Quando o Sol Aparece
— Odeio muito esta vida, odeio muito minha mãe!
Maria Clara repetiu essa frase muitas vezes, cabeça mergulhada no travesseiro, segundos após bater a porta do seu quarto com força. Pela enésima vez na semana havia brigado com a mãe. Outra vez por causa do Ronaldo.
A mãe colocou-a de castigo porque soube que havia faltado às aulas de inglês para ficar com ele. Maria Clara pegou o celular, precisava falar com Ema, sua amiga dessas horas. Chorava em tempestades, com gritos e olhos faiscantes.
— Ela é incapaz de entender o quanto o amo. Se não puder namorar ele, nada mais fará sentido, sou até capaz de fazer uma bobagem.
— Não exagera, calma.
— Odeio minha mãe, ela me irrita muito.
— Ela? Tudo te irrita!
— Tudo não, só as pessoas. As pessoas me irritam muito. Menos você e o Ronaldo...
Ema avisou que teria que desligar, a irritação só aumentou. Voltou ao travesseiro, e ao choro.
Maria Clara era muito intensa, desde criança. Adolescente difícil, reclamava de tudo e de todos, mas a mãe era seu alvo principal. Nessa época, tinha 16 anos. Ronaldo era sua terceira tentativa de namorado. Os dois anteriores não deram certo. Um deles comia muito feio. Depois da terceira vez que almoçaram juntos no refeitório da escola, desistiu dele.
— Tá, não precisa ser um lord, mas não posso namorar alguém que come igual um urso.
O outro até estava indo bem, viam-se na escola e passavam bons momentos juntos. Tudo mudou no dia que ele passou na sua casa, seria a primeira vez que sairiam de noite, foi todo bonitinho e com um boné posto do lado contrário.
— Sério?
— Sério. Nunca mais quis sair com ele, me perguntou porquê, falei a verdade e ele me odeia muito.
Namorou Ronaldo escondida da mãe. Amou-o intensamente, tinha certeza que era o amor da sua vida. Isso por dois meses, quando descobriu que ele era muito chato. Não quis mais vê-lo.
— Só falava do seu sonho: ser médico e trabalhar com os Médicos Sem Fronteiras. Que isso, quem tem um sonho como esse? Não deu, mas ao menos minha primeira vez foi legal, não posso negar.
O tempo passou e as coisas mudaram, para melhor.
— Amo muito tudo isso, amo estar onde estou, amo tua companhia.
Quem falava assim, no ouvido do namorado, era Maria Clara. Agora com 20 anos, cursando Engenharia Florestal e experimentando até então o melhor momento da sua vida.
Mas isso não significa que os últimos anos foram fáceis...
Clarinha, era assim que era conhecida na faculdade, saiu de casa seis meses depois da morte abrupta do seu único irmão, três anos mais novo. O golpe foi muito duro, ela que nem chegou a conhecer o pai agora teria que conviver com essa dor, associada a uma boa dose de culpa. A verdade é que nunca o tratou bem, ele também a irritava muito.
Com a morte do irmão, paradoxalmente sua casa ficou menor. Sentia-se sufocar com a tristeza da mãe, que dava mostras que não suportaria passar por tanto sofrimento.
Como estratégia de sobrevivência, Clarinha surpreendeu a todos com o curso de Engenharia Florestal e a faculdade que escolheu, mais de mil quilômetros longe de casa.
— Mãe, é a única Federal que consigo entrar pelo Sisu.
Era mentira, existiam muitas outras opções, mais próximas.
Ficou um ano sem voltar para casa. Durante esse tempo, viu a mãe reerguer-se. Falavam muito por celular, chamadas de vídeo, áudios, mensagens.
Agora, já no fim do terceiro ano, sabe que o pior passou. A mãe está bem, se cabe o termo para uma mulher que ainda não conseguiu doar todas as roupas do filho e mantém seu quarto arrumado. Mas está muito melhor, firme na terapia, medicada e trabalhando.
— Eu? Estou ótima. Ronaldo é um amor, é o homem da minha vida.
Esse Ronaldo é outro. Conheceram-se em seu primeiro dia na faculdade, sentaram-se lado a lado na aula inaugural. Ela ria do caderno dele, capa do super-homem, etiquetado com seu nome, curso e endereço. A coincidência do nome e o nervosismo de um primeiro dia em meio a centenas de desconhecidos ajudou o sorriso a migrar para uma persistente gargalhada. Ele nunca soube porque riu, mas gargalharam juntos, com as mãos em concha sobre a boca, tentando, inutilmente, abafar o som.
Começaram a namorar um ano depois, por celular. Sentiram falta um do outro quando ficaram longe por três meses, nas férias. Falavam-se todos os dias, a tela ajudou Ronaldo a dizer que gostava dela, os emoticons facilitaram a resposta de Clarinha.
Já são quase dois anos de namoro. Moram juntos, juntos são vistos todo o tempo. Seus colegas consideram que formam um casal perfeito. Adoram a faculdade e o curso. Ela é bolsista em dinâmica das florestas, ele dedica-se a etno-botânica. Ronaldo quer trabalhar com indígenas amazônicos, tem vontade de contribuir com os povos e as comunidades tradicionais.
— É um lindo né? Até seu sonho é lindo!
Mas os anos futuros não correram como planejado.
Nesse momento, com 24 anos, Maria Clara está maldizendo a vida, buscando entender a razão de estar passando pelo que está passando, imaginando rotas de fuga.
