Sarpati
O beijo tão esperado por Davi e Paola acontece. Contudo, uma serpente interrompe o romance. Ela se enrosca nos pés do Davi e mergulha com ele nas águas profundas. O rapaz acorda, horas depois, confuso e exausto. A luz cega os seus olhos, o sol queima a sua pele branca, e os seus cabelos loiros ficam mais brilhantes.
Na Cidade das Sombras, a luz entra por frestas espalhadas pelo túnel que, apesar de iluminarem o ambiente, não tem o poder e a força dos raios solares. O seu encontro com a natureza levou dezenove anos para acontecer. Até então, estava preso a uma vida limitada e escassa no túnel. Ele acredita estar num pesadelo e tenta se livrar do incômodo. Lembra-se do beijo, da serpente e do mergulho na água. Sente o corpo queimar, a pele arde e a boca está seca.
Ouve o som do vento, o canto dos pássaros, os galhos e folhas das árvores se mexendo e se assusta. Tenta se mexer e não consegue. As ondas do mar batem nos seus pés e algas entrelaçam os seus dedos. O corpo lateja, e ele fica com falta de ar. Não consegue abrir os olhos, mas percebe uma presença ao seu lado. Uma mão pequena, firme e perfumada toca o seu rosto. O contato é breve, porém intenso. Uma voz doce, fala uma língua que ele não entende e, em seguida, o seu corpo sai do chão e se move pelo ar.
No trajeto, uma chuva fina toca o seu corpo, e uma música suave, emanada por seres angelicais, inunda a sua mente e coração. O som mágico o domina, e ele entra em profundo estado de relaxamento. Uma floresta exuberante aparece com árvores prateadas e luminosas, que vão além do que a visão pode enxergar. Elas parecem soldados gigantescos, dispostas uma ao lado da outra, formando um interminável muro de proteção.
Na entrada, uma serpente, com olhos de fogo e pele vibrante, observa a chegada do visitante. Ela se ergue, toma o formato humano, e se aproxima do rapaz. Um raio colorido penetra na floresta, e uma estreita passagem é aberta. Freya e seus amigos entram no reino, e outro raio ilumina o ambiente. Eles passam pelos anjos, pela feira livre, pelo templo e se dirigem ao castelo.
Uma figura esbelta, com asas transparentes e flexíveis, recebe a Freya e o Davi. A estrela que ela tem entre os olhos se acende, e gotas de luz caem na sua face. Anaita os conduz pelos corredores do palácio, eles passam por uma fonte musical, pelo imenso salão de festas, sobem as escadas e vão para os aposentos reais. O rapaz é colocado, com cuidado, na cama. O casal real é chamado para ver o hóspede. Athos quebra o silêncio e, com a voz embargada, indaga:
— Freya, ele é o Duncan?
— Majestade, não tenho dúvida.
— E a marca real? — Freya pega a pena da águia e passa no peito dele. O brasão real aparece. — Rei Athos, qual será o próximo passo?
— O Cornélio cumpriu a missão com êxito. Viajou entre os mundos e nos trouxe o futuro rei de Sarpati. Foi um feito e tanto, até mesmo para ele. E você, com o auxílio dos anjos, conseguiu proteger o povo na ausência dele. Agora nos resta ter paciência e esperar. O futuro do reino está nas suas mãos.
O rei deixa o recinto, e a rainha fica perto do príncipe. Freya trata dos ferimentos dele. Ela manipula vários elementos, com consistência, odor e cores diferentes. Passa uma pasta viscosa e massageia o corpo do Davi. Ele começa a delirar e a febre aumenta. A feiticeira canta uma música e profere palavras secretas. Depois, junta as mãos, as eleva para o céu, e espalha um pó azul sobre o corpo do Davi.
Elinor fica impressionada com a imediata recuperação do filho. Ela, com os olhos cheios de lágrimas, declara:
— O reino sofreu várias invasões. Ele está de pé pelo poder da magia branca praticada pelos seus ancestrais, pela serpente e por você. Continue firme, os cabeças de porco deram uma trégua, mas não desistiram.
Sete anos depois ...
Duncan está cansado, o treino com a Freya foi puxado. A dupla se encaminha para a cozinha. Comem umas frutas cinzas, em formato de moeda, com gosto de jaboticaba. Anaita avisa que o rei o espera no recanto das armas. Freya se incomoda em ser excluída. Ele nota o desconforto dela e sorri. No percurso, ele pede para a fada desviar a rota e os dois voam pelo reino. A imagem do alto é maravilhosa, e ele a guarda no coração.
Minutos depois, o príncipe vai ao encontro do rei. Athos anda de um lado para o outro, com os punhos cerrados e o olhar frio. Duncan puxa uma cadeira e espera pelo pior. O rei chega perto dele e sentencia:
— Sei que você não quer a coroa. Já discutimos sobre isso e, sinceramente, não consigo entendê-lo. — Os ombros dele caem e o olhar fica perdido no chão.
— Pai, desisti de convencê-lo. Preciso retornar para a Paola. Ela está sofrendo e espera por mim. Eu até voltaria para cá, de bom grado, se ela pudesse vir comigo. Contudo, a Freya não cansa de me dizer que isso é impossível. Enquanto isso, o tempo passa. Estou com vinte e seis anos e o relógio anda cada vez mais rápido.
