Um Jogo De Reis
O grupo era de cinco.
O gordinho bochechudo de rosto vermelho era Lucas. O mais alto era russo, tinha um jeito de falar como se tivesse comido cogumelos envenenados e coca cola, se chamava Aleksander e estava sempre dizendo que não era assim que se pronunciava seu nome, o que não importava realmente, já que ninguém entendia o que ele dizia. Tomás era o português, falava como um português, parecia com um, e era o comandante. Caio era o mais fraco, magricela, falava pra dentro e era médico. Pandora era única garota. Não que devesse ter uma garota ali, mas todo mundo fingia que era a coisa mais normal do mundo, já que ela era novata. Falava pouco e quando falava, era sempre um comentário besta, tipo:
— Então, vocês são padres?
A Congregação era uma organização religiosa, então fazia sentido.
— Não — respondeu Tomás.
— Mas a Congregação tem padres, né?
— Sim, mas nós não somos.
— Mas vocês têm voto de castidade, né?
— Não — respondeu Lucas, vermelho como um tomate. Talvez pelo calor. Talvez pelo teor da pergunta.
Tomás queria que não tivessem colocado ela no grupo.
— Tá, mas e você? — Tomás mudou o rumo da conversa. — Não sabemos nada sobre você.
Pandora deu de ombros.
— Não tem muito pra saber.
Mal ela fechou a boca, o penúltimo alarme soou.
Estavam em uma floresta que era um labirinto e estavam sem tempo. Os Jogos Congregacionais eram como as olimpíadas, só que com a chance de você morrer. Cada atleta podia escolher o jogo em que era bom, Tomás sabia que só era bom em estratégia, então escolheu a Floresta. Ele não tinha ideia do que Pandora achava que era boa pra ter entrado também. Ela era a única novata e carregar um novato é sempre um desafio.
— Os Falcões vão chegar logo — alertou o magricela, Caio.
Eram ao todo 12 equipes. Cada membro de cada equipe recebia uma peça de xadrez e apenas o líder recebia um rei. Demais peças valiam 5 pontos, mas o rei valia 50. O objetivo era coletar o máximo de pontos possível e, ao fim de 5 dias, levar as peças a um local indicado na Floresta, conhecido como Marca.
Para isso, você teria de derrotar os membros das outras equipes. A maioria ia atrás apenas do rei. Só uma equipe pode sair vencedora, mas a Congregação definiu duas regras importantes: se um membro X de qualquer equipe abdicar de sua própria peça, toda a equipe será desclassificada e escoltada para fora da Floresta. Um dos membros, exceto o rei, pode sempre abdicar de seu lugar na equipe e juntar-se à equipe desafiante, se o líder adversário aceitar.
Os Falcões haviam derrotado dois terços das equipes. Tinham 500 pontos apenas em reis, sem contar as demais peças. Sem contar os membros recrutados nessas empreitadas. Não tinha como derrota-los nem se fossem bons de luta e o único realmente bom ali era Aleksander.
Estavam agora no penúltimo apito do quinto dia. Não tinham tempo nem pra respirar.
— Vocês sabem o que fazer — disse Tomás. — Aleksander, fique pronto. Pandora, não atrapalhe.
Pandora fez uma careta e Aleksander sacou dois estiletes e resmungou, desgostoso, algo sobre o nome dele não ser assim. Não demorou muito para que o Destronador, Edgar, estivesse ali.
— Olá, português! — Atrás do líder dos Falcões, um rapaz de olhos de gato e alto, estavam os oito membros de sua equipe. Edgar ostentava uma sacola onde eram visíveis as 8 peças de reis que ele destronara. Tomás o conhecia, ele era muito exibido. — Faça um favor a nós dois e entregue seu rei, eu não estou com disposição de degolar você por ele.
— Belo discurso, terminou?
Tomás lançou um punhal que estivera em sua mão na direção dos olhos de gato do Destronador. Passou perto, mas não o acertou e acabou fincando-se na árvore atrás dele.
— Belo arremesso.
E então toda a horda dos Falcões correu na direção dos Aviadores. Todavia, antes que Edgar alcançasse Tomás para lhe dar um soco na cara, Aleksander foi quem o fez. Tomás caiu sentado, a boca sangrando e um olhar surpreso.
— Aleksander? — exclamou.
— Meu nome não é assim — Depois inclinou-se e tomou a peça que estava no bolso de Tomás. Então, virou-se para o Destronador. — Eu requisito ao líder que deixe eu me juntar aos Falcões. Em troca, lhes darei a peça que pertencia a Tomás.
O Destronador sorriu com interesse.
— Eu aceito sua proposta. Dê-me a peça.
— Eu darei quando chegarmos à Marca, para ter certeza de que você não me deixará com esses idiotas.
— Não! — exclamou Lucas e agarrou Aleksander por trás para tentar impedi-lo, mas o Destronador sacou um punhal e o esfaqueou na barriga. Pandora soltou um grito enquanto Lucas ia ao chão, sangrando.
Um dos membros dos Falcões empurrou Pandora, mas o Destronador exclamou:
— Não! Não a toquem. Não queremos machucar a única garota que temos, não é?
E lançou para ela um sorriso mesquinho que Tomás só pôde considerar ridículo.
— Vão embora! — disse Tomás, arrastando-se até Lucas. — Vocês já têm o que queriam. Deixem-nos em paz.
O Destronador riu.
— Ainda nos veremos de novo, Rei de Nada. Vamos!
E virando-se, esgueiraram-se de volta pela floresta, rumo à Marca.
Caio e Pandora aproximaram-se de Lucas, que gemia, pálido pela primeira vez na vida.