É tarde da noite. Está com Breno no colo. Seu filho tem dois anos e arde em febre. Ela não sabe mais o que fazer para amenizar a situação. Terá que esperar o dia raiar para procurar um médico. Preferiu tranquilizar a mãe e falar que Breno está melhor. Morando tão longe, como uma avó angustiada poderia ajudar?
Ronaldo? Ronaldo pediu transferência da faculdade assim que soube que Clarinha havia engravidado. Transtornou-se com a notícia, perguntou se de fato era dele, sugeriu que ela não tivesse aquele filho e acabou optando por fugir. Nunca viu a criança que sim, era dele, a resposta mais doída que Maria Clara deu em toda a sua vida.
— Não sei como atravessei aqueles dias. Apaixonada, grávida, com promessas rompidas e futuro abortado. O homem que pensei ser o amor da minha vida nem pensou duas vezes em me deixar.
Esses últimos anos foram muito difíceis. Vem criando seu filho sozinha. Formou-se e, por receio do que poderia vir, aceitou a sugestão de um professor, matriculando-se no mestrado. Sustentar-se apenas com a bolsa foi impossível, teve que buscar emprego. A única coisa que conseguiu foi dar aulas particulares a alunos de cursinho. Atrasou as matérias, seu trabalho de campo andou a duras penas e tem só dois meses para concluir a dissertação, sob risco de ver o esforço que fez ter sido em vão.
Vive entre cuidar do filho e da casa, seguir os estudos e dar aulas. A mãe, longe, ajuda no que e como pode. Que saudade... agora sim sabe o que é criar um filho sozinha, nem consegue imaginar o que seria com dois. Martiriza-se por não ter compreendido isso no momento certo, por não ter facilitado a vida da mãe. Reconhece que, de alguma forma, ter sido abandonada guarda semelhança com o que ela mesma fez com sua mãe.
— Que ódio de mim! Porque tudo dá tão errado comigo? E o sol, porque não aparece?
Nesse momento, além de si mesma, ela outra vez odeia a vida. Com seu filho quente no colo, chora todas as suas penas. Tá difícil encontrar motivação para seguir. Não consegue segurar a onda, sente-se afogar na maré cheia e desaba em choro convulsivo. Por alguma razão, lembra de quando chorou pelo Ronaldo, o primeiro. Pensa em rir de si mesma, de ter sido tão ridícula naquela cena, mas não encontra nem uma dose de humor, mesmo que irônica ou amarga. Adormece, aquecida pelo filho, apreensiva, perguntando-se, ao mesmo tempo que imagina a resposta, se o viver se justifica.
Sim, a resposta é sim, viver se justifica. É o que Maria responde hoje, sempre que se questiona sobre isso. Tem 28 anos e sente-se uma mulher completa, plena. Sim, Maria é uma mulher que ama a vida.
— Se os pequenos problemas que tive foi o preço pago para chegar até aqui, ter o que tenho e ser o que sou, valeu muito a pena!
Maria tem mais uma filha: Bia. É uma bem sucedida professora universitária e acaba de defender sua tese de doutorado. Estuda bromélias e seu papel na preservação da biodiversidade.
Vivem em uma linda casa, com quintal e uma estufa, onde Gustavo cultiva bromélias e orquídeas.
Hoje estão embelezando tudo para receber a mãe, que chega amanhã para passar um tempo com eles. Pena que Ema, madrinha da Bia, não vai poder vir, como planejado. Ela teve que viajar, às pressas, para Londres, por problemas de saúde do namorado.
Enquanto trabalha em suas plantas, Gustavo é observado por Maria. Ela começa a pensar no dia que o conheceu. Ele, médico-pediatra, recém chegado à cidade, foi quem atendeu aquela mãe de rosto inchado, cabelos suados e sem brilho no olhar. Foi muito educado e atencioso. Recorda-se do comentário que ouviu na hora de preencher a ficha médica:
— Maria, lindo nome.
Nunca a haviam chamado de Maria.
Ele medicou Breno e perguntou à jovem mãe se conhecia uma casa para alugar, precisava se instalar. Anotaram seus telefones e nos dias seguintes trocaram mensagens. Três meses depois rolou um almoço de domingo na casa dele. Foi um dia maravilhoso, os três juntos. Ele a levou para casa, caminhando. Na porta de casa, o beijo recusado, o sorriso sem graça, o olhar pedindo perdão.
— Ele, sem nunca insistir, não desistiu. Com sua gentileza, fez-me ver que, se eu tivesse ainda vontade de me relacionar com alguém, teria que ser com ele. Assim foi.
Agora, ela recorda-se do dia em que cedeu. Muitos domingos depois, o mesmo almoço, a mesma tarde passada entre risos, conversas e confidências, as mesmas ruas percorridas a pé ao entardecer. Dessa vez ele, sem pedir, entrou na casa de Maria. Passaram aquela noite juntos. Ela tem quase certeza que foi nessa madrugada que Bia começou sua chegada ao mundo.
Sim, Maria sente que deve agradecer por ter passado o que passou, por ter nadado em alto mar e furado as ondas que a trouxeram a essa praia calma, de areias brancas e sol brilhante. Ainda navegando por essas agradáveis lembranças, é despertada pelo filho que vem, chorando e caminhando com dificuldade, em sua direção. Breno tropeçou em uma pedra e ralou o joelho. Ela o abraça forte e, com voz firme, de quem está absolutamente segura do que está falando, murmura nos ouvidos do filho:
— Vai passar filho, te garanto que essa dor vai passar.
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