Vozes
Acordei amarrada numa cama. Tentei virar o pescoço e vi duas camas de ferro e paredes brancas, estava no hospital. Então eles conseguiram! Malditos! Minha morte era certa, questão de tempo.
Como num turbilhão, os dias que antecederam minha captura me voltaram...
...
As vozes chegaram. Primeiro era só uma, suave, ciciante:
— Eles vão te matar! Eles vão te matar!
Tentei pensar em outra coisa, mas outras vozes começaram a se misturar em minha cabeça. Agora já era um zumbido e foi só aumentando... Comecei a me agitar, a sentir abafada, como se a casa fosse me estrangular. Desci do apartamento e corri pela rua, o vento me refrescando, mas a vontade era tirar toda a roupa. Corri desembestada até que cansei. Deitei na grama próxima ao frigorífico velho abandonado. Quando dei por mim, senti um corpo quente junto ao meu: era o nosso cão Lupe. Minha cabeça estava oca. Um a um os pensamentos foram voltando, precisava voltar. Levantei trôpega e fui, lentamente, tendo Lupe como meu guia.
...
Tudo começou com a volta de Everaldo do coma. Durante 15 anos, eu chorei e cuidei dele.Foi só o safado acordar que começou a sassaricar, saindo de casa todos os dias, com a desculpa de vender a sua cerveja artesanal, muito apreciada nessa época pós-pandemia. Eu nem desconfiava de nada, até o dia em que ele chegou da rua com um embrulho enorme:
— Olha, minha velha, olha que carne boa eu consegui!
Abri o pacote com dificuldade. O barbante era em formato de cruz. Quando abri a carne, vi que tinha uns piques estranhos feitos à faca, pequenas cruzes. Cruz outra vez! Cruz significa morte. Afastei horrorizada com aquela coincidência e fui tirar satisfação com Everaldo.
— Não sei do que tá falando, minha flor, quem me vendeu foi a Gertrudes. Estava com um corte bom de carne e eu aproveitei. Vai dar para uns dois dias, não vai?
Desconfiei daquilo, mas sem outro jeito, fiz aquela carne estranha, mas não comi. Percebi um brilho esquisito no olhar de Everaldo me mandando comer:
— Come, minha velha, você tá muito magrinha, precisa dar uma engordada.
Dei minha parte para o Nando que, graças a Deus, está se recuperando do transplante de rim e podendo comer que está uma beleza.
— Não, vó, come você. Estou satisfeito com meu pedaço.
A voz então me falou:
— Obriga ele a comer! Por que ele não quer comer o seu pedaço?
Peguei o cabo de vassoura e quando vi, já estava em cima do Nando, que fugiu apavorado e todo mundo em cima de mim.
Trouxeram-me um copo de água com açúcar e me fizeram deitar. Deitei pra baixo, não queria olhar na cara do Everaldo. Fingido!
Mas fiquei de olho nele, ainda apanho ele com essa Gertrudes. Se eles acham que vão dançar em cima do meu cadáver, estão enganados. Mas preciso tomar cuidado, porque a abelhuda da Renata, minha nora, outro dia falou, eu fiz que não ouvi:
— Gente, já repararam como dona Carmem tá magra? E outra coisa: tá com mau hálito, parece que nem está escovando dentes.
Vieram me chamar a atenção depois disso, fingi que nem ouvi.Todos querem que eu morra, pra aquela uma tomar o meu lugar. Mas diz que o peixe morre pela boca, né? Pois eu não vou morrer, porque eu não como, não como e não como!
Outro dia, Nando me pediu pra assinar uma prova dele, porque seus pais tinham saído:
— Assina essa prova aqui para mim, vó.
De pronto assinei, devolvi e ele espantou:
— Uai, vó, mas o seu sobrenome não é Linhares, esse é o do Marcelo, noivo da Sofia.
— A partir de hoje, não assino mais o sobrenome do seu avô, só se a gente casar de novo e ele aprender a me respeitar.
Ouvi, mais tarde , eles cochichando às minhas costas, mas fingi que não vi.
...
— Eles estão vindo, Sofia, eles vão me matar! — Ouvi vozes se aproximando, se aproximando...
Era folga de Sofia e nós estávamos conversando. Em vão, ela tentava me acalmar:
— Não há ninguém aqui, vovó.
Eu tampava os ouvidos, mas os gritos só aumentavam.
— Não deixa eles me matarem, Sofia.
— Eles quem, vó?
— Seu avô, Gertrudes, sua mãe ...
— Vó, para com isso! Meu vô te adora e todos nós também! — Ela estava apavorada.
Eu olhei derrotada para ela:
— Até você, Sofia, me quer morta?
— Vovó, eu te amo, mas eu tô ficando com medo. Para de falar essas bobagens!
—Tô falando bobagens? Vou te mostrar uma coisa.
Levei-a até a dispensa e mostrei - lhe:
— Que é isso, vó?
— Aqui dentro desse saco estão as comidas que seu avô trouxe para mim.
— E que tem isto? Ele sempre traz alguma coisa para um de nós, coisa que a gente gosta. Ele sempre traz abacate pra mim, não é? Ele trouxe esses pãezinhos recheados, porque sabe que você gosta.
— Mas esses pães estavam batizados. Se eu comesse, eu morreria.
— Quem te falou isso, vó?
— Falaram aqui ó, dentro da minha cabeça.
Sofia espiou dentro do saco e se afastou o com mau cheiro que emanava dele.
— Vovó, por favor, joga fora e para com essas bobagens de ter ciúme do vô! Ele gosta tanto da senhora!
— Tá bom, Sofia.Vou jogar fora.
Concordei, porque gosto muito de minha neta e não queria que ela fosse falar pros outros, que já me olhavam com cada olho de jabuticaba, como se eu fosse um E.T.
— Outra coisa, vó, vamos ao médico, fazer uns exames, ver como está de saúde?
— Ah! Eu sabia! Esse papo não era de graça. Vocês querem me levar pro médico, de qualquer jeito, né? Eu estou ótima. E se você gosta de mim, não me fale em médico.
— Tudo bem, vó.
Dali a pouco, chegou o Everaldo com mais um daqueles pãezinhos nojentos que ele dera pra me trazer. Eu estava na cozinha, quando ele entrou e colocou no balcão.
— Aqui, minha prenda, um pãozinho de canela que a Gertrudes acabou de assar e mandou pra você.
Ao ouvir o nome da dita-cuja e ver a cara de desfaçatez daquele que se dizia meu marido, gritei:
— Ah! Você acha que eu sou boba? Que eu não sei o que vocês estão tramando? Você não me engana , Everaldo. Você não vai me matar e ficar feliz da vida com ela.
Avancei pra cima dele, com uma força que eu não fazia ideia de ter, desci a faca sobre o seu peito, mas ele foi esperto e virando o corpo, pegou o meu braço e torceu, tive que deixar a arma cair.
— Cê tá ficando louca, mulher? Fernando, acode.
Meu filho apareceu e me abraçou, forte, porém com carinho. Me levou pro meu quarto e tentou me acalmar. Eu queria acabar o serviço, dar cabo daquele patife do Everaldo. Eu bufava feito um boi bravo, mas Fernando foi me acalmando, até que dormi, exausta com a situação.
...
No outro dia, as vozes voltaram, alternavam-se em minha cabeça, ora alta, ora baixa, uma fina, outra grave:
— Eles vão te matar! Eles vão te matar!
Tentei me concentrar na limpeza da casa. Às vezes, esfregava o piso com tanta força que as vozes se acalmavam. O resultado é que a casa estava um brilho, e todos a se preocupar, ao invés de ficarem agradecidos. Passei a não dar muita conversa pra eles. Mal dava conta da falação dentro da minha cabeça.
Mas nada aplacou o zumbido no meu ouvido. Desta vez fui andando às cegas, tonta, em direção à dispensa, atraída pelas vozes.Quanto mais próxima do saco com coisas ruins eu chegava, mais as vozes se altercavam, cada vez mais altos eram seus gritos...Peguei o saco e ganhei as ruas. Minha cabeça parecia uma turbina, meu corpo afogueado. Desfiz-me das minhas roupas na altura do comércio da Gertrudes. Disparei em direção ao frigorífico velho, estava só de calcinha e sutiã, sentindo o vento me refrescar. Passei por baixo da cerca e avancei pelo mato até à beira do ribeirão. As vozes agora se intercalavam nas ordens:
— Eles vão te matar! — sussurrava uma.
— Eles vão te matar! — gritava outra.
Acerquei-me do ribeirão, então as vozes mudaram as ordens:
— Atira o saco!
— Pula na água!
— Atira o saco!
— Pula na água!
— Fala te esconjuro!
Sem pensar duas vezes, atirei o saco na água, gritei te esconjuro e pulei atrás dele, mergulhando, sentindo a água cobrir minha cabeça e apagar a altercação de vozes. Que paz! Senti minha cabeça leve pela primeira vez em muito tempo! Então comecei a relaxar...
