Raio de sol
A última vez que a vi não poderia ser em pior hora. Eu levara tempos para tomar a decisão. Calculei milimetricamente minhas chances de êxito. Estudei a rotina de todos da casa. Escolhi a hora exata para não ser encontrado por meu avô Everaldo. Seria um golpe em todos, especialmente para ele que acordara de um coma de 15 anos e queria aproveitar cada minuto com a família. Mas a vida era minha, o drama era meu, só eu sabia a solidão de ser um transplantado. Tudo era negado ou impossibilitado: amigos, diversão, comida - prazeres simples! Escolhi o parapeito leste. Tudo o que eu não queria era um raio de sol em meu rosto naquela hora derradeira. Subi no parapeito e me equilibrei com pouca dificuldade: a parede era da largura do solado do meu velho tênis. Adiei o momento final, dei algumas passadas sentindo a brisa da tarde em meus cabelos.
Sem pedir licença, as melhores recordações começaram a desfilar em minha frente: o delicioso bolo dos meus 15 anos, a notícia do rim compatível, a comida deliciosa da avó, as risadas em família, a volta do avô do coma, o dia em que meus pais me deram um videogame novo e tinha o Licão. Parei por um momento, sentindo uma saudade antecipada do meu peludo. Ele não era apenas um urso de pelúcia: era meu amigo, confidente. Quantas lágrimas enxugara em seu pelo. Ele sabia ouvir, e se aconchegar em seu pelo surrado trazia um alívio, mas que, a partir daquele momento, já não seria possível. Engoli o choro e pensei: seja homem agora, pelo Licão, ele merece isso.
Nesse momento, Lupe, nosso cachorro, apareceu. O bicho tinha uma inteligência fora do normal. Fora ele e seus amigos cachorros, todos de rua, que lutaram capoeira para distrair os guardas e podermos passar despercebidos na noite de meu transplante. Ele parou, cheirou o ar, deu um uivo agudo como uma advertência, e ficou me olhando com uma pergunta muda em seus olhos castanhos. Eu o ignorei e voltei toda minha atenção ao que estava fazendo.
Era uma sensação inebriante, a altura, o poder de decidir o meu destino, colocar fim em meu sofrimento. Quem aos 16 anos ainda era BV? Na solidão do meu quarto, eu pudera fazer uma lista de tudo o que os meus colegas estariam fazendo: rindo, brincando, estudando, comendo, zuando, talvez até namorando. E eu? Confinado, aguardando o próximo exame, a próxima consulta, o próximo remédio. Eu odiava cada ida ao hospital. Eu só queria minha vida de volta, comer tudo o que fosse possível, encontrar com meus amigos, estudar. Eu estava enlouquecendo! Mas isso logo teria fim. Respirei fundo, aliviado, depois que decidimos, tudo nos parece mais fácil. Cheguei até o fim da paredinha e virei num pé só, quando ouvi um grito:
— Nandoooo!!!
Ela estava parada no último degrau da escada que leva para a área de cima, lívida, as mãos no rosto, a boca ainda aberta em o, com o cachorro Lupe ao seu lado.
Seu grito me desequilibrou. Então eu caí.
***
A primeira vez que a vi, quase me tornei seu super-herói, mas o resultado foi um desastre.Eu participava do GAT - Grupo de Apoio aos Transplantados do Hospital Regional de Belo Horizonte. Eram reuniões chatas, a maioria velhos reclamando do pouco funcionamento de todos os buracos do corpo, até que ela chegou. Eu a vi, um raio de sol vindo pelo corredor, com sua trança vermelho-dourada com um girassol na ponta, combinando com seu vestido trapézio (ela me explicou o nome do vestido depois) amarelo-ouro com flores rosas. Ela vinha tão feliz que iluminava todas as paredes frias por onde passava.
Não sei o que deu em mim. Dei um pulo e fui abrir a porta para ela, mas tropecei lindamente no tapete e caí em sua frente. Imagine o espetáculo: um menino de 16 anos, magro, amarelado, desengonçado e sem nenhum atrativo, esparramado no chão.Que mico!
Ela me sorriu, percebi duas covinhas e muitas sardas numa pele amorenada. Achei que as sardas não combinavam com sua pele. Essa foi a primeira razão para eu me irritar com ela.
Então ouvi a voz da doutora Miriam:
— Nando!
