Texto 8
O MUNDO QUE MORREU COM ELAS
"À mulher foram dadas duas asas de grande águia, a fim de voar para o deserto, para o lugar de seu retiro, onde é alimentada por um tempo, dois tempos e a metade de um tempo, fora do alcance da cabeça da Serpente."
Apocalipse 12; 14
I.
Sempre achei que realitys shows eram experimentos sociais misturados com entretenimento.
Pegamos algumas pessoas diferentes, colocamos em situações extremas e vemos como reagem.
O resultado sempre é meio decepcionante. Um retrato social fino é visto como... diversão.
Então, eu penso que Deus estava achando esse nosso reality show muito parado e aí nos enviou algo que chamamos de Anvid 24 e a Grande Depressão. Eventos gigantescos da história da humanidade que evidenciaram o que já era bem óbvio: os homens são uns babacas.
A primeira pessoa que vi quando acordei sem memórias foi um homem esguio, de cabelos negros penteados para trás e profundos olhos azuis. Disse-me que eu era Eva, como a primeira mulher do antigo mundo. Ele, para mim, era Papai. Dias depois, Papai me levou a um vasto salão e me mostrou aos outros homens. A Elite.
Ao me verem, eles se tornaram como animais. Avançaram. Ferozes. Famintos. Bárbaros. Eu era carne. E só. Eles me tocaram, puxaram, rasgaram minhas roupas. "É um milagre", diziam. Eu não me sentia um milagre.
Papai me socorreu. Afastou-os de mim e ordenou ao homem encarquilhado, seu servo, que me levasse de volta ao quarto. Ora, mesmo o homem encarquilhado não podia evitar tentar tocar "um milagre". Quando suas mãos vieram ao meu encontro, longe das vistas de Papai, eu o golpeei. Tomei um vaso de porcelana ao lado e o golpeei na cabeça com toda a força. O homem encarquilhado caiu sobre a poça do próprio sangue.
Acho que o matei. O que Papai faria quando descobrisse que eu matei seu servo? Provavelmente me jogaria de volta aos lobos. E isso foi o que eu disse a mim mesma para me convencer a fugir dali.
Na rua, não foi muito diferente.
O mundo parecia velho e cansado. Os carros são velhos, as casas são velhas, os postes, o asfalto, tudo velho. Até os homens.
A pequena aglomeração humana que encontrei depois de andar muito me olhou como se eu fosse impossível. Depois, como se eu fosse carne. E só. Eram todos velhos, cansados. Juntaram-se ao meu redor como lobos. Vorazes. Selvagens. Famintos. Me tocaram, me amassaram, quase me rasgaram.
Eu gritei do fundo da minha garganta por socorro e, ao contrário do que imaginei, ele veio na forma de um jovem rapaz, muito diferente dos outros que vestia um casaco de lona e um boné e, junto a ele, um homem alto, musculoso e barbado que calçava saltos e usava saias. Mostraram-lhes um distintivo e, depois de um protesto ou dois, os velhos foram embora.
E foi assim que eu acabei no banco de trás de um celta prateado.
— É impressionante... — disse o homem de saias, Fiona, ao tentar me tocar, mas eu me virei para fugir do carro. — Ok, ok, entendi, sem toques! Ninguém vai machucar você.
— Vocês são policiais?
— Mais ou menos — disse o rapaz. — Fiona e eu somos agentes de campo da Congregação.
— O que é isso?
— Onde diabos você esteve esse tempo todo?
— Eu... não sei. Acordei em uma sala estranha e não lembro de nada antes disso.
— Então você não sabe quem é? — perguntou Fiona. Meneei que não. — Você não tem um nome? Bem, temos que chamá-la de alguma coisa. Vamos dar um nome pra ela, Theo?
Theo me olhou pelo retrovisor.
— Eva. É o nome da primeira mulher do mundo, segundo a mitologia cristã.
— Tecnicamente, a primeira mulher do mundo foi Lilith — disse Fiona.
— Não na crença cristã.
— Eu... não gosto de Eva — interrompi.
— Então... Pandora. Era o nome da primeira mulher do mundo, segundo a mitologia grega.
— Pandora é bom.
E assim, eu passei a me chamar Pandora.
Fiquei com eles por alguns dias no prédio que servia de base de operações da Congregação. Theo me deu jornais amarelos e mofados para ler. Em um deles, de setembro de 2024, a manchete dizia: Anvid 24: Número de mortos ao redor do mundo passa de 100 milhões.
— A Congregação foi formada logo depois do fim da Terceira Guerra Mundial — explicou Theo.
— Terceira guerra?... Mundial?
— Por volta de fevereiro de 2024, uma nova doença surgiu na Austrália, a Anvid 24, ou o Vírus da Serpente. Era transmitido através de superfícies. A mídia não quis fazer alarde, disseram que 2020 com o Coronavírus tinha sido uma histeria desnecessária e não quiseram assustar as pessoas de novo. Então, nada de quarentena. Apenas uma ou outra medida protetiva que não deram certo...
— E cem milhões de pessoas morreram...
— Quatro bilhões.
— O quê?
Mulheres. Todos os mortos por Anvid 24 eram mulheres.
Eu vejo os flashes: o pânico, a histeria. Theo disse que os homens não eram afetados pela doença, mas ainda podiam transmiti-la e por isso ela se alastrou tão rapidamente.
— Quando pensaram em uma resposta, a merda já estava feita — ele disse. — Em poucos meses, as mulheres do mundo estavam quase extintas. As que restaram foram isoladas em lugar seguro, os governos disseram que era pra "assegurar a sobrevivência da espécie". Foram usadas pra reprodução. Elas também não duraram muito. As que não morreram pelo vírus... se suicidaram. As meninas nascidas depois disso também morreram. Dizem que é porque o vírus está no ar, o que me leva à pergunta: como você está respirando?
Eu não pensei nisso. Eu estava chocada demais.
— Vocês... escravizaram mulheres... pra reprodução?
— Estavam todos desesperados.
— A mulheres estavam morrendo e vocês pegaram as últimas e escravizaram?!
Depois, Theo contou sobre a Grande Depressão e como a morte das mulheres causou uma onda de suicídios, o colapso da economia, tensão militar até que, bum, Terceira Guerra Mundial. Tudo isso — essa informação me chocou — há mais de 50 anos.
— Depois da guerra começamos a perceber que... os homens estavam envelhecendo mais devagar. Um efeito da pandemia de 2024.
— Quão velho você é? Você parece ter minha idade.
Theo riu.
— Tenho mais de 40. Eu nasci numa das câmaras de reprodução. Nunca vi uma mulher na vida. E agora, você... aqui, diante de mim... um milagre.
Theo tocou meu rosto. Eu sentia seu cheiro e a profundidade de seus olhos. Era demasiadamente bom.
— Você é a coisa mais bonita que eu já vi.
Theo me beijou. Eu permiti que o fizesse. Eu queria que ele fizesse. Esperava ansiosamente por aquele beijo. Theo me olhava como se eu fosse... Pandora.
— Vou levá-la para a base da Congregação — ele disse. — Temos pessoas de todos os lugares do mundo, especialistas. Nós tentamos manter a paz no que restou da humanidade, mas tentamos também reestabelecer o que se perdeu. Você estará segura lá.
— Eles... não vão tentar me escravizar, não é?
— Não! Ninguém vai machucar você. Eu e Fiona vamos estar lá pra proteger você, ok? Ninguém vai tocá-la sem a sua vontade. — Theo me tocou. — Eu prometo.
Eu apreciei o toque...
... até a sala ser invadida pelos servos armados de Papai. Houve uma explosão. Um barulho fino em meu ouvido gritava.
Um dos servos aponta uma arma para Theo.
Meu corpo se lança em socorro de quem já foi meu socorro.
Sinto a bala penetrar meu peito.
— Pandora! Pandora! — Theo grita. Meu corpo esfria e com ele toda a luz.
II.
Eu vejo Papai. Ele é jovem e vigoroso, cabelos negros e sorriso reluzente. Ele me beija nos lábios até o fundo de minha boca. E nós fazemos amor como nunca antes.
Quando volto a vê-lo, ele está triste. Promete que nada me machucará e diz que fez uma coisa horrível. "Foi por amor". Ouço os gritos de minhas irmãs. Depois, nada.
Acordo de volta em meu quarto e vejo Papai.
— Bem-vinda, Eva.
Meu peito dói e quando tento me levantar, percebo que estou algemada à cama.
— Tire isso de mim — exijo. — TIRE ESSA PORRA DE MIM! Eu quero ir embora!
— Pra ficar com aquele agente da Congregação?! Está apaixonada por ele?! Você não é dele, você é minha! Eu fiz você, eu sou seu pai!
— Você não é meu pai! Nós sabemos disso. O que somos um para o outro?! Que diabos de relação nojenta nós temos?! — Papai ficou quieto. — O que foi que você fez?! Você disse que fez algo horrível
Papai veio em minha direção. Aproximou-se e me beijou. Um gosto de lábios que conheço.
— A única mulher que amei estava morrendo — disse, em tom cansado. — Câncer de útero. Não podíamos fazer nada... Ciência limitada. Então, eu... resolvi não usar um remédio e sim um veneno. Um vírus.
Papai me contou como criou um vírus zoomórfico combinando DNA de uma serpente do sul da Austrália para preservar suas capacidades regenerativas. E assim surgiu o Anguivírus ou, se você preferir, Anvid 24. Meu pai criou a praga que dizimou o gênero feminino. Sua esposa foi curada por um tempo, mas eventualmente a praga se espalhou, as mulheres morreram e ela também.
— Foi um castigo de Deus... tirar minha companheira e me condenar a ser imortal sozinho.
— Não foi Deus! Isso foi você!
— Eu queria salvá-la, se eu tivesse que queimar o mundo pra isso, eu faria.
— E ela?! Concordava com isso?!
— Diga-me você. Ela está nas suas memórias, não é?
Volto aos flashes. Lá está ela.
— Por quê?! Por quê ela está na minha mente?!
Papai sorriu sagazmente.
— Por que você é ela. Eu criei você em um laboratório, Eva, In Vitro. Usei o DNA da minha esposa e adicionei as memórias dela conforme você crescia.
— Não...
— Eu trouxe você de volta...
— NÃO! Você não... fez isso!
— Eu fiz muitas coisas, Eva, criar um clone sem um útero e sem óvulos adequados é até fácil.
Chorando, eu forcei minha mão contra a algema.
— Deixe-me sair. Eu quero ir embora!
Papai agarrou meu rosto, eu o acertei com a bandeja a meus pés e ele caiu desmaiado ao meu lado, numa poça do próprio sangue.
— Vocês homens não aprendem porra nenhuma!
Teteei seus bolsos e encontrei as chaves da algema junto a uma foto dela. Parecia mais velha e mais feliz que eu. Liberto-me e fujo até a varanda. Os guardas me avistam, mas é tarde.
Um forte vento me lapeia. No céu, um helicóptero da Congregação trás Theo e Fiona para mim.
Eu agarro seu abraço e voo com eles para longe.
Talvez não para um mundo bom, mas com certeza um melhor do que este mundo, que morreu com elas.
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