Within the Shadows!
Amon deleitou-se com o sabor refinado e doce do vinho. Mexeu a taça transparente com líquido rubro, vendo através dele a garota parada a alguns metros a sua frente. Ela entretia-se destruindo um por um dos brinquedos que lhe presentearam: arrancando partes do corpo, desfiando o tecido que os compunha e retaliando os pacotes outrora perfeitamente embrulhados. Nenhum deles aquietava os anseios da jovem tempestuosa, que aos poucos transformava tudo que colocava as mãos em lixo. Dinheiro nunca foi um problema, eles tinham suficiente para satisfazer qualquer vontade de Diva. Inclusive comprar uma loja inteira de brinquedos para que ela quebrasse tudo se isso fosse de seu agrado.
Diva torceu a cabeça de um urso de pelúcia rosa, separando-o do corpo rechonchudo. Atirou o que sobrou para longe e bocejou entediada. Seus longos cabelos negros formaram uma cortina escura quando ela inclinou levemente para o lado, avistando o novo alvo de suas travessas intenções. Amon apreciava a visão celestial da garota entre o caos, poderia retratar e eternizar em um quadro para que todos tivessem a chance de contemplar tal beleza.
Diva engatinhou, dirigindo-se a única caixa intacta com enfeites roxos. Rasgou o papel, violando seu conteúdo com curiosidade e pressa. Amon abriu um sorriso caprichoso ao vê-la erguendo dois bonecos de pelúcia feitos sob encomenda com as características físicas de Dante e Vergil. Ela os estudou por alguns minutos, tocando-os com cuidado para que com seu entusiasmo não os despedaçasse. Eram iguais de uma maneira mais infantil e com padrões anatômicos reduzidos, certamente criados para ser suave e compacto ao toque. Diva emitiu uma graciosa risada, abraçando-os contra si. Seu olhar meio vago e com sorriso aprazível.
Debruçou-se ligeiramente sobre a mesa, seus dedos brincando com a pétala azul que voou despreocupadamente em sua mão. Após um breve segundo, Diva tracejou com seus dedos pálidos a pelúcia Vergil ocupando toda sua atenção nele e deliberadamente esquecendo Dante. Embora Diva afirmasse gostar dos dois, algo que pessoalmente Amon achava uma trama trágica familiar bastante elaborada, era indiscutível que ela tinha maior afinidade com o mestiço mais velho. Refletia isso no modo como se comportava diante dele, mesmo tendo uma segunda alma habitando seu corpo. Aquela personalidade não era originalmente de seu mestre, seria uma mistura da essência de ambos no qual a escuridão manipulava uma grande parcela. E, ainda assim não entendia a razão disso, David dissera em certa ocasião que Dante era o soulmate de Diva, mas talvez a Linha do Carma que conectava Vergil a Diva fosse muito mais poderosa que o Cordão Prateado. Se for o caso explicava tamanha empatia de ambos. Diva elevou a pelúcia Vergil, sorrindo tão afável que parecia vê-lo em sua figura real. Levantou-se num sobressalto, o vestido vermelho desceu até seus calcanhares com leveza. Amon bebericou alguns goles do vinho, assistindo a garota distraída com seu adorável brinquedo.
— Ora, querida Diva, por que escolheu só Vergil?
— Vergil foi o único que brincou comigo. Dante não brinca comigo, logo ele não tem graça. Escolho o Vergil.
Amon despejou uma pequena quantidade a mais da bebida em sua taça e riu do comentário. Diva andou em sua direção com sutileza, locomovendo-se como a brisa que arrastava folhas e pétalas pendentes. Quando aproximava-se, tão bruscamente, despencou contra o chão deixando o pelúcia Vergil escapar de suas mãos e lançado aos pés de Amon. Ele correu para socorrer a moça que aparentava estar mais pálida que o normal. Geralmente sua pele possuía tons rosa e a falta de cor nela significava algo muito errado. Olhou para o pé dela e descobriu a causa da queda: seu pé direito simplesmente quebrou e descolou do resto. Não era como se tivesse sido cortado, e sim como se o corpo dela entrasse em um tipo de colapso e estivesse se deteriorando. Ambas as extremidades derretiam grotescamente, em uma mistura doentia de sangue, tecidos e músculos.
— Pelo que vejo minha hospedeira está tentando dar uma sobrecarga nesse corpo, destruindo-o. Se destruindo mais precisamente. Como se isso adiantasse de algo. Ela será minha enquanto eu quiser que seja.
Diva encarava seu estado com indiferença. Ela balançou a mão, observando a massa desprender e pingar no chão. Amon ficou intrigado com a investida um tanto quanto suicida da ocupante original do corpo. Ela estava mesmo disposta a se destruir para impedir ou, ao menos, fazer a alma parasita sair a força dela — considerando uma atitude estupidamente corajosa. Amon ajudou a jovem, ajustando o vestido. Em seguida, cada parte que parecia não ter jeito fora reestruturada: regenerando ossos e músculos.
