State of Innocence!
A escuridão cresceu, carregada com uma poderosa aura maligna, infinitamente grande demais para ser contida. Violenta e sedenta, o instinto assassino latejante. Uma pressão angustiante de ódio. Era uma força que nunca tinha lidado e impossível de compreender sua natureza, nenhuma palavra poderia descrevê-lo em sua plenitude. Havia um sufocante e enjoativo odor de sangue permeando o ar, contaminando-o até torná-lo irrespirável. Eu estava imóvel, sem esboçar uma significativa reação que me tirasse daquele transe. Meu vestido outrora claro, maculado por manchas de sangue e cinzas, uma lembrança física do mal devastador que se abateu ali.
Por mais que minha mente tentasse, gritasse para reagir, não conseguia desvencilhar-me do terror e do choque. Chamas altas crepitavam, devorando tudo ao redor. Estendi a mão para a figura encoberta pelas sombras. Um nome fora pronunciado. Ele virou, os olhos rubros vazios de emoções, e o sorriso manipulador e frio. E, como um clarão de flash ofuscante transformou o cenário, porém este era mais caótico que o anterior, no centro dele vi; os cabelos escuros e os olhos diabólicos em tom de escarlate, a mesma aparência ligeiramente distorcida como reflexos de uma estátua de gelo em uma sala de espelhos, bela e demoníaca... Estava eu.
Acordei num rompante, escapando do terrível pesadelo e um grito engasgado na garganta. O cômodo estava bem claro devido a luz alaranjada da manhã. Meu coração parecia estar prestes a explodir com a velocidade que batia. A cabeça rodava vertiginosamente sem parar. Não era a primeira vez que tinha um sonho assim, mas esse foi diferente e completamente amedrontador. Contei até dez respirando profundamente, uma técnica de relaxamento bem eficaz em situações que você está quase surtando. Passado o susto e mais tranquila, apalpei os lençóis e os encontrei vazios. Ainda irradiavam um pouco de calor, indicando que não fazia tanto tempo que ele saiu. Escapuli para meu quarto e troquei-me, dei uma última escovada no cabelo e fui ao andar inferior. Thanatos estava imersa em pensamentos e não notou minha presença. Não era uma conhecedora universal e também nenhuma especialista, mas Thanatos realmente transpirava preocupação. Normalmente ela não agia assim, como se estivesse tentando pensar em uma solução para um problema grave e que exigia toda sua atenção.
— Thanatos? — chamei hesitante. E como se acordasse de um sono pesado, ela piscou e olhou pra mim sem realmente me ver. — Algum problema?
— Não é nada. Só estava pensando em uma coisa... Ah — chiou em entendimento súbito de algo. — Vergil saiu a pouco. Se quiser se despedir pode alcançá-lo ainda.
Acenei e corri em direção a porta, seguindo por um caminho íngreme de terra, até avistá-lo.
— Vergil! — gritei, torci para que fosse alto suficiente pra que ele ouvisse, considerando que ele tinha sentidos mais aguçados que um ser humano. Vergil parou, e eu acelerei os passos enquanto fazia um discurso mental do que falaria. Foi uma luta interna para não chorar e descobri que possuía autodisciplina maior que imaginava. Tinha que estabelecer certos limites sobre tudo que faria.
— Não gosto de despedidas. Acho que você também não... — comecei, sentindo-me a deriva em meio a agitação do vento. — Também não vou pedir que pra ficasse por que sei que precisa resolver isso, não vou interferir.
Ele não disse nada, uma atitude típica dele. O silêncio se estendeu pelo que pareceram décadas. Tomei a frente, pegando sua mão e amarrando nela a fita azul que usava no cabelo. Segurei a mão dele, acariciando-a com o polegar.
— Fiquei com isso, para se lembrar de mim. É como uma promessa, ou algo assim para que, independente de onde esteja, lembre-se que não está mais sozinho. — forcei um sorriso, querendo exprimir uma conformidade que não tinha. Vergil olhou para o adereço por alguns instantes, sua expressão meio indecifrável. Invadi o espaço pessoal dele, abraçando-o. Vergil pego de surpresa, afagou compassivamente minha cabeça, mexendo com algumas mechas do meu cabelo.
— Eu vou voltar — garantiu, recomeçando sua caminhada. — Prometo.