Só então percebi que eu me perdera em seu sorriso e estivera ausente — quanto tempo? Nossa! Outro mico!
— Nando, ela será sua dupla.
De pronto, ela se sentou ao meu lado, já se apresentando:
— Oi, Nando, sou a Liliane, mas pode me chamar de Lili, tá? Seu nome é Nando mesmo ou é Fernando? Ou Luiz Fernando? Se não quiser falar, tudo bem, mas como terei que te apresentar para o grupo, preciso saber algumas coisas sobre você.
Aproveitando um segundo em que ela se calara (a falação seria a segunda coisa nela que mais me irritaria), respondi com um sopro de voz:
— Nando.Nando de Nando Reis, o cantor.
— A minha mãe é apaixonada por ele, aposto que a sua mãe também, né? Fala sobre você, Nando, seus sonhos, qualquer coisa...
Respirei fundo, sentindo seus olhos negros e brilhantes em meu rosto, ansiosa por uma resposta. Que sonhos um transplantado podia ter? Ainda mais vivendo com apenas um rim? Será que apenas ficar vivo sem sacrificar demais a família contava como sonho?
Ela tomou meu silêncio como autorização para disparar feito metralhadora:
— ...então eu já estava com meu funeral preparado quando consegui coração e pulmões novos, você acredita?
E ela continuava, sem tomar fôlego:
— Dizem que quando a pessoa morre, por 24 horas consegue ouvir o que as pessoas dizem e eu queria que só falassem bem do meu funeral. Nossa! Foram fantásticos aqueles meses preparando tudo, pensando nas roupas, nas comidas... Sabia que minha tia estava até engordando uma porquinha para o meu velório? Pois é, mas agora quero aproveitar essa chance, quero estudar e ser psicóloga, como a dra. Miriam, ser uma pessoa plena e uma profissional competente.Quero viver cada dia da melhor maneira que eu puder. E você?
E sem esperar que eu respondesse:
— Ouve, sente como meu coração bate de alegria! — E pegando a minha mão, entre as suas mãos pequeninas e quentes, colocou sobre o seu coração que realmente batia forte, compassado.
A frase "quero ser uma pessoa plena" ficou ressoando em meus ouvidos. Ah! Como eu queria ser assim também! Mas com tudo controlado na vida: remédios, diabetes, colesterol, checando quatro a seis vezes por dia, como alcançar a plenitude? Mas ainda assim, ela conseguiu extrair de mim sonhos há tempos adormecidos.
Hora de apresentar o colega na roda. Sempre fui tímido, quase morri de vergonha quando ela contou:
— Sabiam que o Nando recebeu esse nome em homenagem ao cantor Nando Reis? Eu tenho cabelos ruivos e cacheados como ele! Ah! E o sonho do Nando é andar de balão!
Todos me olharam com admiração. Levantei sem jeito e não consegui encontrar minha voz. Todos me olhavam aguardando, eu já roxo, próxima estação após o vermelho de vergonha.
Doutora Miriam tentou ajudar:
—Como você definiria a Liliane, Nando?
Só consegui murmurar:
— Um raio de sol... um raio de sol.
Aplausos estrondaram em meus ouvidos. De cabeça baixa, voltei ao meu lugar sem olhar para ela.
***
— Nando, o que pensa que está fazendo?
Ela usava uma jardineira lilás, blusa verde, tênis amarelo. Essa combinação de cores nada a ver era outra coisa que me irritava nela. Seu grito me assustou e caí para dentro da área do apartamento.
Levantei com o coração batendo forte por causa da tragédia que eu quase completara e pela visão arfante dela a meu lado:
— Cara, você pirou?
Retruquei com grosseria:
— Como você se sentiria se descobrisse que seu rim veio só com nove anos de garantia? E que todo sacrifício que sua família está fazendo por você será em vão?
— Cara, você recebeu não foi um rim, foi um prêmio de loteria. Já pensou quantas pessoas estão aguardando? Quem te falou isso do seu rim?
— Eu li na internet que um rim, retirado de quem já morreu, dura 9 anos, e 25 anos se for transplante intervivo.O meu veio de um rapaz que morreu num acidente de moto.