— A camada de gordura protegeu os órgãos internos dele — disse Caio, suspirando de alívio. — Eu nunca mais vou dizer pra você não comer aquelas rosquinhas, amigão.
— Temos que voltar à Congregação — disse Pandora — Eu vou abdicar da...
Antes que Pandora alcançasse a peça em seu bolso, Tomás a refreou.
— Ninguém aqui vai abdicar de nada!
— O quê? Lucas está morrendo!
— Ele não está morrendo, só... quase morrendo.
— Qual a diferença?
— A diferença é o determina se vamos vencer ou perder.
— Vencer? Estamos no último dia, o penúltimo sinal já tocou, estamos sem nosso melhor lutador e um dos nossos amigos foi esfaqueado.
— Isso não é nada. Vamos, vamos para a Marca.
— Quem é você para me dar ordens? — Pandora retirou a peça que estava em seu bolso. Era o rei. — Eu sou o rei, esqueceu?
— Você não é o rei, é só a pessoa que carrega o rei. Eu escolhi você justamente porque passa despercebida, agora ponha de volta no bolso!
— Eu vou abdicar!
— Não vai não!
Tomás tentou agarrar Pandora e a impedir de fazer uma loucura, mas assim que a tocou, ela o girou no ar e o derrubou de costas na relva seca, depois pressionou o pé contra o pescoço dele. Espera, o quê?
— Eu. Vou. Abdicar.
— Espere! — Tomás berrou e suspirou. Ainda estava surpreso que ela sabia lutar. Se soubesse disso antes, não teria colocado tanta confiança em Aleksander. — Eu não escolhi esse jogo porque era fácil, escolhi porque sou bom. Eu tenho tanta preocupação por Lucas quanto você, ele é meu melhor amigo, mas eu sei o que estou fazendo. Eu confiei em você com o rei, preciso que confie em mim também. Trabalho de equipe é isso, não?
Pandora não respondeu, mas parou de estrangulá-lo com a bota.
— É bom que ninguém dessa equipe morra — disse ela e foi ajudar Caio nos primeiros socorros para Lucas.
***
Boatos de que eles estavam sem rei se espalharam rápido. Atravessaram a floresta à quase vista das equipes restantes sem serem atacados, afinal, eles não valiam o esforço. Num grupo pequeno, chegaram à lagoa dos patos, que ficava antes da Marca, ao fim do dia. Esgueiraram-se pelas árvores e viram os Falcões acampados ao lado do lago, banqueteando-se com os cogumelos que cresciam ali. Aquele era o caminho mais rápido, Tomás sabia disso porque eles haviam acampado ali no primeiro dia. Aleksander também sabia. Ele certamente havia dado a ideia ao Destronador.
— Tem certeza que isso vai dar certo? — sussurrou Pandora, encolhida na moita ao lado de Tomás.
— Se não der certo, você pode nocauteá-los — sorriu ele. — Por que não me disse que sabia lutar?
— Você não perguntou, só ficava me dizendo pra não atrapalhar.
— Como aprendeu?
Pandora se encolheu.
— Eu passei por um bocado de coisa no último ano. Talvez eu te conte se você parar de ser um babaca que põe vitórias em jogos acima de seus amigos.
Os dois riram baixinho.
— Então parece que eu nunca vou saber. — E depois apontou para os Falcões, do outro lado do lago. — Veja, parece que deu certo.
Dos dez do grupo, sete estavam se contorcendo na grama, com espuma e sangue escorrendo de seus lábios. Um deles era o Destronador.
— Eu me lembro de ver Aleksander assim — disse Pandora. — No primeiro dia, quando ele comeu um daqueles cogumelos inocentemente. Teria morrido, é uma sorte que temos um médico no grupo. — E lançou um olhar amoroso para Caio, que estava cuidando de Lucas.
Lutadores eram mais requisitados para equipes, mas Tomás sabia da importância dos médicos. No primeiro dia, quando acamparam ali e descobriram que os cogumelos eram venenosos, isso foi que definiu sua estratégia. Ao longe, viu Aleksander aproximar-se do Destronador e roubar a sacola com os 8 reis destronados. Edgar tentou resistir, mas não tinha forças. Aleksander jogou para ele a peça que pertencera a Tomás. Era um peão.
— Como prometido — disse o rapaz russo.
Os dois outros membros ainda de pé tentaram impedi-lo, mas Aleksander os nocauteou sem esforço. Os Aviadores vieram pelo lago e se aproximaram dele.
— Eu reivindico ao líder que deixe eu me juntar aos Aviadores — disse Aleksander. — Em troca, lhe darei as 8 peças de rei que tenho.
— Eu aceito — disse Pandora. Como líder, só ela tinha autoridade para aceitar. Pegou a sacola e depois entregou a Tomás.
— Eu ainda odeio o jeito como você pronuncia meu nome — disse Aleksander para ele com um risinho.
A estratégia de Tomás era simples: nenhuma regra dizia que um membro podia abdicar de sua equipe uma vez só. E nenhuma regra obrigava a equipe a revelar quem era o líder. Tomás agiria como o líder, então todos achariam que ele era o líder e atacariam a ele; e ninguém tocaria em Pandora, já que ela era a única garota da Congregação. Então, ele fingiria ter sido derrotado, colocaria um agente duplo na equipe mais forte da competição, faria sua própria equipe parecer fraca e bum: ele venceria sem precisar fazer esforço físico.
A competição não era sobre ser mais forte. Era sobre conseguir ser rei. E Tomás era.
Quando chegaram à Marca, o último alarme soou, determinando sua vitória.
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