Sorri crente em uma reunião.
Thanatos conversava ao celular quando retornei, seu maxilar travado era um indício claro de que o assunto tratado não lhe agradava nem um pouco. Fiquei com certo receio que aquilo pudesse desencadear seus poderes, que ultrapassavam quaisquer limites ditados por Deus, e ao seu bel prazer matar alguém sem precisar tocá-lo. Mesmo não fazendo uso deliberado dele por estar ciente dos efeitos devastadores, não há nenhuma garantia que não perdesse o controle na hora da raiva. E, decidi manter uma distância segura, enquanto ela estivesse nervosa. Sua postura era rija e pouco natural, o tom de sua voz possuía ferocidade e sutil respeito. Ela conduziu-se calmamente para a varanda, a atmosfera dali mudou radicalmente, de suave para densa, quase tangível. Meus pulmões já sofriam em demasia pelo esforço desgastante da respiração e tentei discernir entre um apelo fantasioso da minha mente, denominado hipocondria, ou se, de fato, a pressão presente no local tinha a ver com Thanatos. Chacoalhei a cabeça, concentrando-me em ficar sã e esquecer o que acontecia ao meu redor. Esse exercício funcionou e todo o ar ficou leve como deveria. Thanatos reapareceu, sua feição delicada característica estava distorcida em uma dura careta de contrariedade. Seus olhos aéreos e movimentos apressados só denunciavam seu mal humor. Assim que me viu, jogou o cabelo para trás e deu um sorriso apologético. Ela depositou o celular na mesinha de centro e fez um sinal para aproximar.
— Desculpe por isso, as vezes ocorrem divergências. Nada grave. — explicou indiferente. — Agora que está tudo bem e a maioria das Chaves estão sob nosso poder, creio que queira voltar o mais breve possível para casa, não é?
— Sim — respondi sem emoção.
— Se o que te preocupa é não receber sua recompensa prometida por David, fique tranquila. Vergil exigiu como acordo que assim que estiver com a última Chave, que nós busquemos você — anunciou. — Vocês dois terão suas devidas perguntas respondidas.
Após saber a função dessas Chaves, com uma parte fundamental do equilíbrio e impedir um ser maligno reviva nesse mundo, os meus objetivos eram mais condicionais e ficavam em segundo plano.
— Está tudo preparado, passagens e providenciei que volte hoje mesmo pra casa — Thanatos sorriu e assenti mecanicamente, então como se ouvisse um estalo remexeu em uma pasta na mesinha. — Ah! Deixaram uma carta pra você, é da sua amiga sacerdotisa.
Peguei a carta, reconheci de imediato a letra de Myu, confirmando a afirmação de Thanatos. O papel rosa tinha alguns desenhos, inclusive de gatinhos e coelhos fazendo o gesto comum de vitória. Se a intenção dela fosse amenizar ou distrair durante a leitura do conteúdo, concluiu com êxito. Ignorando a estratégia boba e focando nas informações contidas ali, entre tudo que vi uma parte chamou minha atenção.
"Soube um pouco mais sobre você. Foi chato descobrir determinadas coisas por outras pessoas e até entendo que você não estava em condições em falar...
[...]
Poderia ter contado antes, mas apesar de não concordar com seus motivos de esconder, respeito sua escolha. Eu já testemunhei eventos com seres imagináveis e não me surpreenderia. Sério!
[...]
Enfim...
Não estou escrevendo para descontar minha frustração e sim relatar pormenores curiosos...
Eu e Kyle retomamos nossa rotina, tentando esquecer aquela fatídica noite, e fizessemos uma investigação por conta própria.
[...]
Não há nenhuma informação acerca de Noctis, nem sequer aqueles que convivam com certo grau de intimidade nunca ouviram falar... Se não tivesse conhecido Noctis e tido contato, diria que ele nunca existiu. Isso beira ao bizarro...
O que me deixou intrigada, sem dúvida, foi o que minha avó disse dias atrás: Issun saki wa Yami - Um centímetro adiante é escuridão.
Não deve fazer muito sentido para quem não a conhece, mas para mim é um aviso... Agora de que, bem, isso não se sabe."
Thanatos olhava para mim em expectativa após dobrar a carta, não era como se estivesse realmente curiosa sobre o que li, mas interessada na razão da minha súbita tensão. Não disse nada, ela entendeu e saiu da sala.
Aquilo soava tão... Ameaçador.
Afastei pensamento negativo, optando por hora focar em organizar tudo para retornar pra casa.
***
Nenhuma mudança significativa naquele lugar. As mesmas paredes brancas e violetas, alguns pôsteres desgastados que bravamente lutavam para não caírem, as prateleiras vazias e com acúmulo visível de poeira, a gaveteira que possuía uma ínfima parte de roupas que deixei e várias outras coisas que fazia com que voltasse no tempo, um rápido vislumbre do passado. Meus pais realmente não mexeram em absolutamente nada. Intocado e acolhedor como costumava ser na época que morava aqui, algo que parecia ter sido há séculos.
Era estranha a ideia de retomar a rotina, um a do qual não pertencia mais. A sensação de estar deslocada era uma constante desde que retornei, quando meus pais me receberam após meses incontáveis longe e assim que cruzei a porta. Ela martelava sem parar em minha mente, mas o cansaço físico e mental ocuparam todo espaço para qualquer questionamento. A parte ainda lúcida via, enfim, paz e tranquilidade, a chance de viver uma vida separada do caos sobrenatural do qual fui imposta. A outra, no entanto, encarava tudo com certo pesar e monotonia. Nessa disputa interna, nenhuma dessas partes venceria. Convenhamos que férias, um intervalo, soava agradável para alguém que correu meio mundo igual caçador de recompensa. Agora, olhando nostalgicamente para os móveis enquanto abraçava um travesseiro, a serenidade e a certeza de que não havia não por que me preocupar, tirando um grande peso de meus ombros, era um prazer que não trocaria por nada. Sentimentos antigos foram reavivados como estivesse revivendo-os ao vivo, inclusive podia ditar com clareza de detalhes o que vivi naquele cômodo. Tentei enganar a mim mesma acreditando na falsa impressão de estar segura, de volta ao meu mundo normal. Quando a ficha cair vou sentir toda a carga emocional que agora meu corpo bloqueava com rigidez.
O abajur iluminava caixinha de música cuja melodia preencheu todo o quarto, como uma doce canção de ninar. Aconcheguei-me entre os lençóis com o aroma suave de amaciante, sem resistir ao sono reconfortante. Sem pesadelos, receios ou preocupações. Algum estímulo externo, aos poucos, quebrava o mundo de sonhos que estava. Senti-me ser arrastada abruptamente à superfície, o ar parecia escasso e o coração batia descompassado. Minha mente demorou a digerir o ocorrido, perdi totalmente a noção de espaço-tempo e quase pude jurar estar dopada. Algo me imobilizava do quadril para baixo, incapacitando-me de sair ou tentar qualquer movimento. Pisquei inúmeras vezes para enxergar mais claramente a causa daquele incomodo. Apoiei-me em meus cotovelos, inclinando o tronco, pronta para atacar. A cor vermelha intensa encheu meu campo de visão tal como o sorriso maquiavélico familiar. O susto e o raciocínio lento do meu cérebro pra processar o fato, fez com que em um ímpeto exasperado um grito cortasse o silêncio e eu, sem querer, derrubasse Lyana no furor da histeria. O baque duro trouxe-me a luz, vendo minha melhor amiga massageando o traseiro dolorido pelo impacto.
— Isso não foi bem o que eu estava planejando — informou com um muxoxo. — Nada como umas boas vindas com direito a uma queda.
— Você teve a culpa por ter me assustado! — ralhei em um tom acusador. — Quase morri de susto!
Lyana ergueu uma sobrancelha em descaso, o sorriso mordaz projetando-se nos lábios vermelhos de gloss.
— Tive que vir fazer uma surpresa, principalmente quando soube que tinha voltado — ela levantou, dando uma breve arrumada em sua roupa, espalmando o pó. — Era pra ter te ligado ontem, mas sua mãe disse que você estava em "Jet lag" e resolvi vir hoje.
Olhei pra ela com a mesma empolgação de um grão de areia em uma praia. Nem tinha ideia de quantas horas permaneci adormecida, mas algumas a mais não fariam mal. Provavelmente fiquei boas horas fora do ar, exatamente como alguém que não tem horário para acordar ou só meramente desocupada. Peguei a coberta e, com toda vontade do meu ser, fechei os olhos disposta a dormir novamente. Criei um casulo anti-Lyana com a coberta, mesmo que fosse algo inútil comparado com que ela faria caso não prestasse devida atenção nela.
