Texto 11
LIBERDADE TRANSGRESSORA
– Viva a Liberdade do desfrute e dos desejos. Povo livre somos e seremos. Diremos somente "sim" e somente a ela. Viva a Liberdade do desfrute e dos desejos. Povo livre somos e seremos! – disseram os moradores do Casulo em frente à CADE, aparelho que se localizava na ponta da cama de cada um, a fim de lembra-los antes de dormir e ao acordar o decreto que regia aquela comunidade.
Alexandra, então, levantou-se, bem como todos os demais companheiros e voltou os olhos para a cabine de sua gêmea, Alessa. As duas jovens haviam dado a sorte de permanecerem em cabines próximas durante o seguimento de oito dias e, por mais que o sentido de família não fosse mais seguido há três décadas, a inevitável semelhança física das meninas as mantinham conectadas de certa forma. Logo, estarem próximas era sinônimo de uma conexão um pouco maior, mesmo que não assumida para que ninguém as tomassem por traidoras do Casulo, visto que as relações deveriam sempre se manter em nível de igualdade com todos.
Após vestir o uniforme da comunidade, Alexandra saiu da cabine e seguiu seu destino ao auditório de convivência, onde toda a comunidade se unia para exercitar a Liberdade em interações das mais diversas possíveis. Lá, era a oportunidade de Alexandra rever os casueiros que antes foram seus vizinhos de cabine, abraça-los e declarar Liberdade a todos, inclusive a Alessa.
Todavia, esse começara a ser um momento de leve angústia para Alexandra, uma vez que há tempos ela desejava se demorar com Alessa numa conversa e num abraço, mas como a comunidade mantinha a regra da permissão, qualquer pessoa poderia se sentir livre para entrar na conversa ou no abraço. Isto porque dizer "não" não era uma opção, uma vez que negar um desejo era sinônimo de rejeitar a Liberdade. Isso mantinha sempre as relações coletivas, inclusive as sexuais e afetivas, para que todos se sentissem verdadeiramente livres. Com isso, estava fora de cogitação privar outros casueiros por meio de um espaço individual.
Feita a interação do dia, voltaram todos às cabines e, sendo aquele dia o oitavo do seguimento, notaram logo que as cabines haviam trocado de lugar, assim Alessa não era mais a vizinha de Alexandra, o que a deixou desconfortável. Porém, não houve tempo suficiente para refletir sobre isso, uma vez que CADE já começara a anunciar a contagem para o momento de recitar o canto da Liberdade. Essa era, inclusive, uma das funções de CADE: manter os casueiros atentos para que ninguém fosse submetido a nenhuma subjetividade. Os sentimentos eram coletivos para que todos fossem livres de manipulações individuais, logo, os pensamentos não poderiam ser guardados, e CADE era pontual para chamar a atenção de qualquer um que fugisse à regra.
– Viva a Liberdade do desfrute e dos desejos. Povo livre somos e seremos. Diremos somente "sim" e somente a ela. Viva a Liberdade do desfrute e dos desejos. Povo livre somos e seremos! – disseram todos em uníssono e dormiram, mas Alexandra, ainda incomodada com a troca das cabines, começara a questionar o porquê de não poder desfrutar de sua Liberdade apenas com Alessa.
Na manhã seguinte, após o ritual matinal do canto da Liberdade, Alexandra deu sinal de que antes de sair queria fazer uma pergunta à CADE. Assim, todos pararam e a olharam, posto que as cabines eram transparentes e toda dúvida, sugestão ou incômodo era exposto diante de todos, para que ninguém tivesse vantagem sobre ninguém. A jovem, então, pronunciou:
– Viva a Liberdade de todos!
– Viva! – respondeu todos os casueiros.
Continuou, então, ela:
– CADE, em nome da Liberdade, confesso diante dos casueiros que me incomodei com a mudança de lugar das cabines. Nisto, anuncio que gostaria de ser vizinha novamente de Alessa, se minha vontade não ferir a Liberdade dos companheiros.
CADE, sem demonstrar surpresa, respondeu:
– Casueira Alexandra, note que a sua pergunta já lhe responde algo. Isto não é um "não", mas o seu pedido fere o coletivo. Como eu poderia proporcionar somente a você a companhia de Alessa? Todos devem ter a Liberdade de conhecê-la e você, aparentemente, restringe essa Liberdade à sua vontade. Você acha que isso louva a Liberdade coletiva?
Alexandra não respondeu nada, posto que mesmo se tentasse, teria sua voz abafada pelo grito de todos os moradores do Casulo que responderam em aclamação à resposta sempre precisa de CADE.:
– Viva a Liberdade de todos!
Contudo, mesmo sabendo que não deveria apresentar sinal de negação, as inquietações de Alexandra não tiveram fim após esse episódio. Com isso, Alexandra já começara a acumular transgressões contra a Liberdade, pois a partir daquele momento o que ela mais fazia era se sujeitar às suas subjetividades e, dessa vez, sem mais vontade de expô-las diante dos casueiros e de CADE.