Plenamente recuperada, trouxe o boneco pelúcia de volta a prisão restritiva de seus braços. O incidente anterior prontamente esquecido. Thanatos iria estranhar o novo objeto de afeto da jovem. Ela não gostava dessa interação desnecessária entre os filhos de Sparda e Diva, optando ser contraria a tudo aquilo. Talvez se ela estivesse presente teria feito o possível para evitar que Amon cedesse aos desejos de Diva. De todos os Sete Pecados, sem dúvida, o pecado da Luxúria era mais susceptível a sua deusa que os outros. David, como principal e líder, desempenhava o papel fundamental de paternidade controlando a instabilidade e impulsividade da garota, ele a mantinha sob seu comando enquanto seu mestre precisasse dela. Thanatos era a mais repressora, por isso cabia a Amon o equilíbrio e favorecer Diva suprindo suas vontades. O pecado da Inveja classificaria aquele contato como perigoso. Entretanto, ela não estava. Não poderia bater o pé e dar ultimato a ele sobre como não agir. Amon não tinha real interesse nos assuntos que Thanatos resolvia, contanto que não atrelasse a ele. Então quando ela concedeu a ele a proteção e custódia de Diva — meio contragosto —, soube que demoraria a retornar. Não havia uma previsão exata, mas tinha certeza que seria poucos dias.
Desde que se instalaram na Rússia — mais especificamente em Peterhof —, tudo tornara-se mais calmo até aquele instante, então não havia absolutamente nada para causar complicações ou afobação. Mesmo por que, os mestiços não faziam ideia da localização da jovem. Provavelmente procurariam incansavelmente como dois amantes apaixonados, sem nunca encontrar pistas concretas: os rastros dela, eles nunca acompanhariam. O último encontro deles — semanas atrás — deixou Diva incomodada, quase poderia supor, magoada. E, ela não desistiu de querer brincar com Dante e Vergil, e um novo integrante desse jogo que ela alegremente alegou ter atacado com seu sangue obrigando-o a amputar o próprio braço. Seja quem for esse rapaz, Amon diria que ele tinha sorte de ter perdido somente o braço, as consequências seriam muito mais graves caso o sangue venenoso entrasse em todo seu sistema circulatório. Diva não demonstrava arrependimento pela sua investida violenta, sua preocupação era quando se juntaria novamente com eles para recomeçar o jogo.
Diva invocou Yamato que ironicamente encontrou sob os domínios do seu novo passatempo, o mais novo descendente de Sparda. Amon mirou Diva, ela com o sorriso tão perverso e a voz aveludada, exclamou:
— Quero ver aquele garoto. Está na hora de dar a ele um pouco de diversão.
***
A canção que ela entoara reproduzia-se repetidas vezes em sua mente. Transmitindo em seu tom ritmado e afinado traços de perversidade e sutil inocência encantadora. Quase podia ouvi-la, sentir o estupor que lhe embebia os sentidos. Aquela voz que hipnotizava e rompera suas resistências, levando-o a confrontar sua dona. Ela continuava tendo a perplexidade infantil em seu belo rosto, mesmo no modo como articulava suas falas e a fluidez de seus movimentos. Mas aquela não era Diva, por trás da encenação e parcialmente oculto, havia uma poderosa entidade que não soubera definir o que seria. Não era um demônio, concluiu seguro. Na verdade, ia muito mais além de qualquer ser que conhecia. Um poder que remetia a divindades, inconcebível para criaturas menores. Avaliou se não era um rei-demônio como Mundus, mas também descartou a possibilidade. Sentiu-se, pela primeira vez em anos, incapacitado. Mecanicamente olhou para a fita azul anexada em seu braço, por um instante quis tirá-la ou jogá-la fora, porém não se permitiu fazê-lo. Estava frustrado por não ter ideia do que deveria ser feito para salvar a garota que há meses o resgatara do mundo de trevas que estivera preso por mais de uma década. De certa forma, devia a ela sua vida e retribuiria. Talvez se tivesse isso em mente como o ponto chave, não ficaria irritado consigo mesmo pelo fato de assim como seu patético irmão, compartilhar a mesma fraqueza, por gostar de Diva.
Interrompeu seus pensamentos antes que começasse a questionar a própria sanidade. Lembrou-se do garoto que descansava no andar superior, nele havia óbvios traços da linhagem de Sparda. Vergil suspeitou que fosse aquela criança que um dia deixara aos cuidados de um orfanato de Fortuna, o seu filho. Não queria confirmar se realmente é. Ao menos não naquele momento. Manteria-se longe do garoto até tudo melhorar, ou assim que ele tiver condições de vê-lo.
Dante passou dias enfurnados na loja — recluso —, querendo exclusivamente a solidão como companheira. Ele tinha uma maneira solitária de lidar com a própria dor, embora escondesse na máscara de arrogância e despreocupação que usava. Os anos não o mudaram tanto, continuava tão sentimental quanto antes. Apesar da herança demoníaca, o mestiço mais novo era o mais humano daqueles que convivia.