— Filho, eu seria o primeiro a recebê-la de braços abertos. Só que o nosso mundo é inviável para ela. Morreria, com falta de ar, ao botar os pés aqui. O reino só acolhe os seus nativos. Não há magia no mundo que possa reverter isso.
— Pai, sabe qual é a ironia disso?
— Sei. Não recebemos ninguém de fora, mas, por outro lado, podemos viver em qualquer lugar. Isso não era importante até você ser levado pelos cabeça de porco para o outro lado do mundo. Sou grato às pessoas que o pegaram ainda bebê e morreram de forma violenta. Aos ...
— Acho que você deveria ser mais agradecido aos pais da Paola. Salvaram-me das garras dos caras de porco e me criaram com amor.
— Concordo. Todavia, além de ser seu pai, sou o soberano de Sarpati. Sou o responsável por um reino e pelo meu povo. A minha missão é árdua e a cumprirei até o fim.
— Tenho certeza disso. Pai, seja direto, o que quer me dizer?
— Em alto e bom som, ordeno: nem pense em deixar o reino de forma leviana! Os cabeças de porco estão se organizando e iniciarão a guerra em breve. Eles sabem que está aqui e querem acabar com o meu reinado e tomar, de uma vez por todas, Sarpati.
— Não posso esperar pelo ataque deles. Não sei quanto tempo isso levará. E depois... você tem vários seres mágicos que defendem o seu reinado. Não há motivo para tanto drama. Sarpati resistiu às muitas investidas deles, eu não estava aqui, e o reino permanece firme e forte.
Cornélio entra com passos firmes e cumprimenta os dois. Athos sabe que a presença dele no palácio não é bom sinal. O guardião, sem rodeios, alerta:
— Devido à gravidade da situação, resolvi deixar o meu posto, mesmo sabendo que é uma péssima escolha. Os caras de porco estão tentando invadir o reino. Eles, a cada hora que passa, ficam mais fortes e em maior número. Estou usando toda a minha magia, aliada ao poder dos seres de luz, mas a invasão é certa. As árvores estão perdendo a força, e temo pelo pior.
— Cornélio, como está? É a primeira vez que o vejo tão abatido.
— O processo de transformação de homem para serpente e vice-versa me exaure. A perda de energia é brutal. Quanto à magia ... nem consigo calcular os estragos. — Ele solicita ao rei uma conversa particular. O filho obedece ao pai e se retira do recinto.
— Serpente, o que o aflige?
— Sou incompetente no meu papel de mentor. O príncipe, em todos esses anos, em nenhum momento ouviu os meus conselhos. Ele não aceita a condição de seu sucessor. O destino do reino não está ameaçado só pelos cabeças de porco. Entretanto, acredito que Vossa Majestade saiba disso melhor do que eu.
Anaita interrompe a conversa e avisa que a Freya precisa de ajuda. A entrada do reino está vulnerável e a invasão é iminente. Cornélio se transforma, e ela voa com ele até às grandes árvores. A guarda imperial é convocada. Eles estão prontos e reforçam a proteção com a ajuda dos animais alados.
O rei faz um discurso acalorado para os 4300 homens. Ao lado deles, há 132 dragões acostumados com a luta. As armas são mágicas e têm um alto poder de destruição. Duncan coloca a armadura e assume a liderança do exército. As criaturas das trevas podem ser ouvidas a quilômetros de distância e contabilizam mais de 10.000 integrantes. O chão do reino, com a proximidade deles, treme como se um terremoto estivesse prestes a eclodir.
A serpente, com o auxílio dos seres mágicos e da Freya, consegue conter o ataque por sete dias. Na madrugada, os cabeças de porco se aproximam do palácio. Eles levam três dias para aniquilar os soldados que protegiam a entrada do castelo. A invasão vira uma carnificina. O rei e a rainha são torturados sem piedade. Depois de horas de sofrimento e de terror, os dois são degolados.
Anaita encontra o príncipe, perto dos pais, ferido. Ela o ajuda, e os dois voam até a entrada do reino. A fada desmaia, suas asas estão machucadas. Duncan tenta socorrê-la, mas ela some no ar como um pequeno ponto de luz. De longe, Freya assisti a tudo. Ela voa até ele e, cabisbaixa, súplica:
— Perdoe-me! Traí você, o rei e o reino.
— Freya, não acredito nisso! Logo você, mas por quê?
— Recorda-se das três vezes que tentou fugir?
— Sim. E daí?
— Eu avisei o rei. Não admitia a possibilidade de perdê-lo. Estava cega de amor.
— Não entendo... o que isso tem a ver com a tomada do reino pelos caras de porco?
— Eu agilizei e facilitei a vitória deles. A saída da serpente, da entrada do reino, era o que eles precisavam para nos enfraquecer. O Cornélio é o guardião maior daqui. Quando ele retornou as árvores já estavam fracas.
— Por que agiu assim?
— Achei que o reino em perigo faria você mudar de ideia. Apostei na vitória e acreditei que, depois da guerra, você assumiria o trono.
— Freya, você acertou em parte. Só não contou com a nossa derrota.
— Duncam, siga as árvores frutíferas e chegará até o mar. A serpente o espera para levá-lo para casa. — Ela voa alto e desaparece.
Davi tira a armadura, olha para o cenário de destruição, que acabou com o reinado dos seus pais, e chora. Clama em nome dos que se foram. Honra o que viveu e segue rumo à sua amada e verdadeiro lar. Uma chuva forte limpa o seu corpo ensanguentado e sua alma ferida.
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