Apesar de saber, teoricamente, o porquê dessas regras, a prática se tornara difícil de encarar. Alexandra sabia muito bem que o Casulo havia sido criado após o episódio da pior pandemia já vivida no mundo, episódio este que submeteu as pessoas as mais diversas restrições, dado o alto grau de contágio do vírus e o dano na pessoa contaminada. Denominada de "Pandemia da Perda", a sociedade havia experimentado terríveis dias vendo familiares e amigos perdendo a memória e, além disso, sendo corroídos por um vírus que atingia o cérebro e os órgãos intestinais, um período que dizimou dois terços da população.
Dessa forma, provando da restrição e do perigo de perderem a memória e a própria vida, os sobreviventes decidiram montar o Casulo, para se verem livres do vírus que, até onde sabiam, não havia se dissipado. Assim, para poderem viver novamente a liberdade tirada há três décadas atrás e, para evitarem perda de memória, agora tudo era exposto para toda a comunidade, pois fora visto como inaceitável uma pessoa morrer sem ter compartilhado tudo o que tinha em si, isto é, se uma pessoa não iria mais viver, ela deveria, ao menos, deixar tudo o que possuía para quem ainda teria vida. Além disso, por perceberam a fragilidade da vida, decidiram na nova comunidade abolir a palavra "não" enquanto negação de desejos. Portanto, isso respaldava a nova sociedade – o Casulo –, ao passo que quem rejeitasse a Liberdade que regia a comunidade, era lançado para fora do Casulo e viveria a sua liberdade fora dele, sem ferir a Liberdade coletiva.
Entretanto, mesmo sabendo disso tudo, Alexandra já não queria mais ter sua subjetividade ignorada. Para ela, isso lhe parecia também uma transgressão da Liberdade, apesar de não entender bem como. Chegando, então, no auditório de convivência, Alexandra avistou logo Alessa e foi ao seu encontro, dando-lhe o abraço demorado que há tempos desejava, ao passo que os companheiros ao redor perceberam e entenderam a ação como um convite ao abraço coletivo. Foram todos para cima de Alexandra e Alessa, gritando "Liberdade" e sufocando uns aos outros.
Alessa, estando embaixo de todos, começou aos poucos a sentir não só a sua liberdade sendo ferida, mas seu ar se esvaindo. Alexandra percebera isso e tentava sair daquele amontoado, evitando palavras ou movimentos que apontassem para uma rejeição. Porém, quando finalmente o abraço coletivo se desfez, pôde notar Alessa imóvel. Assim, antes dos companheiros reagirem ao terrível acidente, um grupo de CADEs se ajuntavam para retirar o corpo de Alessa do meio do auditório. As máquinas pegaram o corpo e, antes de levarem o corpo para a saída do Casulo, pronunciaram ao grupo:
– Viva a Liberdade de todos!
– Viva! – respondeu os casueiros. E, paralisada, Alexandra presenciou de perto Alessa sendo lançada para fora do casulo. Após esse episódio, todos os companheiros voltaram às interações e as CADEs ao seu devido posto. Alexandra, por sua vez, sentia em seu âmago uma dor que nem se quisesse conseguiria expor ao coletivo. Ela experimentava sentimentos que nunca provara antes, visto que desde nova gozava e desfrutava, sem nenhum obstáculo, da Liberdade no Casulo, porém aquele episódio consumiu todas essas lembranças e cedeu lugar a objeções contrárias à comunidade.
No caminho de volta à sua cabine, Alexandra ainda sentia profundamente a angústia de ter visto a pessoa que carregava a sua semelhança ser lançada para fora da comunidade. Sua semelhante estaria distante agora para sempre, o que a fazia sentir um aperto no coração que ainda não sabia nomear. Pensava consigo mesma: Se não consegui falar com Alessa, com quem poderia falar, sendo eu a causadora do caos? Alexandra entrou em sua cabine ainda com todas essas inquietações, as quais não foram interrompidas nem mesmo pela voz de sua CADE anunciando a contagem para o canto da Liberdade.
O canto da Liberdade então começou, mas Alexandra permaneceu inerte e em silêncio. A casueira, mais do que nunca, rejeitava completamente a ideia de uma Liberdade que levava as pessoas a desfrutarem tanto uns aos outros ao ponto de matarem-se. Assim, o silêncio de Alexandra chamou a atenção de todo o Casulo que a observava atentamente. A moça se levantou e gritou para CADE e, consequentemente, para todo o Casulo:
– Viva a Liberdade do limite! – E, correndo para fora da cabine, foi por conta própria para a saída do Casulo. Alexandra se lançou para fora do Casulo que ficava suspenso para não ser alcançado pelo terrível vírus. Na sua queda, olhando de fora do Casulo, Alexandra pôde perceber a verdadeira prisão que era aquela comunidade ao compará-la com a extensão do ambiente de fora do Casulo. A moça sentiu, então, um tapa em suas costas por conta do rio onde caíra. Ali, notou a presença de outras pessoas, o que a assustou, pois pensava que o Casulo era o único lugar possível após a pandemia. Viu que alguém cuidava do corpo de Alessa e uma outra pessoa, olhando-a nos olhos, perguntou:
– Você está bem? Deseja comer algo?
– Não! – respondeu Alexandra às duas perguntas. Percebeu, então, que pela primeira vez havia dito a palavra abominada no Casulo e, por mais incrível que lhe parecesse, sentia-se agora verdadeiramente livre.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro