Quiet Before the Storm!
A paciência não é uma virtude que eu possuía. Os minutos se estenderam ao que pareceram séculos, enquanto esperava que permitissem a entrada para o horário de visitas e, enfim, ver como estava Sofia antes de ir embora. Não recordo quando exatamente adquiri esse repúdio a ambientes hospitalares, talvez associasse ao período que passei em observação após ser encontrada inconsciente e ter perdido parte — seletiva — das minhas memórias. Independente do motivo, a ideia de permanecer inativa vendo as pessoas transitando sem parar, me deixava com os nervos à flor da pele. E pela décima sétima vez — metodicamente contados —, soltei um suspiro de tédio. Não consideraria uma atitude adulta de uma jovem quase na casa dos vinte e um, mas levando em conta que ninguém dali sabia minha idade, nem faria diferença. Depois de retirar minha matrícula do Vincent Millay, retomei minha vida normal — nem tanto —, fingir ter dezessete não é tão fácil quanto aparenta, mesmo por que enfrentar novamente problemas usuais de colegiais era bastante enfadonho. De qualquer forma, pude interagir com boas pessoas e desenvolver minha relação com Vergil. Ele tem sido um excelente companheiro nessa busca, ainda que fique me repreendendo pelas minhas ações impensadas.
O aroma de álcool permeou o ar tal qual outro odor adocicado que não pude identificar, contudo era agradável e relaxante. Admirei o lindo buquê que trazia em mãos, este que se compunha de diversas flores, tentava não esmagá-las devido a impaciência que insistia em me dominar. O suave clic da porta despertou-me, fazendo com que bruscamente virasse na direção de quem ocasionará o ato. O médico de meia idade deu acesso ao quarto onde Sofia se encontrava. Por questão de discrição, Vergil ficou esperando do lado de fora e assim manter a encenação, embora nem precisássemos mais fazê-lo. O semblante apático de Sofia iluminou-se assim que me viu, ela depositou o livro na mesinha ao lado do leito. Sentei-me na cama, entregando o buquê.
— Como está se sentindo? — perguntei gentilmente, tocando uma de suas mãos.
— Agora estou muito bem, e fico feliz que tenha vindo me ver. — Sofia inspirou fundo, aspirando o perfume das flores. Olhei ao redor, visualizando várias outras que enfeitavam o cômodo.
— Eu queria saber como estava e me despedir.
— Despedir? Você vai embora? — indagou em alarde.
— Eu tenho um assunto muito importante para resolver e por isso é necessário que procure em outros lugares.
— Ah, entendo — sussurrou triste. Peguei minha bolsa e a vasculhei até achar o que queria, Sofia observou curiosa enquanto prendi uma mecha rebelde do cabelo castanho claro com uma presilha, imitando o que eu havia feito no meu.
— Não fique triste! — sorri afável. — Somos amigas e ainda que esteja longe, viverei pertinho aqui — toquei-lhe a testa, em seguida, seu peito no ponto onde se localiza o coração. — e aqui, gêmea. E fiz a Cassie me prometer que ficara de olho em você.
— Obrigada, Alex.
— Não precisa agradecer, apenas melhore logo, sim?
— Sim — Sofia me abraçou apertado. — Espero que encontre o que busca.
— Eu também — suspirei, afagando suas costas. — Vou indo.
Desvencilhei-me de Sofia, dando um rápido beijo na testa dela.
— Até algum dia, Alex.
— Até e... Da próxima vez que nos vermos, me chame de Diva.
Antes que pudesse sequer assimilar minhas palavras, sai deixando para trás uma garota confusa. Vergil meneou a cabeça em sinal para partirmos. Só de imaginar o que teríamos que rodar para seguir as pistas no paradeiro da segunda Chave, o tortuoso trabalho que nos submeteríamos era desgastante. E conforme prosseguirmos nessa incansável atividade, as dificuldades aumentariam muito. Eu teria que me preparar psicologicamente para o que nos espera no futuro, e que esse esforço valha à pena.
