Texto 16
O SORTEIO DOS BRAVOS
Elise da Casa 2 estava ansiosa para a comemoração do Grande Aniversário. Nome criado especialmente para o 500º aniversário da República Popular da União Americana.
Nesse ano, um total de 10 pessoas de cada cidade poderiam descer para a Casa 8. Era o dobro do número aberto todos os anos. Todos os anos ela colocava seu nome no papel, mas até agora não obteve a tal sorte que seus avós lhe desejavam antes de morrerem da pandemia.
A pandemia surgia e desaparecia ocasionalmente e tinha sempre a mesma característica: faltar de ar. Era uma doença silenciosa que atingia principalmente as Casas Mais Altas, mas uma vez ou outra a República avisava a morte de alguém das Casas Mais Baixas.
As Casas eram separadas através das áreas profissionais e do lugar onde a pessoa morava. As Casas Mais Baixas ficavam localizadas no centro da cidade, ocupadas por trabalhadores da República, como os políticos, economistas, seguranças, advogados, engenheiros, grandes empresários e os poucos profissionais de comunicação.
A Casa 8 era destinada aos médicos, enfermeiros e professores e moravam nos arredores da cidade. As Casas 7 e 6 eram destinados aos fazendeiros e viviam longe da grande cidade.
A partir da Casa 5 até a Casa 1, as pessoas viviam na parte mais alta da cidade. Eram trabalhadores das produções de fábrica, ajudantes de construção, catadores de lixo, entre outros. Pessoas com pouco ou nenhum estudo, igual Elise.
Elise estava prestes a completar 21 anos e seu sonho era ser sorteada para a Casa 8 para finalmente estudar. Iria virar médica como prometido aos avós. Dessa vez, ela estava mais confiante do que nunca, mesmo com a maior parte da população da cidade concorrendo.
Sem conseguir tirar um sorriso no rosto, ela terminou de comer seu pão e saiu da sua casa de madeira. Já tinha programado tudo em sua mente. Enquanto descesse até o centro da cidade, iria trabalhar. Pois mesmo se fosse uma sorteada, poderia pegar toda reciclagem do dia e doar para algum vizinho.
– Bom dia, Senhor Alberto. – Elise cumprimentou com simpatia.
– Bom dia, Elise. Vai participar do sorteio hoje? – respondeu Senhor Alberto, enquanto varria a calçada.
– Vou sim, Senhor. – Sorriu ela. – Hoje é um grande dia. Logo vou virar médica. Assim vou poder ajudar os outros, criar quem sabe um hospital mais próximo da população das Casas Mais Altas.
– Ótimo. Tomara que você seja sorteada.
Ouviram uma risada próxima. Elise olhou na direção e viu Murilo rindo enquanto balançava a cabeça.
– Por que está rindo? – perguntou Elise.
Ela conhecia Murilo há muito tempo. Achava o garoto da Casa 1 antipático e sem perspectiva. Era um dos poucos que nunca colocava seu nome no sorteio. Dizia ser tudo uma farsa, mesmo conhecendo alguns ex-vizinhos que foram sorteados.
– As pessoas das Casas Mais Baixas nunca lembram de onde vieram – respondeu o garoto, sem tirar os olhos do pedaço de planta que enrolava nos dedos.
Normalmente, Elise encontrava Murilo da Casa 1 sem fazer nada, apenas sentado em algum lugar das ruas. Mas o garoto sempre desaparecia durante alguns dias da semana.
– Ué, você não diz que isso é uma farsa, como pode ter certeza disso? – retrucou Elise.
– Pelo simples fato de não termos nada aqui.
– Oras, Murilo, temos todo ano uma chance de sairmos dessa miséria. Tenho certeza que antigos vizinhos estão trabalhando para conseguir nos ajudar.
– Claro, como se fosse difícil construir um hospital ou escola – respondeu de forma irônica. – Seus familiares ainda estariam vivos se não faltassem hospitais na nossa região.
– O problema não é a falta de hospitais. A doença não tem cura. Ainda temos problemas com a poluição – falou Elise.
Os cientistas da República nunca descobriram a cura da doença, mas associavam ela à grande poluição causada durante anos pela população da Antiga Terra.
Antigamente, a população mundial era dividida em cinco continentes e diversos países. Após a primeira pandemia, que matou bilhões de pessoas e acabou com a economia, os países de cada continente foram obrigados a se unirem para reestabelecer a sobrevivência da humanidade. Agora todos os países cooperam entre si e seguem a legislação da Ordem Mundial.
– É melhor ir para o sorteio, Senhorita Elise da Casa 8 – respondeu Murilo com ironia novamente.
Elise revirou os olhos e não deu ao trabalhar de discutir.
Despediu-se do Senhor Alberto e começou a descer as ruas, recolhendo lixos que achava pelo chão. Elise cumprimentava as pessoas que seguiam também para o centro da cidade. Desejava do fundo do coração ser escolhida, mas ficaria feliz caso algum dos vizinhos fosse sorteado.
Chegou na praça principal da cidade, onde ficava a Prefeitura de Flickere. O local estava cheio de pessoas com rosto de felicidade e apreensão.
Entre a escadaria da prefeitura e a porta de entrada, foi instalado um púlpito e um telão para ficar mais fácil das pessoas enxergarem. No meio da população, via-se alguns profissionais de comunicação da República, filmando as pessoas e entrevistando outras. Alguns utilizavam drones e outras tecnologias desconhecidas por Elise.
Apenas os profissionais dessa área tinham acesso as tecnologias, como o computador e celulares, que eram usados antigamente. As pessoas só tinham acesso a televisão doada pela República para receberem os comunicados.
Depois de algumas horas, Elise ouviu a trombeta anunciando o início do sorteio. Um homem entrou no mesmo instante e pediu silêncio à toda população. Explicou como funcionaria o sorteio e relembrou que as Casas 6 e 7 não podiam participar.
– Agora, palmas para o Presidente Alisson da Casa 10 – anunciou o homem.
O Presidente era alto e vestia o mais belo terno, sorrindo e gesticulando com as mãos para cumprimentar a população dirigiu-se até o púlpito.
– Boa tarde, população da cidade de Flickere. É com grande honra que sortearei as novas pessoas da Casa 8 – falava sorrindo e sempre olhando para diversas direções. – Dessa vez, em comemoração ao 500º aniversário da República Popular da União Americana serão sorteadas 10 pessoas em cada cidade. Estou feliz por conseguirmos atingir esse número, pois mostra que os trabalhos da Ordem Mundial estão funcionando.
Deu para ouvir uma salva de palmas e uma ovação vindo da multidão.
– Bem, vamos começar. Por favor, guardas, podem trazer a caixa.
A porta da prefeitura se abriu e quatro pessoas de cada lado surgiram carregando uma caixa enorme. A população fez mais barulho.
– Obrigado. Vamos começar com o primeiro selecionado. – Ele tirou um dos papéis e sorriu. – Genova da Casa 3. – A foto de uma mulher na faixa de uns 40 anos apareceu no telão.
Seguiu-se uma sucessão de nomes intercalados por aplausos. Já estava indo para o sétimo nome sorteado e era clara a angústia no rosto das pessoas, inclusive da garota.
O nome de Elise foi chamado e uma foto do seu rosto surgiu no telão. Sentiu suas bochechas esquentarem e o coração palpitar. Vários rostos viraram em sua direção.
Foi nesse momento que um tumulto se formou na multidão. Elise ouviu um som de tiro, gritos e desespero, mas não conseguiu sair do lugar. Sentiu a arma encostando suas costas, junto com alguém segurando seus braços.
– Fique quieta! – Elise reconheceu a voz de Murilo. – Não quero te machucar.
Não sabe muito bem o que aconteceu, mas o Presidente estava sendo preso por algumas pessoas, enquanto os seguranças locais eram rendidos. Uma pessoa, com uma roupa simples e rasgada pegou o microfone do púlpito e gritou pedindo que todos ficassem em silêncio. Rendidos por várias pessoas armadas, a população obedeceu.
– Bravos. – Elise falou ao tomar consciência que era um ataque do grupo rebelde da cidade.
– Esperta você. – Murilo respondeu.
– Não queremos machucar ninguém – falou o Bravo no púlpito. – Só queremos mostrar para vocês a verdade por trás dessa Ordem Mundial.
Um vídeo apareceu no telão. Sucedeu-se então várias imagens com vídeos antigos. O objetivo dos Bravos era mostrar como as coisas ruins que aconteceram na Antiga Terra tinha sido programada por grandes líderes da época.
A Antiga Terra estava corrompida por corrupção e ganância, até que realmente surgiu uma pandemia e piorou a situação econômica mundial. Por isso, os países uniram forças, soltando informações falsas pela internet e celulares, fazendo a discórdia entre a população. Criou-se um fanatismo político por certos líderes, estes responsáveis pelo início da Ordem Mundial.
Os próprios líderes começaram a fabricar a doença em laboratórios. Jornalistas investigativos e outros especialistas da época tentavam avisar sobre o que acontecia, mas a população não acreditava. Até que a nova Ordem Mundial conseguiu se instalar totalmente e foi proibido qualquer tipo de informação que não fossem das mídias das Repúblicas.
Muitas pessoas morreram tentando impedir isso, mas não teve jeito. A maior parte da população estava cega. Então foi criada as Casas para ser mais fácil o controle da população. A doença era solta de vez em quando nas Casas Mais Altas, mas sempre acabava atingindo alguns das outras Casas. Porém, eles tinham tratamento. Enquanto o resto da população não morriam.
A intenção era essa. Assim seria mais fácil ter um controle de número populacional.
Todos estavam boquiabertos.
– Isso é só metade da história – falou o Bravo. – Nós temos muito mais para mostrar, mas por enquanto pedimos para que vocês acordem. Lutem para terem uma vida digna igual a qualquer pessoa. – Virando-se para os seguranças continuou. – Se alguém nos impedir de ir embora, haverá troca de tiros e muitos irão morrer. O sangue estará mais uma vez na mão de vocês.
Os Bravos começaram a se retirar sem intervenção.
– Você pode vir comigo ou ficar aí – falou Murilo em seguida, enquanto tirava a arma das costas de Elise.
Elise viu muitas pessoas indo embora. Seu sonho era ser da Casa 8, mas sua curiosidade por saber mais estava dominando. Como poderia viver na Casa 8 sem saber de como realmente era a sociedade em que vivia? Como poderia virar médica sem poder ajudar os vizinhos?
Precisava de respostas. Ela virou-se e procurou Murilo no meio da multidão.
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