— Nando, Nando, isso são hipóteses. O que importa é aproveitar cada dia que você puder. Eu recebi um coração e pulmões há dois anos e sou muito grata por esse tempo a mais que conquistei. Quem garante que alguém vai viver até o fim dessa tarde? Por que você se considera assim tão especial?
E arrematou com dureza:
—Vai passar os próximos nove anos se lamentando?
— Não! Era isso que eu estava tentando fazer, para acabar...
Ela me interrompeu( isso também era irritante nela):
— Dar fim à própria vida, Nando? Isso está fora de cogitação! Isso não acontecerá! Não se eu puder impedir.
Lili me olhou nos olhos e perguntou:
— Você guarda um segredo?
E foi enrolando a perna de sua jardineira até o meio da coxa. Intrigado, sem entender aquele gesto, observei os pelos ruivos de sua coxa que, de um tom bem mais claro que o resto do corpo, brilhavam feito cobre. Senti meu rosto queimar com tamanha intimidade, mas ela se dedicava a alisar cada vez mais as dobras da perna de sua calça e quando parou, me olhou, com um sorriso divertido em seus lábios:
— Que cara é essa, Nando? Nunca viu uma coxa antes?
Sacudi o rosto, desviando os olhos: eu estava absolutamente fascinado por ela. E percebi que nada mais me irritava nela.
— Olha aqui, Nando, o que vou te contar ninguém sabe, a não ser a dra. Miriam. Jura guardar segredo?
Jurei beijando meus dedos em cruz e, com o coração aos pulos, com toda aquela situação, aguardei.
— Olha, eu entendo seu desespero, mas o primeiro ano após o transplante é difícil mesmo. É tanto medo de acreditar que vai dar certo, que vamos ter uma vida normal, que acabamos fazendo tudo errado. E também tem a família da gente, ali na torcida, sofrendo...
Ela parou e ficou em silêncio por alguns segundos, depois se decidiu:
— Eu busquei alívio para a dor assim. — E me mostrou várias linhas no interior de sua coxa. — Eu me cortava, me automutilava, porque diziam que acabava com nossas dores, com nosso sofrimento.
Olhei aquelas linhas brancas, cicatrizes de antigos machucados, horrorizado.
— Quem te falou que se cortar ajudava?
— Pessoas na internet.
Entendi o que ela queria me dizer.
— Mas um dia, depois de uma reunião do GAT, criei coragem e contei para a dra. Miriam, que me ajudou muito. Uma das coisas que ela me sugeriu foi conhecer a mãe da Amanda, a menina que me doou o coração e os pulmões. Ela foi vítima de uma bala perdida aos catorze anos, entendeu? E ao ver a alegria daquela mãe, sentindo o coração de sua filha batendo em meu peito, eu decidi que eu viveria por ela e por mim. Nunca mais me cortei.
Fiquei em silêncio por um bom tempo, tentando absorver tudo aquilo.
E Lili, positiva (outra coisa que me irritava nela, mentira, que eu amava nela), ordenou:
—Vem cá, senta aqui, vamos aproveitar o solzinho desse fim de tarde? Afinal, eu sou a Raio de Sol, lembra?
Minhas orelhas se queimaram, mas fiquei feliz por ela se lembrar.
Reclinamos as espreguiçadeiras e ficamos em silêncio por um tempo.
—Trouxe uma coisa para nós! — exclamou ela, retirando dois quadradinhos restantes de uma barra de chocolate do bolso.
Arregalei os olhos: aquilo era um produto que desapareça do mercado em época de pós-pandemia. Ela dobrou e redobrou o papel e me mostrou minúsculos pedaços:
— Pronto! Agora vamos degustar, mas só pode um pedacinho de cada vez.
Ficamos lá sentindo o chocolate derreter na boca, aproveitando cada farelo, até que ela deu um gritinho:
—A primeira estrela! Faz um pedido, Nando.
E como era de seu feitio, respondeu, rápida, sem esperar:
—Meu desejo é andar de balão, junto com você, Nando, muitas vezes.
Mas mesmo sem falar, meu pedido já se calava em meu peito:
— Quero ter muitos momentos com essa menina maluquinha!
E sem jeito, timidamente, busquei os dedos de minha Raio de Sol e ficamos ali, com os olhos úmidos e o coração quente, apreciando o surgimento das primeiras estrelas.
Essa foi a última vez que contei quantas vezes a vi ou quantas vezes ela me irritava, depois parei de contar...
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