Por hora deveríamos seguir para Manhattan, pois as informações indicavam que o Brasão da Fênix estaria lá. Em outra circunstância, no qual conseguisse usufruir adequadamente o privilégio de visitar uma das casas de ópera mais famosas do mundo, estaria extasiada tamanha emoção. No entanto, não possuía uma boa referência de Manhattan pelo simples fato — e um tanto quanto esdrúxulo — de, além de não ser muito adepta a lugares desse padrão, mas por lembrar de Parasite Eve. Ri do meu raciocínio infantil e meio maluco, afinal nada de grave aconteceria do nada.
A viagem aérea de cerca de duas horas e meia entre Oklahoma e New York, me possibilitaram serenidade para avaliar o caso, arquitetar um plano mental sobre nosso primeiro contato ao novo lugar. Pesquisei o que me pareceu preponderante: o clima, a população, os pontos turísticos da Grande Maçã e sem esquecer a culinária — alguma hora teríamos fome. Por muitas ocasiões me imaginei em uma ousada exploração ao redor do mundo, eu e minha sede insaciável de aventura. E essa fantasia realizou-se de um modo fora do convencional, incluindo que estava de passagem a trabalho. A responsabilidade pesava quando me perdia em meus pensamentos, nem o executava exclusivamente em benefício próprio, todavia para que as lembranças de Vergil possam ser devolvidas e que seu tormento tenha um fim. Encarei o teto baixo do quarto que alugamos, a luz alaranjada penetrou cortina de tecido fino. Boa parte do tempo desocupado, empreguei para descansar e carregar minhas energias para a grande noite, de alguma maneira, tive a sutil sensação de que outras oportunidades dessas não surgiram brevemente.
Cogitei a possibilidade de passear por New York, porém descartei rapidamente, sendo que não queria apreciar tudo sozinha. Ainda que pedisse, Vergil nunca me faria companhia por classificar esse fascínio como uma bobagem. Através de influências, David passou o necessário para utilizarmos sejam apetrechos insignificantes a objetos indispensáveis como vestuário e armas. A ansiedade me deixava inquieta à medida que se aproximava a hora para irmos ao famoso Carnegie Hall. Observei Vergil com uma agitação atípica dele, geralmente sua postura é séria e compenetrada, entretanto agia completamente o oposto. Desde que o conheço, nunca o vi tão estranho. Sua atitude mais evasiva e expressão tensa só aumentavam minha preocupação, temi que estivesse doente ou algo relacionado.
Guardei a revista no criado mudo, focando mais atenção no homem a minha frente. Ele ajeitou o cabelo — ainda escuro pelo efeito da tintura —, vez ou outra passando a mão pelo rosto numa vã tentativa de se acalmar. No meu ângulo, sugestionara que ele estivesse tendo uma crise de nervos severa. Tentando ardentemente controlar uma coisa que teimava ferozmente em lutar contra essa intenção. E perdia a cada frase incoerente balbuciada, seu maxilar rígido e o corpo tremulo quase entrando em ebulição. A situação piorou no momento em que ergueu a cabeça para me encarar, seus belos olhos azuis celestes assumiam gradativamente tons de escarlate. Acometido com intensos espasmos que percorriam seu corpo, ele lentamente cortou a distancia segura que nos separava e onde jazia paralisada, a densa e sombria aura lhe proporcionava uma aparência mais assustadora e maior. Seus olhos vidrados em mim, iguais a um predador diante da presa. Movida pelo receio, saltei as pressas da cama com o intuito de chegar à saída, porém Vergil, que previu meus movimentos, se pôs na frente bloqueando minha fuga. Minhas opções estavam escassas: não poderia munir de armas, pois os outros moradores ficariam assustados; tinha medo de machucar Vergil nessa investida; também as armas estavam guardadas onde não conseguiria alcançar; se tivesse a vantagem de ser habilidosa nas artes da luta corpo-a-corpo serviriam como um perfeito retardo. Ou seja, praticamente me dispôs a sua mercê. O cerco começou a fechar-se em meu entorno, prendendo-me feito um animalzinho acuado. Vergil não se incomodou com isso, na verdade, lhe convinha essa reação de medo e submissão palpável, ele pôde saboreá-lo. Minhas costas bateram contra a fria parede, alertando-me de que agora não tem jeito. As mãos de Vergil oscilavam entre sua alva pele a uma couraça negra e azul escuro, os músculos da face contraiam-se e seus dentes ficaram a mostra como afiadas navalhas, prontas para destroçar o que estiver no caminho. O medo do inevitável apossou-se de mim, e já me conformava de ser a vítima.
Isso era familiar, pensei aturdida.
Vergil tocou meus ombros, fincando as unhas fortemente ali. Senti uma vibração suave trespassando meu corpo, fluindo em pequenas ondas de calor que espalhou-se por todos os músculos, concentrando-se no centro do meu peito. Se fosse descrevê-la em uma proporção exata: se assemelharia a água de um rio límpido e transparente. E essa grande forma, expandiu-se para fora, como se necessitasse escapar da limitada prisão. Espantada, olhei para as mãos que emanavam resplandecente brilho dourado impecável. O poder embalou-me vacilante, sem estabilidade correta para que pudesse tomar domínio total sobre ela. Embora estivesse nervosa e confusa, deixei-me ser conduzida pela mesma intuição experiente que me auxiliou no ocorrido no concerto.
— Eu exijo que se acalme! — o timbre autoritário e impiedoso ecoou, não existia dúvida ou temor naquela ordem, somente a firmeza e passividade. O fulgor dourado circundou Vergil em diminutos flashes, languidamente o envolvendo em uma espécie de efeito calmante. A pressão que exercera se afrouxou vagarosamente, e seus braços caíram flácidos na lateral do corpo, ouvi a respiração arrastada e irregular transformar-se em pausadas e ritmadas. Meu senso protetor me impediu de afastá-lo, julgando pelo atual ocorrido o mínimo que teria feito era empurrá-lo o bastante para escapulir de seu aprisionamento. No entanto, o puxei para um desajeitado abraço maternal, como ele não demonstrou resistência, ficamos imóveis absorvendo a situação.
— Como se sente? — questionei, a voz abafada e rouca, causada pela garganta seca que arranhava ao mais simples esforço. O amargo sabor de sangue que escorria pelo nariz unia-se ao da frustração.
— Bem, apenas uma leve dor de cabeça. — ele recuou, franzindo o cenho, limpei o rastro do sangue. — Não fique muito perto quando acontecer novamente, com essas constantes variações de humor garanto que a experiência não será proveitosa.
— Anotarei isso para eventuais problemas — forcei uma risada, nenhum de nós estava plenamente afinal.
***
Nunca me habitaria a interpretar personagens que, embora fosse por um propósito maior, não combinavam comigo. E não tinha, o que digamos, sangue frio para ser boa atriz, mas julgando pelas minhas condições de sucesso na primeira missão cumpriria esta com louvor. Com um objetivo fixo em mente, desfiz o semblante apático que adornaram meu rosto numa careta de desgosto, tinha que criar a ilusão de ser uma mulher aristocrata que pertencia a aquela nata. Dignar a atuar com classe e altivez, conservar uma postura séria e elegante. Vergil estendeu a mão, num gesto educado, para me ajudar a sair do veículo. Pelo que descobri, a noite de estreia era altamente divulgado e, portanto, mais apreciável para todos que detinham gosto por música clássica — e outros estilos apresentados. Havia muitas pessoas para contemplar o espetáculo, as damas de formais vestidos longos e homens com smokings. Vergil agia com tranquilidade mesmo sendo alvo de olhares cobiçados, trajando um clássico smoking preto e os cabelos impecavelmente penteados para trás. Eu convencia a mim mesma de que deveria tratar aquela atenção demasiada com sutileza, reparava se meu vestuário era adequado para ocasião: o longo vestido azul marinho com a alça de um ombro e uma fenda que ia da metade da minha coxa aos saltos — e armas estrategicamente camufladas —, que não me fazia ficar nem um pouco confortável; os meus cabelos — agora loiros — escovados para o lado direito se moldavam em perfeitas ondas de ouro. Vergil ofereceu seu braço para que pudesse assim acompanhá-lo para dentro, movendo-me inconscientemente me juntei a ele.
A majestosa fachada do Carnegie Hall inspirada no renascentismo italiano e a grande torre foram as primeiras a me chamar atenção, não somente pela beleza e extravagância, mas por algum outro motivo que não soube compreender. Talvez estivesse impressionada com o lugar que minha mente tentasse me pregar uma peça para não desfrutar o ambiente, ou que meu sensor de perigo esteja maluco.