— Vamos Diva, tanto tempo fora... Sem uma ligação... Só sabia como estava pelos seus pais e, — ela retirou a minha proteção proporcionada pelo cobertor, obrigando-me e sentar na cama com uma expressão condizente com minha impaciência. — em vez de falar comigo, prefere dormir?
— Foram horas de viagem, estou esgotada — disse em aspereza. — Caso não saiba o corpo exige, pelo menos, oito horas de sono para restabelecer forças.
Lyana enumerou os dedos, sua expressão distraída, contando um a um.
— Segundo meus cálculos, você dormiu durante dezesseis horas. Isso é mais que suficiente para restabelecer forças, não acha?
— E se eu negar? — questionei com tédio.
— Fico aqui, com você. Temos muito que conversar, embora tenha outras pessoas além de mim querendo te ver...
A afirmação dela flutuou, deixando a dúvida em cheque. Lyana tinha o poder de atiçar minha curiosidade com um jogo simples de palavras, estrategicamente dando respostas vagas e abrindo questões pertinentes. Conhecemos-nos desde sempre, isso conclui que ela conseguia o feito de lidar comigo com grande de cintura, algo que nem minha mãe podia igualar. Afundei o rosto no travesseiro abafando um gemido contrariado, meu plano inicial baseava-se em entrar em hibernação nessa primeira semana — os humanos não eram capazes disso, mesmo que eu também não fosse, nutri a esperança de fingir estar hibernando. Ouvi um farfalhar e olhei para onde vinha o ruído: Lyana segurava a caixinha de música, admirando-a com um aspecto meio melancólico. Tirei-o das mãos dela, colocando-o onde estava e peguei as mãos dela, apertando-as e aquecendo-as junto as minhas. Esse era para ser um grande momento entre nós, aquela magia brega de amizade eterna com direito a lágrimas e declarações amorosas destinadas uma a outra, mas não era. Ainda consumida com uma série de perguntas que precisavam urgentemente ser respondidas, queria pôr tudo a limpo e, embora Lyana possa omitir parte da verdade — algo que ela fazia com frequência —, ficava claro que escondia um segredo obscuro e sobre eles queria desvendar essa bagunça. Levantei e me arrumei para ficar o mais apresentável que minha palidez e olheiras fundas permitiam, esboçando um sorriso afetuoso e esticando o corpo para me livrar da preguiça e indisposição. Teríamos tempo para esclarecer muitas coisas.
Lyana deitou na cama, esperando meu ritual de preparação. Chequei o lado direito do meu rosto, apalpando e examinando-o para não ter eventuais problemas em explicar o que mudara nele. Lyana não comentou, então isso parece ter passado batido. Ele recuperou o estado normal, como se nunca tivesse sido destruído, o que era um muito sinal. Escovei a franja sobre o lado direito de uma maneira menos suspeita.
Descemos as escadas em silêncio, corri na direção dos meus pais que conversavam alheios a nossa presença e dei um rápido beijo de despedida neles. Minha mãe fez uma careta de reprovação, mas nada disse. Lembrei-me da época que estive internada, minha mãe tinha imposto a política rígida de visitas somente com permissão, praticamente me isolando naquele quarto cujo cheiro forte de ambiente esterilizado ficaria gravado em minha memória para sempre. A personalidade da minha mãe era uma variação mais fria da minha, salva as raras ocasiões que ele demonstrou abertamente suas emoções. No entanto, meu pai era mais tranquilo, preferia que eu tivesse minha liberdade para fazer o que eu quisesse com responsabilidade e bem ciente de qualquer risco. Lyana arrastou-me para fora, de modo que, caso eu mudasse de ideia, não escapasse dela. Duas figuras que não reconheci estavam encostadas em um muro, um possuía uma aura inabalável de mistério e a outra leve euforia e classe. Olly abriu um sorriso, abraçando-me tão forte que me tirou do chão. O rapaz desconhecido aproximou-se em passos mais contidos.
— Eu disse que não era a única — enfatizou, esfregando as mãos nos ombros dos dois rapazes alinhados. Do Olly, entendia a compensação por que tínhamos uma boa amizade. Entretanto, o rapaz...
— Ele é Gael — Lyana apresentou. — Essa é a Diva, ou Ivy.
Gael encarou-me com doçura e devoção que, de repente, não senti ser digna de tamanho amor. Apesar de ser ridículo, sem sentido e inexplicável, quis muito, mais que qualquer outra coisa, tocá-lo. Cada vez que nossos olhos se cruzavam, maior era a vontade de tomá-lo em meus braços e zelar por sua vida. Um sentimento materno e inerente.
— Prazer em conhecê-lo, Gael — sorri em espontaneidade.
— Prazer é todo meu.
Reparei melhor em seus traços; o cabelo charmosamente desarrumado e rebelde em tons de castanho mais escuros que o meu, sua pele era de palidez saudável, havia uma perceptíveis músculos delineados sob finas camadas de roupa e um casaco negro, seus olhos... Tão profundos e enigmáticos quanto o oceano. Azuis celestes, um quase lápis-lazúli impecável com radiantes faíscas de ouro. Nunca tinha visto cores tão belas quanto joias nos olhos de alguém. Gael enrubesceu, o rosa fraco tingiu a suas maçãs do rosto. Ele percebeu que o estudava detalhadamente, mas não fui discreta ao fazê-lo e também não senti culpa. Não era como se analisasse um homem bonito, um potencial paquera. E sim, via um garoto cuja semelhança com uma pessoa especifica confundiu minha mente. Os gestos dele ficaram mais atrapalhados e rápidos. Lyana riu e Olly balançou a cabeça disfarçando a risada. Gael quebrou nosso contato visual e pisou firme, seguindo na frente. Sua atitude assustou-me, principalmente por que ele deve ter se incomodado com minha minuciosa inspeção. Apressei-me para alcançá-lo, até chegarmos a uma lanchonete. Atrás de nós, tanto Lyana quanto Olly seguravam a gargalhada. Acho que a única que estava perdida era eu. Todos sentaram, Gael ficou quieto olhando a rua movimentada pela janela.
— Estamos reunidos e podemos aproveitar para encher Diva de perguntas...
— Pensei que faríamos algo mais produtivo, considerando que você me trouxe junto — Gael cortou, Lyana revirou os olhos.
— Aposto que está mais curioso que todos aqui — Lyana afirmou em deboche e olhei para Gael, seu rosto em vermelho vivo. Ele rosnou visivelmente desconfortável. Olly intercedeu, começando um assunto aleatório. Entretida, pude sentir um par de olhos perdurando-me com insistência. Dessa vez, Gael que me estudava, seu olhar sonhador e distante. Pego no flagrante, ele baixou o rosto constrangido. Instintivamente, completamente envolvida em uma fraterna e encantadora emoção que seria difícil expressar em uma frase, afaguei o rosto dele. Gael pensou em recuar, porém não o fez. A redoma que construiu cedeu e, através das pequenas fissuras, entrei. Ele fechou os olhos, um suspiro longo escapou pelos seus lábios entreabertos.
— Eu te lembro alguém? — perguntei com ternura. Havia uma tristeza imensa escondida no oceano infinito dos seus olhos. Talvez nada se comparava ao conflito em seu coração, sua dor mais íntima.
— Minha mãe — murmurou com pesar.
— E o que houve com ela?
Gael cerrou os punhos.
— Ela morreu. Um imprevisto aconteceu e ela tinha acabado de dar a luz... — o ar ficou denso e extremamente rarefeito, a aura controlada dele pulsou com violência e fúria, querendo sair. Horrorizada com o relato e sentido empatia pela perda, o abracei. Aquele gesto de carinho o trouxe a consciência, acalmou o ódio e aliviou o remorso que ele carregava. Gael retribuiu, tendo cuidado para não exceder na força e não me machucar.
— Agradeço pelo conforto, sinto bem melhor — disse após nos separarmos, ele pegou no bolso uma bússola pequena de ouro com delicados desenhos em prata, a perfeita harmonia entre as duas cores. — Eu preciso ir...
— Você vai... Gael? — Lyana se manifestou, ele assentiu.
— Não se preocupe, nos veremos em breve. Muito em breve. — assim que sua atenção voltou-se pra mim, tanto Lyana quanto Olly imitaram e encararam-me com diferentes feições: de um sorriso inocente até um mais sério. Gael pressionou os lábios gentilmente em minha testa e uma sensação de dejá vú atingiu-me, ainda que não fosse nítida meus pensamentos, subitamente, levaram-me para a última pessoa que queria lembrar: Dante. Talvez se Gael tivesse cabelos brancos poderia ser uma cópia dele. O contato dele fez com que eu, por descuido ou curiosidade, expandisse minha aura e focasse na aura de Gael, uma mistura peculiar de dourado vibrante e vermelho ardente. Nunca apreciei tanto um gesto quanto naquele momento, onde podia experimentar os sentimentos dele que era o pouco que minha aura capturou, igual a um quebra-cabeça. Ele sussurrou um "Até breve" e partiu. Refleti sobre a situação, geralmente ninguém teria uma postura tão amável com desconhecidos, mas aquele garoto despertou algo em mim que nem eu mesma sei o que é, era grande e infinito como o amor que sentia pelos meus pais, só que diferente. Será que se eu tivesse um filho, esse afeto seria o mesmo?
Lyana estalou os dedos próximos ao meu rosto, trazendo-me a realidade.
— Você viajou legal para um universo paralelo — brincou, mostrei a língua dramaticamente. A tarde passou sem grandes eventos e apesar da diversão, o cansaço drenou rapidamente os resquícios de energia reservada, nem sequer contei tudo que queria sobre minha viagem. Olly e Lyana escoltaram-me pra casa cobrando que descansasse bem para o outro dia. Eles não me deixariam em paz tão facilmente.
Conduzi-me para o meu quarto, zumbificada. O vento rugiu invadindo meu quarto pela janela aberta, e nela uma rosa vermelha mergulhada em um copo com água. Corajosamente, verifiquei se havia um sinal de vida ali, então fechei a janela. Olhei para a rosa com desconfiança e dirigi-me para cama, pensativa. Minha mãe chamou para comer e quase que imediatamente, senti que esse era o lugar onde deveria estar, com pessoas que me amam e longe de riscos. Se antes a ideia de me acomodar numa vida normal era algo que me desconectava, agora parecia ter tudo sido um sonho. Em muitos anos era a primeira vez que meus pais estavam reunidos para comer, só faltava meus irmãos, mas também não fazia muita diferença a presença deles. As conversas entre nós eram voltadas exclusivamente sobre o que pude aproveitar na viagem. David conseguiu convencer meus pais que meu trabalho com ele, de suma importância, era sobre pesquisas empresariais e gestão. Se eu ainda quisesse manter as aparências, teria que usar toda minha veia teatral e ignorando certas informações que eles não precisavam saber. Inclusive menti a razão de ter mudado o cabelo. Insisti para que eles me deixassem cuidar da cozinha quando terminaram a refeição.
Arregacei as mangas diante da louça. Enquanto limpava os pratos, elaborei uma lista de tarefas a cumprir e uma delas incluía um longo diálogo com Lyana. Sequei as mãos e enviei uma mensagem para Lyana dizendo que estaria indo para o apartamento onde morava.
— Mãe, vou dar uma passada na casa da Lyana! — gritei, correndo para o quarto e pegando minha bolsa e casaco. — Talvez eu vá dormir lá também
— voltando a velha rotina de quando você tinha dezessete — meu pai gracejou.
— Parece que sim — mamãe concordou.
O apartamento no qual Lyana sempre morou, ficava a poucas quadras dali. Não havia muita gente na rua e o céu já escurecia. Por um instante, caminhando na escuridão silenciosa, senti como se estivesse sendo vigiada. Em algum lugar, invisível a minha visão restringida, camuflado entre as sombras, alguma pessoa esperando que baixasse a guarda pra atacar. Alerta, percorri o restante do trajeto visualizando o apartamento dela e torcendo para que Lyana esteja lá, me esperando como pedi.
Apanhei a chave taticamente guardada em um vaso — algo um tanto clichê. E entrei sem cerimônias, disparando para o quarto de Lyana, chamando-a sem resposta.
Suspirei.
