não uma falsa certeza.
A luz fraca recebeu-nos com o calor ameno ao sairmos do escritório – a vista limpa do céu e a brisa fresca quase me convenceu de sair mais vezes para contemplar os pequenos prazeres de estar viva. E levando em conta meus hábitos atuais e minha incapacidade física e mental que encorajam minha reclusão do mundo, não teria realmente apreciado legitimamente tudo que meus olhos enxergavam. Minha rotina resumia-se em desenterrar informações importantes e cruciais do meu subconsciente para adquirir coragem necessária pra seguir meu odioso propósito. Tinha que ser honesta comigo mesma: meu receio e falta de empenho me acomodaram. Não sou como a Arya. Não tive anos de preparação psicológica e aperfeiçoamento das minhas habilidades e competências. David subjugou-me facilmente naquela ocasião e ele era apenas um dos servos do Sebastian, nos termos de hierarquia, os Pecados só estavam abaixo dos Abissais.
Um arrepio atravessou meu corpo ao citar os Abissais.
Chacoalhei a cabeça, recobrando a consciência e o controle de meus pensamentos. Se os deixasse seguir livremente, eles me guiariam a um caminho sem retorno para as diretrizes mais sombrias e inóspitas de minha mente.
Uma moça jovem, apoiada na van com a placa ‘Devil May Cry’ em neon azul cintilante e chamativo que só Dante teria a ideia de presentear – mesmo porque foi ele que deu ao Nero. Teoricamente seria uma negociação e, como o próprio meio-demônio comentou, a expansão de uma nova franquia. A parte de terem serviços móveis facilitaria pra todos os envolvidos e questionei-me se isso nos agregaria mais valor ou seria mais uma fonte de problemas. Nero, apesar do gênio, parecia carregar consigo mais responsabilidade.
A mulher aproximou-se, jogando o cigarro fora, seu olhar preso em mim – examinando-me em silêncio. Então, um largo sorriso se projetou em sua face, revelando uma fileira orgulhosa de dentes brancos – o que também me veio a mente de que fumando naquela quantidade, esse privilégio seria levianamente tomado –, notei com curiosidade como sua pele exposta estava cheia de tatuagens e a maioria – senão todas – faziam uma referência a armas.
– Diva, certo? – perguntou, a voz clara e objetiva. – Eu sou Nico. Nero me contou bastante sobre você.
– Prazer, Nico – ela olhou Nero de relance, quase como se tivesse provocando-o com o gesto. – Dante. Vamos?
Nico piscou, surpresa ao escutar a menção a Dante. Foi naquele instante que ela focou no meio-demônio, havia uma turbilhão de múltiplas emoções se embaralhando em suas feições antes vagamente debochadas.
– Você... – arfou discretamente, articulando as palavras. – Você é o famoso Dante. Eu sou neta da armeira que criou suas armas fodásticas – Dante sacou Ebony e Ivory em um rápido flash, visualizando-as como uma comoção pessoal. – Minha avó falava muito de você.
Suspirei.
Não um suspiro de cansaço. Nem de tristeza. Era uma condição de respeito ao luto e as lembranças de Dante. Graças a Alexander que possibilitou o contato de minha dimensão original com a de Dante que pude, através das novels, ganhar mais conhecimento imersivo sobre a história. Nell Goldstein, a criadora das pistolas gêmeas e figura materna de Dante em seu período como mercenário, morreu de modo trágico e, como todas as perdas na vida dele, essa deixou uma fenda em seu coração.
No fim das contas, todos tinham sobrevivido a duras penas de um coração partido.
×××
As horas arrastaram-se sofregamente lentas, Nico pilotava aquela banheira como se estivesse fugindo da policial – o que também não seria uma novidade considerando a velocidade, muito acima do que indicava nas placas. Podia afirmar que a maneira que ela conduzia nos lançaria de encontro com o chão a cada arrancada, e nesse ritmo pegariam nossos restos e destroços da van com um rodo. Os pelos em minha nuca se arrepiaram com a risada e a tranquilidade que ela esboçava. Sentia meu corpo voar em diferentes direções com as brusca freada e batia contra o encosto do assento com as descoordenadas chacoalhadas.
Meu olhar cruzou com de Dante por alguns preciosos segundos – que sorriu em apoio moral –, ignorei o tremor em meu interior ao captar uma sombra derramar-se nele. E antes de poder debater qualquer assunto com o mestiço, Nico estacionou com truculência, comemorando o sucesso da empreitada.
Foram dadas as orientações do trabalho e não pude evitar revirar os olhos com a elaborada – ironicamente brilhante – ideia de Dante: um casamento falso para atrair todos os alvos para um único ponto. Se valendo de que minha aura, em todo eufemismo já utilizado numa sentença, serviria de chamariz. Em parte seu lado bem humorado me livrou do pesar e do mal pressentimento, o que, também, eliminou a névoa de incertezas de meu coração. Aproveitei o sossego momentâneo e a descontração para não pensar demais – amenizando a pressão psicológica auto imposta.
Nico forneceu uma prótese para Nero, tirando dele uma boa comissão pelo projeto o que arrancou um sorriso vitorioso da armeira. Observei a interação de ambos e estranhei um pouco, não por achar uma incompatibilidade, mas pelo fato de Kyrie não ter sido citada.
Dei de ombros, optando em deixar minha curiosidade em segundo plano.
Nico permaneceu na van, no balcão onde desenvolvia seu próximo Devil Breaker com os recursos dispostos e bem organizados implantados no veículo. Dante e Nero estavam um pouco mais distantes, aparentemente conversando e não querendo interrompê-los, usei meu controle sensorial para ocultar minha presença ao me aproximar, escutando uma parcela do que eles tão seriamente falavam.
– E... Ele matou Kyrie bem diante dos meus olhos – cerrou os punhos com força esmagadora, a raiva dele pulsando ao redor. – Eu não pude fazer nada. Ele tomou meu braço e matou minha mulher.
– Não vou impedi-lo e entendo seu desejo de vingança – Dante concluiu empaticamente.
– Ainda... – um rosnado embebido de ódio ressoou. – Kyrie tinha acabado de descobrir estar grávida. Nunca vou perdoar o que esse maldito Sebastian fez.
– O quê? – engasguei, o horror dissolvendo-se em grossas lágrimas.
O meu mundo desmoronou.
Completamente.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro