Texto 14
Eu correria pelos mais distantes infinitos segurando suas jovens mãos
O meu vestido azul da mesma cor do logotipo da Sargo-Pirus se camufla à decoração do Edifício Date. Pelas fotos, o oceano é da mesma cor. Gosto de pensar que visto algo assim – e que, enquanto espero no bar do restaurante, posso ser confundida com o infinito.
O bracelete preso ao meu braço e conectado à veia cefálica ainda está dourado e deve ficar assim por mais 15h. Seu brilho é o que reflete nossa imunidade. Normalmente ele está transparente. Quando em risco, brilha acinzentado. Mas em dias como o de hoje, reluz em ouro. É a cor da proximidade, do cheiro, do beijo e do gozo. É a cor mais bonita que qualquer pessoa aqui do Interior já viu. Talvez só perca para o azul-oceano.
A gente não sabe.
O Litoral está muito distante. Nunca conheci alguém que veio de lá. Nem alguém que foi. Só os remédios chegam. Só os alimentos vão. Apenas sabemos que lá é melhor e as pessoas têm tantos medicamentos que podem ter contato todo dia.
Hoje, quase me sinto como uma Litorânea. Meu bracelete está dourado porque é o dia do meu nascimento, é o dia da Vacinação. Permanece assim por 24h inteiras. Uma vez ao ano podemos trocar fluidos com qualquer outra pessoa de bracelete dourado, até mesmo em outra Unidade Territorial (ou só UT).
Eu peço um drink e olho os casais. Ninguém aqui escolheu com quem encontrar. A única coisa que sabemos é a Identificação de quem virá. A Sargo-Pirus que resolve tudo: pessoa, cardápio, transporte e até o Edifício (com restaurante no térreo, quartos nos andares superiores). Ela é quem cuida da nossa vida.
- Teresa 25 de Julho?
- Sim. – me viro já sabendo quem é – Amanda 25 de Julho?
- Isso. É um prazer!
- Prazer! – é uma boa palavra. Nos demoramos no abraço e só soltamos para sermos conduzidas à mesa.
- O Edifício está cheio hoje. – ela diz assim que sentamos. Está sorrindo ainda.
- Sim. É a primeira vez que venho a essa UT.
- Seja bem vinda, eu moro aqui.
Aqui é como qualquer outro, mas a Sargo-Pirus nunca me mandou pra esse lugar. De fato, está cheio. Somos 6 casais jantando ao mesmo tempo. Acho que não via algo assim há 4 Vacinações.
Fico sabendo que Amanda recebeu 23 Vacinações, é jovem. Eu recebi 37. Ela é alta, de pele negra e cabelo muito liso. Tem um sorriso aberto e o jeito descontraído. Também está usando vestido, mas amarelo.
- Você é linda! – ela diz – E está linda.
- Obrigada. – respondo envergonhada porque sei que posso me arrumar, mas não sou bela. O vestido azul cai bem à minha pele morena, mas ela é manchada e a postura é envergada pelo trabalho na Fábrica.
Nossas entradas chegam e eu comemoro que é camarão. Não como algo de tão longe há mais Vacinações que posso lembrar. Depois da Primeira Epidemia (ou A Grande, como chamamos) tudo ficou mais distante. Nem minha avó lembra como era antes, mas conta histórias.
A Grande não aconteceu há tantas Vacinações, mas muitas vidas se foram e o Governo Militar se instaurou. Conta-se que foi quando se restringiu pela primeira vez o contato. Fomos divididos em Litoral e Interior, com cidades abandonadas entre nós. Naquela época se usavam pílulas de imunidade e quase tudo deu certo depois da Onda de Cura.
Foi na Segunda Pandemia que nasci. O Governo do Profeta assumiu e extinguiu todo contato, mesmo dentro das UT's. Passamos a viver nos Contêineres e aprendemos que o mundo estava sendo castigado. No Interior não havia energia elétrica e eu lembro de tudo escuro.
Quando a Terceira Pandemia começou, eu já era mais velha. Tinha pouco menos da idade da garota que está à minha frente se deliciando com prato principal e falando sobre sua família. O novo vírus começou nas UT's do Litoral, nas casas dos sacerdotes do Profeta. Foi assim que vi um governo cair, outro se levantar e descobrirem que ninguém podia evitar para sempre a troca de fluidos. Para nos salvar, a Sargo-Pirus assumiu a gestão: estabeleceu quando e onde o contato acontece. Ela já era a maior empresa de alimentos sargosos (resistentes aos vírus) e de tecnologia; hoje é quem nos mantém vivas.
A Ciência mostrou que nosso corpo suporta uma dose única da Vacinação ao ano. Se precisamos de mais, somos encaminhadas ao Campo Quarentenal. E nunca nos recuperamos, já que ninguém que foi ao Campo retornou com vida.
- Pena que não foi abacaxi!
- Desculpa, o que? – eu pergunto sendo resgata dos meus pensamentos ao Encontro. Sei o que falamos durante a refeição e poderia repetir a ordem do diálogo que é sempre o mesmo: de que UT viemos, onde trabalhamos, como são os Contêineres, como era o mundo nos outros Governos e o como era tudo antes do vírus.
- A sobremesa. Pena que não foi abacaxi.
- Ah sim, pena. – sorrio, escondendo que não foi porque sou alérgica e a Sargo-Pirus sabe disso – Você terminou. Quer subir ao quarto? – com 37 Vacinações eu entendo o real objetivo dos Encontros Anuais.
- Claro! – ela pega a garrafa de vinho, se levanta e me puxa pela mão.
Me surpreendo pela sua energia e a sigo. Conheço bem a estrutura dos Edifícios e estranho quando sou levada a um corredor novo.
- Espera!
Ela não me deixa concluir. Me dá um beijo rápido na boca e para sorrindo.
- Confia em mim! Eu cresci nesses corredores. Vou levar a gente pra um lugar bem melhor! – não sei se pela saudade do contato ou se pela sua energia ou ainda se pelo gosto de amora que senti com o beijo, mas me permito ser conduzida.
Seguimos por uma série de escadas. Eu nunca passei por esses lugares, mas não é como se tivéssemos em outro mundo. O restaurante que ficou pra trás, os quartos daqui, a Fábrica, os Contêineres, o Posto de Cuidado e qualquer lugar são assim: brancos, iluminados de azul. Sinto que até nossos sonhos o são. Nesse vestido, me sinto parte disso. Pertencente à humanidade que sobreviveu às três Grandes Pandemias.
O que destoa: Amanda. Sua figura jovem, negra e amarela correndo à frente é diferente de tudo aqui. Penso nisso enquanto atravessamos uma porta e no momento seguinte perco o ar.
- Isso... – não sei o que dizer – existe?
Quando eu entrei no carro em frente ao meu Contêiner, segui pela estrada e desci para o Encontro, não notei a paisagem. Só agora que percebi que estou em uma UT Produtora. Muitos alimentos vêm de grandes campos em UT's assim e depois vão para as Processadoras, para Fábricas. Mas a de Amanda é especial, é uma Produtora de flores.
Esse Edifício Date foi construído na encosta de um morro e estamos paradas no topo. O que se estende à frente é um infinito amarelo. Eu nunca vi algo assim. São girassóis? Talvez. Agora o que destoa do mundo é meu vestido azul.
- É seu Dia de Vacinação. Você merece um presente – ouço.
- Isso não é permitido. Vamos voltar. – sei que podemos ser mandadas ao Campo, ainda que com bracelete dourado.
- Calma. Meu pai trabalha no Date, sei que ninguém vem aqui.
- Por que me trouxe? – desconfio.
- Te disse: merece um presente melhor que 24h.
- Não existe nada melhor que imunidade, criança! Vai perceber isso com o passar das Vacinações.
- Pode ser. – ela dá de ombros, se senta no chão e abre a garrafa de vinho. Eu olho em volta e decido a acompanhar.
- Isso é perigoso!
- Só se descobrirem. Além do que, dia de bracelete dourado! Relaxa!
Eu tento.
- Quantas mulheres já trouxe aqui? – pergunto dando um gole no vinho. É doce.
- Isso faz diferença?
- Não. Mas você é nova, quero entender porque a Sargo-Pirus nos juntou.
- O que você acha? Que sabem disso aqui e te mandaram pra me botar juízo? – ela ri – Não, você é a primeira.
- E por que eu?
- Minha mãe. Ela morreu quando fez 23 Vacinações. Então prometi dar isso de presente quando eu completasse as minhas.
- Eu sinto muito.
- Tá tudo bem. Você só devia me agradecer invés de lamentar. Ou me dar um presente.
- Desculpe, não preparei nada. Posso inventar algo no quarto.
- Não é esse tipo de presente que quero.
- Ah, você não troca fluidos com mulheres?
- Não é isso. Claro que sim. Que A Cura me livre de homens! Mas hoje prefiro ganhar de presente o saber de alguma coisa nova.
- Bom, vamos ver. Sei de algo: antes da Sargo-Pirus nos ajudar, mulheres como nós não podíamos trocar fluidos.
- Ouvi disso. Só não venha dizer para ser grata à Sargo.
- Somos livres agora!
- E você acha que isso é liberdade?
- Menina, sei de histórias dos antigos que você nem sonha. Caçadas, prisões, fogueiras.
- E é diferente do que temos? Carros fechados, Campos, mortes. Experimenta não ter Dias Úteis de Trabalho para trocar por remédios...
- Eu não acredito que uma pirralha está querendo me ensinar sobre a vida.
- Essa pirralha só está dizendo do que viveu.
- Foi isso que houve com sua mãe?
Ela não me responde. Se vira para olhar o infinito amarelo. Claro que já vi pessoas sendo levadas ao Campo por não terem o que comer ou força para trocar Dias Úteis por remédios.
- Você ainda não me contou algo que não sei. – ela corta o silêncio.
- Ok. Você já parece saber muita coisa. Mas tem uma que ninguém sabe. – ela se vira pra mim – Sei de um plano que eu tive há muitas Vacinações. Que veio de um sonho de fuga.
- Fuga?
- Sim, uma mulher do Interior que consegue juntar coisas, viajar sozinha pelas Produtoras, se alimentar com o que colhe e até fazer parte dos seus remédios. Chega ao mar e vai pra além dele. Ou fica morando como uma Litorânea. Não sei. O que sei é do plano que tive. Que eu seria essa mulher. Sairia do meu Contêiner para cruzar as UT's e conhecer o infinito azul.
- Nós podíamos fazer isso juntas – ela diz devagar, com olhos brilhando.
- E andar pelo amarelo até a próxima UT?
- Eu sei qual é a próxima. E a depois dessa. São Alimentícias. Poderíamos sobreviver.
- Sim. Poderíamos ter uma chance com esses braceletes de hoje.
A gente fica olhando os campos. Nossas mãos estão entrelaçadas e posso sentir o calor e a respiração de Amanda.
Sim, teríamos essa chance.
Eu dou um gole no vinho doce e me levanto.
Eu sinto o sonho. É tão real. Sinto o esforço de descer a encosta sem soltar a mão de Amanda até chegar à UT e depois à próxima. Sinto o gosto de legume cru. Sinto o cheiro do oceano que nunca vi.
Mas, no lugar de descer, me viro e a levo de volta o Date. Localizo um elevador e paro em frente ao nosso quarto.
Amanda se deixa conduzir.
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