Sonho herdado
Estou indo em direção ao sonho do meu pai. O sonho é dele, quem vai vivê-lo sou eu. Espero que um dia todos possam ter essa chance. Nesse momento, sinto-me aliviado, só digitar o código e viajaremos para a liberdade.
Se não fosse meu pai, eu jamais saberia que nossa vida é controlada por uma, só uma família. Ele viu essa sociedade surgir. Foi dos poucos sobreviventes após a chegada dos citadinos, que vieram quando nas cidades acabou a comida. Meu pai viveu muitos anos disfarçado, mas nunca deixou de sonhar que um dia todos voltariam a viver como antes. Com, ao menos, alguma dose de liberdade.
Ele chegou aqui, no que hoje é a Fazenda Coronária, com meu avô, fugindo do confinamento em que viviam. Um primo dele ocupava parte dessa terra. Ouvi muitas vezes que aqui era uma linda zona, com natureza exuberante, hortas, pomares e pessoas vivendo bem, longe do caos que a chegada do vírus trouxe às cidades.
Ele conheceu minha mãe aqui, aqui eu nasci. Em uma casa como as que existiam, antes dos citadinos chegarem. Quartos e banheiros privados, espaços coletivos para as pessoas conversarem. Sempre imaginei como seria viver assim. Hoje vivemos sós, os casais encontram-se uma vez por semana nas Casas de Cópula, os filhos são criados em escolas da família Coronária.
Agora, prestes a ligar a nave, tenho nas mãos a última chance de chegar até as colinas que ficam para além do Passo. Se for pego, todos morreremos.
Vivemos em uma área de 12000 km². Rodeada pelo Passo Proibido, que estende-se por 18 km além dessa área, em todas as direções. Até a metade do Passo, vivem soldados-gentes. A área posterior é proibida para pessoas, lá estão os soldados-robôs. Isso porque depois do Passo Proibido está a área solar, altamente radioativa. É o que diz a Família Coronária, mas não é assim. Para lá das colinas moram pessoas que não estão sob o domínio dos citadinos, vivem livres, cultivam comida de verdade, convivem entre elas e trabalham no que gostam. E as famílias vivem juntas!
Nesses breves segundos recordo-me do meu pai dizendo que essa seria a única maneira de sair daqui: usando a nave da família Coronária. Ele conseguiu que eu aprendesse a pilotar com um velho servidor da fazenda, que havia roubado os manuais e vídeos usados para ensinar pilotos. Eu aprendi a ler nesses manuais, sei eles de cor, além de ter passado por todas as situações hipotéticas de fracasso e soluções, sempre sob o ensino rígido do meu pai e seu amigo.
Nessa época não achava minha vida ruim: para mim era suficiente trabalhar na fábrica de rações, comer essa mesma ração duas vezes por dia e ainda levar para casa, no único domingo de folga do mês, um pedaço de carne de Boimenta. Das seis da tarde às seis da manhã, o chip individual audiovisual era ativado, eu tinha acesso a inúmeros conteúdos que faziam minhas horas de não trabalho muito prazerosas. Por ser um funcionário graduado na fábrica, eu tinha acesso a essas regalias. Eu não entendia por que meu pai reclamava e me obrigava a saber pilotar uma nave que eu nunca havia visto, para fugir de onde não queria fugir e ir para um lugar que não conhecia e não pretendia ir.
Hoje entendo, muito bem.
Meu pai era um homem alto, pele branca, magro e de andar curvado, como carregando um peso invisível sobre os ombros, inteligente e sensível. Muito ativo mentalmente, seguiu assim mesmo quando passou da idade de morrer, aos sessenta anos. Astuto, conseguiu viver vinte anos como clandestino, quando foi descoberto e conduzido ao Templo da Morte.
Sempre foi muito amoroso comigo. Menos na hora dos ensinamentos, nesses momentos ele era mais duro que os verdugos citadinos. Uma vez, falei com ele que não queria ser piloto, não queria fugir e era muito feliz vivendo aqui. Pude ver ele virar o rosto e chorar. Voltou seus olhos para mim, olhou fundo e falou:
— Sinto muito, mas é necessário, meu filho. A liberdade sempre teve um preço, nem sempre pago por todos. A você o destino escolheu para pagar caro, para lutar não só por você, mas por muitos outros.
Não dei atenção ao que ouvi. Afinal, porque alguém iria lutar por liberdade se não se sente preso?
Meu pai não esmoreceu. Segui sendo treinado rigidamente para desenvolver habilidades que me permitissem pilotar a nave de olhos fechados, mesmo sem nunca ter entrado em uma.
Ele foi conduzido ao Templo da Morte há três meses. Devo confessar que passei algumas semanas sentindo um certo alívio em meio à tristeza. Sentia-me livre, liberto do seu sonho.
Semana passada tudo mudou. Recebi a caixa do meu pai. A caixa é uma embalagem muito bonita, onde vem um caixinha com um diamante feito a partir das cinzas do morto, incinerado no Grande Templo. Dizem que os diamantes já valeram muito dinheiro. Que com um, por menor que fosse, era possível comprar quilos de comida de verdade e até carne. Custo a acreditar, mas é o que ouço. Hoje, os diamantes servem apenas como recordações de quem partiu.
Dentro da caixa veio também uma carta, o que não é proibido. Proibido é o seu conteúdo, mas os leitores de cartas póstumas, membros dos citadinos, não perceberam isso, ela veio escrita com um código que meu pai criou. Código simples, algumas letras com sentido trocado. É bem fácil decifrá-lo, para quem o conhece. Eu conheço.
Na carta, quatro pontos muito importantes:
1) Um código com o qual eu posso acessar, no meu chip, a vida para além do fim do Passo;
2) Um código onde possa ver o que de fato ocorre dentro do Templo da Morte;
3) Um terceiro código, com o qual posso conversar sem ser pego com um homem de confiança que conseguirá meu acesso à nave;
4) Um plano de fuga. Simples e minucioso.
Tudo que vi e ouvi com esses códigos me deixaram estarrecidos. Vivíamos todos enganados.
O plano estava feito. Na troca de turno, às seis da tarde, Dilma, minha melhor amiga, abriria a porta do canil, pelo qual é uma das responsáveis. Os cães eram muitos, necessários para guardar a fábrica, mas soltos, na hora errada, invadiriam o deposito de ração causando um enorme estrago. Isso mobilizaria os guardas, nenhum permaneceria no hangar.
E ainda contávamos com Edmo, o sobrinho do chefe da família Coronária, que nos ajudaria, abrindo o portão. Era o homem de confiança do meu pai, não sei por que.
Hoje cedo, quando saí de casa, sabendo que não voltaria, peguei a caixinha com o diamante e coloquei no bolso de trás da calça. Senti que assim, meu pai seguiria junto a mim, me protegendo.
Agora há pouco, quando tocou a sirene das 18h, olhei para Dilma e meu olhar autorizou o cumprimento da sua tarefa. Cinquenta segundos depois, os cães entraram enlouquecidos na fábrica, a correria foi grande para evitar que chegassem no fundo do grande galpão onde toneladas de alimento estavam armazenadas. Nem deu tempo de olhar com nojo aquela cena, precisava cumprir o cronograma com precisão, qualquer falha e teríamos aqueles sacos de ração como sepultura.
Éramos quarenta fugitivos. Todos contatados por meu pai, ao longo de anos. Na hora certa, Edmo abriu o portão. Enquanto todos entravam, eu orientava, gritando em silêncio, com gestos, para que fossem correndo para a nave.
Em dois minutos, como calculamos, todos embarcados. Estamos aqui, prestes a partir. Tudo certo.
Desperto dessas reminiscências por um grito:
— Vamos logo, pelo amor de Deus!
Mas...
Havia algo que precisava fazer. Não poderia ir sem ouvir o que meu pai sempre disse:
— Filho, faça o que você sente que deve fazer!
Após preciosos segundos de hesitação, desço correndo e vou em direção à fábrica. Conheço os caminhos, sou um funcionário de confiança e atento. Vou direto à sala de máquinas. Preciso entrar lá. Chego e, de longe, vejo apenas um guarda. Aponta a arma para mim e manda que eu não dê mais nem um passo. Não tenho tempo a perder, a única solução que me ocorre é gritar, aproximando-me, com cara de pavor, fingindo desesperação:
— O que você está fazendo aqui? Corre, os cachorros estão a ponto de entrar no escritório da família, você precisa salvá-los!
Ele foi. Entrei na sala de máquinas e abri a caixa de controle. Conhecia o código que desativaria toda a automação da fábrica. Levaria semanas para ser consertado. Seria o tempo suficiente para os corpos humanos, a verdadeira matéria prima da ração, como disse meu pai na sua carta de despedida, se acumularem e começarem a cheirar mal. A população descobriria que se alimentava dos seus mortos.
Serviço feito, estou voltando à nave. A confusão ainda está armada, saio com certa facilidade... mas... quando afasto-me da fábrica e olho para trás, vejo cinco policiais, fortemente armados, correndo na minha direção. Fui descoberto!
Merda, todo esforço em vão, não devia ter deixado a nave quando tive chance de partir.
Corro, ouvindo tiros, que pela distância não chegam a me atingir. Mas eles se aproximam. As balas são venenosas, possuem um paralisante, para que os presos sejam torturados com transmissão ao vivo, amedrontando a população. Mas... enquanto subo a escada... quase livre... aconteceu... sou atingido. Por trás. Sinto dor e medo. Senti meu corpo se paralisar. Sigo caminhando, sento, fecho a porta e dou partida. Meu corpo paralisando, mas posso ainda me movimentar... fico estatelado na cadeira, enquanto a nave sobe, de forma vertical, até os treze mil metros programados. Fiquei ali, esperando o fim, pois sabia que, sem o antídoto, a paralisação me levaria à morte. Os minutos passam, eu sem poder me movimentar!
Tenho vontade de levantar. Mesmo sabendo que não conseguirei, tento. Estou de pé! Ponho a mão no bolso... sim, está aqui... o diamante do meu pai me salvou do veneno. A bala bateu exatamente nele! Eu não fui atingido de verdade... foi o medo que me deu a sensação de paralisia!
Que alívio!
Olho para trás, estão todos ali, caras de assustados e olhares aliviados. Olho a cada um e começo a rir... todos começamos a rir. Vejo outra vez o diamante. Digo, espontaneamente: obrigado, pai, o diamante pode não ser das tuas cinzas, mas sei que foi você quem nos salvou!
Fecho os olhos e todos me ouvem dizer:
— É, pai, estou chegando aí, no teu sonho!
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