De repente, senti um puxão, algo me arrastando, arfando junto ao meu pescoço: era Lupe, nosso cachorro. Agarrado ao meu sutiã, lançou-se na hercúlea tarefa de me trazer para a margem. Mas a alça do sutiã arrebentou e eu me soltei, mergulhei suavemente no riacho, ouvindo vozes que vinham de fora desta vez, não eram na minha cabeça.
Acordei no hospital.
...
Dr. Marcelo é sempre simpático. Percebi uma ruga de preocupação em seu belo rosto moreno.Eu andara muito agitada no dia anterior.Gertrudes tinha me visto passar por sua porta e me seguiu, juntamente com seu empregado. Foram eles que me salvaram de afogar no riacho, o doutor me contara.
— Não, doutor, pode ficar sossegado, que eu vou ficar deitada aqui, quietinha
Fiz o médico acreditar que isso era passado e o bobo acreditou. Esperei dar a hora do almoço, quando a portaria fica mais vazia. Esgueirei-me e dei linha, corri pela rua abaixo.Precisava me afastar do hospital. O dr. Marcelo estava malcomunado com Everaldo, com aquela tipa da Gertrudes e quem mais, meu Deus? Fugir, mas pra onde? Eu estava uma figura, esquálida, de chinelos, com o avental do hospital enrolado na cintura que, de tão fina, deu pra dar duas voltas, sem expor minha triste figura. Lembrei-me do riacho próximo do frigorífico velho. Lá eu encontrara a paz. Corri feito uma louca, perdi um dos chinelos, mas pouco me importava. Senti a liberdade tão sonhada! Corri mais um pouco: já não estava longe. Senti que estava livre desses demônios do hospital, que só sabiam ficar me dando remédio para dormir, mas... quem eu vejo pela frente?
— O maldito do Everaldo!
Alguém o avisara. E veio para o meu lado com aquela conversa mole de vem cá, minha velha! Pra cima de mim não, que eu sei bem que ele mais os outros querem me matar, tudo isso para ele ficar com aquela sirigaita da Gertrudes, aquela bunduda. Daí que o Everaldo ia ajudar o doutor Marcelo, a enfermeira e o porteiro a me capturar pra me botar de novo na ambulância. Mas nem tudo estava perdido.[Quebra da Disposição de Texto]Dei uma nega neles e subi em direção à praça.
Acordei amarrada numa cama. Tentei virar o pescoço e vi duas camas de ferro e paredes brancas, estava presa no hospital. Então eles conseguiram! Malditos! Minha morte era certa, questão de tempo.
...
Agora, olhando para o teto do hospital, eu vejo que estou perdida. Acordei com uma mão em meu rosto:
— Mãe, sou eu, o Fernando.
— Oi, filho, me tira daqui.
Vi lágrimas e preocupação genuína em seus olhos:
— Mãe, a senhora precisa tomar os remédios.
— Mas eu tô tomando.
— Sofia falou que a senhora está escondendo o remédio debaixo da língua e cuspindo no chão. Todo dia encontram um comprimido debaixo de sua cama.
— É mentira, Fernando, esse povo quer me matar!
— Mãe, me corta o coração ver a senhora amarrada nessa cama. Por favor, mãe, se a senhora me ama, aceita o tratamento. Eu sinto muito a sua falta. Por favor, promete que vai tomar os remédios para voltar logo?
Eu amo tanto meu filho que prometi tomar os remédios, dessa vez pra valer.
...
Doutor Marcelo hoje veio me ver. Pelo jeito está feliz com meu progresso, estava todo sorridente e me chamando de vovó Carmem.
— Vovó Carmem, seja boazinha, eu não quero ter que amarrar a senhora de novo, cortou-me o coração. — A voz rouca e aveludada do Dr. Marcelo, noivo de minha neta Sofia, era um charme.
Perguntei pela alta e ele me prometeu para logo.Diz que só depende de mim, que vai chamar a família toda para conversarmos.
Hora da visita, só alegria. Todos vieram. Everaldo me trouxe uma rosa vermelha, galante como sempre:
— Uma rosa para a rainha das rosas. — E me deu um beijo.
O médico então explicou para todos nós que estava investigando, mas que, provavelmente, eu tivera uma crise de esquizofrenia, devido ao meu comportamento. Porém, tomando o remédio direitinho, eu levaria uma vida normal.
— Mas e as vozes na minha cabeça, doutor?
— É só não deixar de tomar esse aqui, o azulzinho. Se não tomar, elas voltam.
Uma voz em minha cabeça disse: diga sim!
E eu disse!
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