Vergil limpou a katana, tirando resíduos de sangue que impregnava na lâmina. Preferia sua Yamato ou a Excalibur, como nenhuma das duas estava sob seu alcance contentava-se com uma katana simples. Sua habilidade impecável e manuseio não seriam afetados pela qualidade da arma que portava, era um mero detalhe que poderia facilmente compensar. Elevou o olhar para as duas novas presenças: Holy — Olly — e a garota ruiva, Lyana. Quando o olhar dele cruzou o dela, seu semblante adquiriu tensão e rapidamente direcionou a atenção para qualquer outro ponto da sala. Ela não gostava dele e fazia questão de deixar bem claro.
— O processo de regeneração foi "desligado" pelo efeito do sangue, mesmo ele não tendo tempo de se espalhar — o feiticeiro explicou, dando ênfase no termo "desligar". Lyana mordiscou a unha, apreensiva.
— Então quer dizer que...
— Sim, é um dano permanente. — Holy cortou, sério.
— Diva parecia completamente sádica...
— Aquela não era Diva — Vergil manifestou-se, com usual frieza. — É uma casca quase vazia possuída por algo.
— É menos cruel pensar assim, afinal você não hesitou em tentar matá-la! — Lyana acusou, parando poucos centímetros frente à Vergil com olhar recriminador. Num deslocamento imperceptível de ar a ponta da katana estava perigosamente próxima da garganta da garota, Vergil a encarava como se não fosse digna de permanecer no mesmo ambiente que ele tampouco fosse uma adversária a altura.
— Modere suas palavras se ainda deseja viver. Não sou condescendente como meu irmão. Então tenha muito cuidado com o que vai dizer, mulher. — proferiu com voz glacial e afiada como uma navalha. — Você se diz amiga dela, mas mentiu e a enganou inúmeras vezes. Acha que está no direito de reclamar de algo?
Lyana cerrou os punhos.
— Agi conforme deveria ser feito. E é uma tola ilusão sua acreditar que podemos salvá-la sem correr riscos. Além disso, você nunca entenderia o que é perder o livre arbítrio, ser um servo sem vontade. Apenas uma sombra. Então não fique no meu caminho.
Ela não tiraria a razão dele, cometeu muitos erros em relação a Diva, chegando a omitir o passado. E viu que de todos — incluindo ela e Dante — nenhum conhecia esse sentimento tão bem quanto Vergil devido a sombra que custava a esquecer: Nelo Angelo. Pegou seu sobretudo e saiu.
— Tch. Você não podem mesmo viver em paz sob o mesmo teto, não é?
Lyana suspirou. Sua mente estava mergulhada no mais completo caos e mesmo depositando todo seu esforço para organizar seus pensamentos, aquela guerra interna mostrava-se infrutífera a medida que uma forte dor de cabeça nascia. Ignorando o comentário de Holy, ativou a magia do pingente e tomou a imagem da Diva, precisava procurar algum indício de onde poderia estar nas coisas dela, principalmente aquela caixinha de música que Diva cuidava e parecia ter um apreço especial.
Passaram-se dias desde que tiveram um reencontro nada agradável com Diva, que eles suspeitavam ter sido sequestrada. Sempre que imaginava o que a melhor amiga estaria sofrendo, seu coração doía e partia-se em milhares de pedaços. A necessidade dela em proteger Diva nem sequer comparava-se a Dante ou, que custava a conceber, Vergil. O vínculo fraterno que ambas possuíam ia além de amizade, uma irmandade eterna e inquebrável. No passado, pelo amor que nutria por Alexander que está enraizado em sua alma, prometeu zelar pela vida de Diva pelo tempo que viveria. Com o passar dos anos, acabou construindo um sentimento maternal por ela, jurando por si sempre estar ao lado dela. Lyana falhou muitas vezes, e tinha consciência que onde Alexander estivesse ficaria um pouco decepcionado com o rumo que a situação atual tomou.
Diva perdeu a luz e a bondade que a cobria como uma aura. Uma das características dela sempre fora a luz dourada poderosa e não existia mais. Diferente do que esperava, Diva não carregava marcas traumáticas de abuso em seu semblante, tampouco os reconheceu quando os viu. Vergil estava certo, não tinha como aquela mulher ser sua melhor amiga. Nunca.
As ruas após serem invadidas por arvores e construções que não pertenciam a essa dimensão, imergiram na inquietação. O perigo era uma constante e não tinha como prever onde surgiriam inimigos, graças a isso as pessoas raramente saiam da segurança de suas casas. E o caos reinava por todo globo como um anuncio do fim dos tempos.
— Ora que conveniente. — Lyana parou. A mulher retirou os óculos escuros, revelando a beleza mortal e os olhos cinzentos que nunca vira. Reconheceu-a de imediato: a acompanhante de Diva, segundo Vergil, chamada Thanatos.
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