Um crime quase perfeito
"— Rosa,
Tu és divina e graciosa,
estátua majestosa..."
Escutei a voz do tenente Cardoso xavecando a minha vizinha.
Rosa deu-lhe um sorrisão e entrou. Não pude deixar de falar com ele:
— É, tenente, mexendo com mulher casada, isso vai acabar mal...
— Ah, eu não resisto a essa mulher, é um pedaço de mau caminho! — E me assegurou: — Essa tá no papo.
Com uma barba muito bem feita, olhos verdes, corte disfarçado, corpo esbelto, era um cara boa pinta: será que Rosa resistiria?
Sacudi a cabeça e entrei. Logo mais teria a votação para o próximo síndico e eu não escaparia, não deu outra:
— Parabéns, Fernando, você vai ficar rico administrando nossa fortuna — pilheriou o Raul, marido de Rosa. Ele fora síndico por dois anos seguidos e já não queria mais.
Senti falta de Rosa:
— Ela não está se sentindo bem, foi deitar-se mais cedo — informou Raul.
Guardei para mim a conversa que tivera com o tenente.Longe de mim causar intrigas conjugais.
— Rosa quer mudar algumas coisas no guarda-roupa, vou lá terminar, senão ela vai falar a noite inteira, você conhece as mulheres.
Me dando uma piscada conspiratória foi-se, tocando sua cadeira de rodas com apenas um braço que funcionava.
***
A rotina de síndico não atrapalhava no meu trabalho como programador de software. Desde a pandemia de 2020, o homeoffice tornara-se a melhor opção. Então conciliei minha nova função ao meu trabalho, sem problemas.
Estava recolhendo as correspondências, 2 dias depois, quando deparei com Raul com o rosto estranho:
— Acho que vou ter que chamar a polícia. Rosa sumiu.
— Sumiu? Como assim?
— Saiu para trabalhar ontem e não voltou, liguei no trabalho e falaram que ela não aparece lá desde ontem.
— Será que ela não foi visitar alguém?
— Não temos parentes aqui.
— Alguma amiga (ou amigo ? — pensei).
—Não temos segredos, ela teria me contado.
— É, acho melhor chamar a polícia.
A polícia veio, fez perguntas e eu permaneci junto a Raul, para lhe dar um apoio moral. Meu pai Everaldo chegou e ficou um pouco com ele, fazendo-lhe um pouco de companhia depois.
***
Três dias se passaram e Rosa não deu notícias. A polícia voltou, interrogou várias pessoas do prédio, informou que interrogara a patroa dela, a esposa de um dos Dirigentes e não percebera nada suspeito.
Após a saída da polícia, Raul desabafou:
— Foram eles que sumiram com Rosa.
— Eles quem?
Falando baixo, cochichando:
— Os Dirigentes.
— Mas... por que eles a matariam?
— Talvez ela deve ter ouvido alguma coisa. Eles não precisam de motivo pra sumir com alguém.
— E o Miguel ? Ele pode saber do paradeiro da mãe.
— Ele só aparece pra pedir dinheiro, não vale nada. Não sei o que farei sem minha Rosa, ela era tudo para mim.
Ele não era inútil, mesmo na cadeira de rodas e com um braço só funcionando, fazia muita coisa dentro de casa.
Apertei o seu ombro e saí, condoído com sua sorte, torcendo para que Rosa aparecesse.
***
Meu pai, Everaldo, chegou da rua com uma expressão intrigada no rosto:
— Sabe com quem encontrei no centro da cidade?
— Com Rosa?
— Não, com o tenente Cardoso. Achei curioso...
— O quê?
— Ele me disse que pediu transferência de setor.
— É mesmo? Por quê?
— Não entendi bem a explicação, há anos ele era do nosso setor.
— Ele sabe de Rosa?
— Disse que não sabia, pareceu genuinamente surpreso.
— Eita! Será que...
— O que está pensando?
— Ele me disse que ela estava no papo. Será que estavam saindo?
— Rosa era faceira, risonha, mas acho que não traía o marido.Eles viviam num agarramento só.
— Mas é esquisito ele ter saído daqui justamente agora que Rosa sumiu.
— É verdade, ele saiu poucos dias antes.
—Estranho, muito estranho...
***
Os dias passaram e Rosa não apareceu. Raul decidira passar uns tempos no interior na casa de parentes, estava muito abatido. Despedi-me dele com a promessa de informar qualquer novidade.
Como síndico, eu precisava zelar pela ordem e bem-estar no edifício.Certa noite, recebi um telefonema da vizinha do 102:
— Fernando, tem um barulho suspeito no apartamento 101.