Não deveria me impressionar com o cenário a minha frente, Lyana nunca mudaria e a bagunça no quarto dela evidenciava isso. O tufão humanoide vermelho passou por aqui, ponderei rindo. Chutei um emaranhado do que parecia ser um lenço branco com desenhos meio infantis que nunca imaginaria que Lyana guardasse. Talvez fosse alguma lembrança de quando era criança. Geralmente as pessoas costumam manter essas coisas que fizeram parte de suas vidas, seja um brinquedo ou fotografias. Coloquei minha bolsa na cama e recolhi as roupas que estavam jogadas pelo chão e depositei no cesto. Para facilitar meu trabalho, agachei e juntei os papéis amassados e preparei-me mentalmente para enfrentar a caverna escura e suspeita que era debaixo da cama. Respirei fundo, enchendo-me de coragem consciente de que poderia ver algo que me deixaria traumatizada — posso me deparar com algum monstro de poeira — e inclinei-me para visualizar melhor o espaço.
Diferente do que eu tinha em mente, não havia sujeira ou criaturas bizarras, somente uma caixa de madeira. Fiquei tentada a pegar, mas refleti sobre o fato da minha curiosidade acabar dando problemas, então ignorando o bom senso, puxei a caixa e comecei a vasculhar. Havia muitas coisas e que chamou minha atenção foram dois cadernos misteriosos, peguei um com a capa de veludo. Senti-lo em mãos, de repente, despertou um sentimento nostálgico e melancólico que nunca experimentara antes. Disposta a investigar e sanar um pouco daquelas dúvidas que surgiram, coloquei tudo em seu lugar, exceto o caderno que, por um motivo que não soube explicar, não pude abandonar. Ajeitei a bolsa no ombro e sai às pressas do apartamento da Lyana. Quem olhasse para mim, tão apressada e com o rosto vermelho ofegante, pensaria que estava em fuga. De certa forma, era isso que fazia, meu lado racional apitava pelo meu crime. Independente de conhecer ou não, pegar um objeto sem a devida permissão era errado.
Abracei meu corpo procurando me aquecer no frio da noite. Não tinha sido uma boa ideia ter saído tarde, assim como não foi uma atitude inteligente invadir o apartamento da Lyana. Ultimamente estou acertando nas minhas decisões, se continuar assim vou receber com honras o título de insana. Freei-me a tempo de esquivar desajeitadamente de um ataque inesperado, recuando alguns passos. Uma silhueta masculina toda uniformizada parou a uma curta distância de onde eu estava, sacando uma metralhadora em minha direção. Sem escolha, permaneci imóvel e ergui as mãos mostrando rendição.
Tentei formular um esquema que funcionasse como distração para o soldado, dando-me tempo para fugir ou nocauteá-lo.
O soldado não abaixou a arma e meu sangue gelou com a possibilidade dele atirar, igual uma prisioneira de guerra prestes a morrer por fuzilamento. Não seria uma boa maneira de morrer. Arrisquei um passo e usei uma onda psíquica pra atordoá-lo, o que não funcionou muito bem, já que sem querer o soldado disparou de raspão em minha perna. O esforço ativou o selo, sentia o pulsar dolorido na testa que se espalhou pela cabeça. Um fino filete de sangue escorreu no meu nariz, desencadeando o pânico. Odiava quando acontecia, embora não pudesse evitar o poder do selamento, adoraria ter sido poupada da dor que ele ocasionava. Pela iluminação da rua, identifiquei melhor o homem enfardado, parecia um daqueles agentes da força especial do exército. Ou algo muito semelhante. A braçadeira que ele orgulhosamente mostrava possuía um símbolo familiar, porém não consegui compará-lo com nada que vira. A perna ferida e sem nada para me defender, praticamente fecharam o cerco sob mim, impedindo qualquer meio de me salvar. Se eu corresse existia a chance dele abrir fogo e essa opção não era viável. Sons de tiros quebram o silêncio, e foi à vez do soldado perder o equilíbrio e despencar rudemente no chão com o projétil que acertou seu ombro. Olhei por cima do ombro, vendo o não tão enigmático homem de vermelho. O alívio era tanto que estive a ponto de chorar, situações de risco fazem você ter uma imagem melhor de determinada pessoa.
— Você está bem? — ele perguntou preocupado. Ainda não entendia esse cuidado que Dante dedicava a mim, como se realmente nutrisse um sentimento nobre por mim.
— Estou bem, graças a você. — sorri desolada, perdendo a estabilidade. Ele segurou-me pelos ombros antes da inevitável queda.
— Dessa vez eu vou cuidar de você, doçura.
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