Texto 17
O Caos e a Ordem
Será amanhã de manhã. Não suporto mais. Foram duas tentativas frustradas, nos primeiros anos de confinamento. Agora, que a vigilância está mais desatenta, retomamos o plano de chegar à casa de pedra. Preciso dar esse presente ao meu pai. Já tenho a solução para driblar essa espécie de prisão em que estamos, sair sem que o guarda nos veja, desativar as tornozeleiras eletrônicas e chegar lá, sem que sejamos presos. Se formos pegos, ao menos sabemos que não vão nos matar, eles precisam do nosso sangue.
Meu pai contou muitas vezes como tudo começou, no início de 2020. Eu era uma criança, mas de algo recordo. Ficávamos só em casa. Todos brincando, brigando, convivendo em uma proximidade obrigatória, imposta pelo vírus. Claro que, com oito anos, eu não percebia a situação e enervava a todos querendo sair, andar de bicicleta ou ir à casa de pedra. Eu não tinha noção exata o quão longe era, só queria ir lá e brincar com meu primo, meu melhor amigo.
A morte da minha tia foi o primeiro sinal de alerta, quando percebemos realmente a gravidade da enfermidade desencadeada pelo vírus, que começou causando uma síndrome respiratória. Uns meses depois, sucessivas mutações acabaram fazendo que sua principal ação fosse atacar o coração que, poucos dias após a infecção, começava a bater lentamente, fazendo o doente definhar por dias, semanas, algumas vezes por meses.
Eu não sabia naqueles momentos, hoje sei, o impacto que a proximidade da morte tem no ser humano. A vida, por instinto de sobrevivência, nos impõe o medo da morte. A vida não se importa que a vida de cada um de nós sofra tantos desconfortos por medo, nem que ele nos brutalize tanto. A vida só pensa nela, só pensa em viver.
Eu e meu pai somos tutelados pelo Estado há 10 anos, desde 2032, quando descobriram que nós éramos dos que detinham a cura. O plasma sanguíneo de certas pessoas, e eles nem sabem direito precisar quem, cura e confere imunidade a indivíduos que o receba. Quando elas são descobertas, e são poucas, o Estado as encarcera, com mil desculpas e promessas. Sei da nossa responsabilidade social, mas não suporto mais viver preso. Ainda não existe vacina. O vírus não para, obrigando-nos a ficar parados. Pessoas como nós seguem sendo a única fonte de cura. Eles dizem que nos protegem, mas na verdade somos prisioneiros.
Vivíamos essa pandemia dia a dia, sem saber o que nos aguardava. O governo fazia o possível, todos os governos faziam o possível para achar a cura. Meu pai conta que, no início, existia uma forma de colaboração entre eles, na luta por encontrar uma solução que permitisse livrar-nos do inimigo invisível que a todos ameaçava. Os esforços coletivos foram inúteis, começaram a pensar que sozinhos teriam mais sucesso. Não foi o que aconteceu.
O primeiro ano de quarentena nem foi tão difícil. Meu pai, professor em uma escola pública, manteve seu salário, o que nos permitiu viver bem. No segundo ano a situação piorou, salários foram cortados pouco a pouco. A doença apertou o cerco e a morte da minha mãe foi um golpe terrível. Ficamos todos arrasados, lembro-me bem como sofri. Ela era quem me protegia dos meus irmãos, era a única que encontrava um tempo para brincar de verdade comigo: batalha naval, desenhos, lutas com bonecos improvisados. Colocava-me para dormir contando histórias e hoje, adulto, sei que minhas lembranças boas de criança são todas devidas a ela. Sua morte matou também minha infância. E não foi só minha infância que morreu quando perdi minha mãe, aos nove anos. Com a morte dela perdi também meu pai. Ele nunca mais foi o mesmo.
A amargura do meu pai com o mundo só se avolumou com o tempo. Não o culpo, nos doze meses seguintes à morte da minha mãe perdeu dois filhos. Ficamos ele e eu. Seguimos sendo ele e eu, vinte anos depois.
Minha família teve até certa sorte, muitas pereceram inteiras. O caos começou a ficar mais visível quando os hospitais não suportaram a demanda, não havia mais vagas nem nos corredores. Médicos, socorristas, administrativos, pessoal da limpeza, todos que adentravam um hospital ficavam infectados. Em 2022, após uma histeria generalizada, o governo foi obrigado a fechar todos os hospitais do pais, mandando incinerá-los. De pouco adiantou, a pandemia seguiu seu curso, sem tréguas.
Hoje os serviços médicos são feitos nas casas, por pessoas imunizadas. A maioria das fábricas são robotizadas e a pessoas recebem uma ração mensal controlada. O medo que o vírus retome sua virulência segue norteando a sociedade.
Preciso sair daqui, chegar à casa de pedra. Meu primo tem tudo traçado, ele vive lá, já tem as novas identificações que necessitaremos, já me enviou a maneira de burlar a segurança dessa casa prisão.
Depois dos hospitais, as funerárias colapsaram. Ninguém mais queria ter contato com os mortos. Cadáveres por toda parte. Nos céus, revoadas de urubus. A saída encontrada inicialmente foram enormes covas, onde os corpos eram simplesmente jogados. Posteriormente, foram colocados em navios, abandonados em alto mar. Os grandes incineradores só começaram a operar em 2025. A verdade é que o cheiro da minha vida é o cheiro da morte.
Mesmo a epidemia estando mais controlada, a balbúrdia não foi dissipada e as cidades nunca mais voltaram a ser o que eram. Até hoje, oficialmente, são mais de três bilhões de mortos. A população do planeta segue decrescendo, agora em ritmo mais lento. O que eram aglomerados urbanos atualmente são pessoas vivendo em meio a casas desertas, paredes descascadas, telhados caídos, prédios inteiros abandonados.
Preciso acordar meu pai. Hoje é o dia da semana que não tirarão nosso sangue. É a nossa oportunidade, o plano está preciso, já o repassamos mil vezes. Tão simples como devem ser os planos de fuga. Iremos no carro que entrega a comida, dirigido por meu primo, que o tomará de assalto. Em nossas comunicações, devidamente criptografadas, aprendi a desligar a tornozeleira, driblando o GPS.
Na área rural também houve um redesenho na organização social. O vírus ordenou que as pessoas passassem a viver em grupos de, no máximo, 50 pessoas, distantes 5 quilômetros uma das outras. Vivem como podem, com o que tem, plantam seus próprios alimentos, compartilham suas habilidades, dividem tarefas e perspectivas. As notícias da bionet, proibida pelo governo, são que 18% da população vive dessa forma, muitas fugidas dos centros urbanos. Os Governos não permitem que essas notícias circulem, manter as cidades e sua desordem é fundamental para que os Estados sigam fortes, com apoio popular, que vem da impressão que ele é a única organização capaz de manter algo de ordem em meio ao caos.
São 9 horas, em trinta minutos devo ir até à porta da casa. Enquanto a comida é deixada na portinhola, nós sairemos pela janela e entraremos no furgão. Temos poucos segundos para isso, até que o guarda volte à sua posição. Receio pela pouca agilidade do meu pai.
O relógio marca 9h25min. Ligo o cronômetro, aproximamo-nos da janela. Começo a abri-la. O suor corre pelas minhas canelas. Que chato isso de suar nas canelas. Meu pai está mais tranquilo do que eu. Por uma fresta vejo o carro chegando, não é o meu primo. Merda, deu tudo errado!
Penso em desistir, meu pai pergunta:
Está na hora?
Não temos tempo, tenho que decidir em dois segundos.
Está sim.
Abro a janela, meu pai passa primeiro. Eu vou logo após, mas não rápido o suficiente. O guarda me vê. Olho nos seus olhos.
A cena dura um segundo, mas um turbilhão de emoções passam por mim naquele momento, minha infância, as perdas do meu pai, seu desejo de recuperar seu passado, meu anseio de ter um futuro. Sou despertado por um leve movimento no rosto do guarda, parece que ouvi seus olhos autorizando minha fuga. Sem vacilar mais, entro no carro.
Meu coração está aos pulos. Saímos da casa, estamos no carro. Começo a querer me acalmar, quando lembro que o motorista não é o meu primo. Da parte traseira daquele furgão eu não tenho contato com a frente. Não sei o que pensar, mas algo de errado deve estar ocorrendo. A alegria do meu pai não motiva-me a contar o que está acontecendo. As horas passam lentas, muito lentas. Imagino que estamos sendo levados para alguma base operacional do governo, que iremos sofrer sérias represálias. Tremo em pensar que meu pai não merece isso.
Claro – disse em tom mais alto – por isso o sacana do guarda nos deixou sair.
O que?
Nada não pai, só pensando com a boca.
O furgão começa a sacudir, vejo que estamos em uma estrada de terra. Acende em mim a esperança que estejamos de fato indo para a casa de pedra. Decido pensar assim, que estamos indo para lá. Meu rosto se desanuvia. Começo a vislumbrar uma vida livre, meus olhos ficam molhados. Primeiro de alegria, logo trocadas por lágrimas tristes, já que outra vez recordo a situação real: nosso plano havia falhado.
O carro para. A porta do furgão demora longuíssimos trinta segundos para ser aberta. A primeira pessoa que vejo, contra o sol, é meu primo. Sorridente. Tudo havia dado certo, o motorista era seu cunhado, que conhecia o guarda, ele não pôde me avisar essa mudança de última hora. Para não sermos pegos, havíamos optado por não nos comunicar nos últimos dez dias.
Sim, chegamos. Enquanto abraço meu primo, agradecido, vislumbro a paisagem. Árvores enormes, pássaros de várias cores, o céu cor azul exuberante, uma linda horta, um lago com tonalidades de verde. Três cachorros nos rodeiam. O cheiro de natureza me comove. Realizo porque muitos dizem que a pandemia livrou o planeta do desastre ambiental que parecia inevitável. Uma das coisas que recordo do meu irmão é ele ensinando-me a não blasfemar contra o vírus, que na verdade o vírus mais perigoso éramos nós, humanos.
Afasto-me um pouco e vejo meu pai abraçando o sobrinho. Reparo como está envelhecido. Penso em como merece viver esta cena. Sinto uma alegria genuína, acho que por descobrir que o futuro ainda existe, mesmo em meio ao caos, e por ver que, mesmo nas situações mais distópicas, existe lugar para o paraíso, para uma utopia fazer-se realidade.
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