Desci rápido, levando uma lanterna. Peguei a chave reserva. Quando abri a porta, percebi um vulto na cozinha. Acendi as luzes: era o filho de Rosa.
— Miguel, que você está fazendo aqui?
— Aqui é minha casa.
— Você sabe do paradeiro de sua mãe?
—Não, por que eu deveria de saber?
— Ela está sumida há quase um mês, você não sabia?
— Eu liguei, mas ela não atendeu, então não tinha como saber. Tem mais de um mês que não venho em casa, tô trabalhando.
Pelo estado de suas roupas, sabia o que ele andava fazendo.Vivia na Cracolândia perto da Pedreira. Quando Rosa falava dele, seu rosto perdia toda alegria, pesarosa com a vida que o filho escolhera, mas depois voltava a sorrir, resignada.
— Mas você veio fazer alguma coisa aqui.
— Não é da sua conta.
— Talvez seja da conta da polícia que está investigando o sumiço de sua mãe.
— Tá bom, eu vim buscar dinheiro, mas aquele...— xingou um palavrão — deve ter levado tudo com ele.
—Não está preocupado com sua mãe? — Eu estava perplexo.
— O que posso fazer se a velha resolveu dar no pé ? Ela inventou de morar com aquele aleijado de uma figa, que só sabia gastar o dinheiro que ela custou a ganhar.
— Ela ganhou dinheiro recentemente?
— Ela recebeu uma herança boa faz uns três meses.
— E ela te deu uma parte da herança?
— Deu uma parte.
Entendi porque ele estava sumido de casa, mas o dinheiro devia ter acabado.
—Mas ela tinha que me dar mais, sou filho dela, tenho direito.
Foi para os quartos, mas o Miguel não tinha chave. Pedi a ele que fosse embora, dei-lhe R$ 50,00 que tinha no bolso e ele se foi. Percebi que a tranca da porta da cozinha estava quebrada e precisava mandar arrumar.
***
— Vem dormir, amor. — Renata, minha esposa, me tirou dos meus pensamentos. Ela se inclinou e viu meu desenho:
— O que é isso? Virou detetive?
— Não, sim, é que... estou encucado com o desaparecimento de Rosa.
— O que descobriu?
— Nada ainda, mas veja que interessante: temos um tenente que xavecava Rosa todos os dias e, de repente, antes do seu sumiço, pede transferência.
— Hmmm, interessante.
— Temos o filho viciado e que hoje voltou ao apartamento passando pelo muro e sabia que a porta da cozinha não trancava. Nem um pouco preocupado com o sumiço da mãe.
— Certo e temos o marido, o marido é sempre suspeito.
—Sim, temos um marido, paraplégico. Qualquer um dos dois, o tenente ou o filho, poderia sumir com o corpo, passando pelo muro, é difícil mas não é impossível, porém o marido fazer isso é mais difícil, né? Só que a polícia já investigou e descartou essa possiblidade.
— Raciocínio certo.
— Outra coisa, já olhei as filmagens, não há nenhum movimento suspeito.
— O que está pensando?
— Não sei, tem algo estranho, senti falta de alguma coisa no apartamento hoje, e nas filmagens, não sei o que é ...mas tenho uma ideia.
***
.Fui até à Praça Sete, no dia seguinte, aproveitei para passar na banca do Manoel, ali na rua Carijós, para fazer um jogo:
— A Rosa tá sumida ainda, né?
— Como você soube?
— Raul teve aqui ontem e me contou, aproveitou e pagou uma dívida antiga. Teve sorte no jogo.
— Ganhou aqui?
—Não, noutra banca. Me pagou e voltou a jogar como antes — dinheiro grosso. Mas tá sofrendo demais por causa da Rosa, coitado!
Despedi dele e subi a avenida Amazonas, já sabendo que Cardoso estaria por ali. Na segunda volta, trombei com ele:
— E a Rosa apareceu?
— Até hoje não.
— Deve ter cansado dessa vida ferrada, só trabalhando para sustentar vagabundo.
— Mas o Raul era de boa, por que ela o deixaria?
— Sei não, cara estranho, tem alguma coisa errada com ele.
— E você mais a Rosa?
— O que é que tem?
— Você vivia mexendo com ela e me disse que tava pegando...
— Que é isso cara? Tá me estranhando? — De repente ele ficou nervoso — O que tá insinuando?
—Não estou insinuando nada, fica tranquilo, só estou me lembrando que você me falou que tava saindo com a Rosa.
Ele se enfureceu comigo e me levou a um canto:
—Eu falei aquilo de zoação, entendeu? Eu nunca tive nada com a Rosa, me deixa fora disso.
— Calma, cara, tem que falar sobre isso é com a polícia, não comigo.