— Não me deixe cair! — pedi para Vergil, sem tirar o sorriso, porém senti o rubor cobrir meu rosto. Não era que quisesse bancar a atrapalhada, apenas garantir que ele ficaria do meu lado — uma piadinha para amenizar a tensão.
— Não vou, mesmo que se vier a cair do chão não passa. — retorquiu, olhando-me com expressão amena.
Pisquei desorientada.
— Isso foi uma... Piada? — indaguei baixinho para somente ele escutar, ergui uma sobrancelha em confusão. Pode ser uma pergunta estúpida, porém, convenhamos que uma tirada dessas vindas de alguém como Vergil despertava certas dúvidas — e a confusão também na lista.
— Eu posso ser engraçado quando me é conveniente — explicou, voltando a sua natural atitude impassível.
— Ah, claro — minha risada fora tão espontânea que o receio derreteu-se. Dava para notar seu empenho em tornar o ambiente mais agradável para mim. — É por isso que eu te amo...
Percebi o que acabara de falar, sem querer, desviei o olhar, envergonhada demais para sequer ver qual fora sua reação. Para os que viam a cena, parecíamos um casal normal que apreciavam a presença um do outro, sendo este o real intuito da encenação. Causar a impressão de sermos um casal, mas estava desconfortável com o rumo estranho que as coisas tomaram.
O interior assim como a exterior tinha aspectos de sofisticação da era vitoriana: o hall de entrada continha grandes arcos de mármore oblíquas no teto e portas, nos cantos do foyer colunas com entalhe, gesso branco e cinza formava um sistema harmonioso de cabeças redondas, aberturas em arco e pilastras que suportam uma cornija ininterrupta, sob um teto abobadado. Em nenhum segundo enquanto ocupávamos nossos assentos, Vergil se distanciou de mim. Ficava abismada com o vasto hall de concerto e incontáveis lugares onde as pessoas se acomodavam seja no mesmo andar ou acima, era magnífico. Aguardamos o espetáculo começar, uma melodia ecoava e o efeito acústico do espaço duplicava mais a emoção que ela queria causar. Tudo estava razoavelmente pacífico.
Relaxei no assento, respirando fundo.
Apesar de não entender o sentido da cena que desenvolveu-se no palco, pude ter um bom momento. A suave música que tocara no plano de fundo fora substituída por ruídos estridentes de algo arrastando-se numa superfície de metal, os atores pararam de representar e a platéia ficou apreensiva. O silêncio reinaria se não houvesse gritos distantes. E como um estalo alto, as pessoas se dispersaram para a saída, desesperadas demais para se preocupar com nada além de querer salvar suas vidas.
Encarei horrorizada a vibração que emergiu juntamente com a intensa luminosidade, moldando-se em um espiral. Eu tinha visto semelhante naquela vez, David mencionara que essas anomalias são distorções dimensionais, no entanto, a escala desse era muito maior comparado aquele. Corremos em direção ao palco, esperei que, como a outra, surgissem demônios.
Não tardiamente, bizarras formas eclodiram do espiral, iguais a tentáculos distorcidos cheios de cerdas pontiagudas curvadas que se agitavam com frenesi. Um deles arriscou alcançar as poucas pessoas remanescentes e eu saquei a pistola, apertando o gatilho agilmente, detendo-o. Vergil retalhava a maioria desses “braços” que impertinentes o atacavam, e esquivando habilidosamente de cada investida. Seus movimentos eram rápidos demais para que captasse, só pude vê-lo guardando a katana na bainha e pedaços dilacerados da criatura. Segui para um ângulo mais protegido, e para dessa maneira descobrir como matar a criatura. E conduzida pela curiosidade, após ouvir barulhos de tiros preencherem o ar, sai da zona de segurança e me aproximei de Vergil.
— Vergil, tem mais alguém aqui!
O espécime desdobrou-se para outro ataque, porém não direto contra nós. Virei-me para descobrir quem era a nova presença, tudo que vi era outro Vergil caminhando no tapete vermelho.
— Quando soube a respeito de que você voltou à vida, tive que ter certeza. Ver com meus próprios olhos.
Os olhos azuis de Vergil enevoaram-se em visível furor maquiavélico.
— Não vai me dar um abraço, irmão?
Isso é mal, muito mal.
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