— E se você envolver a polícia nisso, você tá ferrado comigo.
Despedi-me do tenente que suava profusamente.
***
Saí para fazer caminhada com Lupe, nosso cachorro, para chacoalhar as ideias. Quando voltei, vi luzes no apartamento 101. Toquei a campainha, Raul me atendeu depois de uns 5 minutos.
—Tudo bem, Raul? Vi luzes aqui...
—Tudo! Vim aqui buscar umas coisas, mas amanhã tô voltando para o interior.
—Ah, é? Por enquanto nenhuma notícia?
Seu rosto ficou sombrio:
— Nada, esses Dirigentes jogaram Rosa nalgum lugar difícil de descobrir.
Despedimo-nos, mas quando ele fechou a porta, eu descobri do que dera falta em sua sala. Subi, dei uma boa olhada nas filmagens de um mês atrás e dei um telefonema.
***
Bati na porta de Raul uma hora depois, ele demorou de novo a abrir, estava suado, imaginei que fizera atividade física.
— Trouxe janta.
— Ah! Agradece dona Carmem por mim.
— Raul, quero trocar uma ideia com você, estou suspeitando de uma pessoa. Posso entrar?
Lupe entrou comigo.
— De quem?
— Tenente Cardoso.
Seu rosto se iluminou:
— Eu nunca fui com a cara daquele sujeito, sempre cantando a Rosa, é um safado.
— Será que fugiram juntos? Afinal Rosa recebeu uma herança, não é verdade?
Sua expressão se iluminou mais ainda:
— É isso mesmo, como eu não liguei os pontos? Sempre dando de cima dela e Rosa não sabia calar aquela matraca, sempre dando bandeira.
— Tem ideia de onde estariam?
— Aposto que em alguma praia.
Nessa hora, ouvimos um ganido do Lupe, vindo de um dos quartos.
—Acho que o Lupe está lá dentro, Raul.
— Chama ele aqui.
— Vou ver onde ele está.
— Não! — Ele me segurou com seu braço bom, era forte.
— Qual o problema?
— Chama o seu cachorro e sai daqui.
Sua agressividade me impressionou:
— Não tô te entendendo.Por que não posso ir ao seu quarto?
— Você quer ir ? Então vamos.
Foi me empurrando para o quarto. Lupe escavava junto ao guarda-roupa. Abri suas portas. Lupe ganiu feito um louco. Olhei as gavetas, as roupas, tudo normal.Então uma ideia me ocorreu. Afastei as roupas e bati no fundo do guarda-roupa: a parede cedeu.Para meu horror, senti um mau cheiro horrível e a ponta de um tapete apareceu. Entendi tudo: eu sentira a falta do tapete da sala e lá estava ele, enrolado.Na ânsia da descoberta, eu até me esquecera do Raul. Quando me virei, uma 38 estava apontada para mim, segura em duas mãos:
— Rosa está aí dentro, não está?
—É isso mesmo, ela tá aí dentro, e você e seu cachorro xereta vão fazer companhia pra ela.
Tentei ganhar tempo:
— Calma aí! Por que você fez isso? Rosa era gente boa.
— Porque eu precisava do dinheiro e aquela vaca só liberava no conta-gotas.
— Mas por que voltou aqui? Por que não sumiu?
— Quase foi um crime perfeito: sem corpo, não há crime. Mas eu esqueci de um detalhe: guardei a bolsa com o cartão do banco junto dela e não tive como sacar o dinheiro, entendeu?
Engoli em seco, pesando minhas possibilidades, agora que eu o desmascarara. Ele sorria, perverso:
— Só não sabia que ia encontrar alguém bancando o detetive, vai pagar caro por isso.
Esticou o braço e puxou o gatilho.Lupe pulou na hora para me proteger e tombou baleado. A arma tinha silencioso, eu não teria sorte, a próxima bala era minha.
Para ganhar tempo, pedi:
— Me deixa despedir do meu cachorro?
Ele me apontou a arma:
— Fim de linha!
Fechei os olhos, mas o que se seguiu foi uma confusão. Raul tombou pra frente, imobilizado, com um braço em seu pescoço, sua arma pulou pra longe e eu me deparei com o Tenente Cardoso e mais quatro policiais. Eles chegaram bem a tempo! Eu começara a suspeitar de Raul, porque há uns dias olhara nas filmagens e não vira Rosa saindo no dia de seu sumiço. Então, liguei para Cardoso, que puxou a ficha de Raul: era longa.O mais curioso foi ver o criminoso sair andando normal, sem problema: era um excelente ator, enganara-nos a todos com a sua performance.
Abracei meu valente cachorro: ele respirava, estava vivo!
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