Presentes
— Estou velho para essas aventuras — gemeu Everaldo, no alto da árvore.
Os cães se aproximavam, lenta e ameaçadoramente, deviam ser uns dez. Como a fome grassava para todo lado, Everaldo se imaginou virando o lanche daquela turba esfaimada que se aproximava cada vez mais. A princípio, pensou em parar e explicar aos cães que ele andava tão magro que não serviria para muita coisa, mas daí lembrou que cachorro gosta mesmo é de osso e, quanto a isso, não haveriam argumentos que demovessem os cães: ele estava praticamente pele e osso!
Continuou andando em frente, mais rápido agora, mas não suficiente para provocar uma debandada dos cães em sua direção. Olhava em busca de uma salvação, mas já podia sentir o bafo dos cães em seus calcanhares. Por sorte, avistou uma jabuticabeira ali perto. De um pulo subiu até o primeiro galho e dele passou para o mais alto: estava salvo!
Mas então ouviu um estalo na junção do encontro com o tronco: a galha começou a se partir...
Que situação! Depois de quinze anos em coma, estava agora ali naquele aperto, porque viera em busca do mais secreto de seus ingredientes, que ele não revelaria a ninguém (nem a você, leitor). Ele não dava conta das encomendas de suas cervejas artesanais, principalmente as de rótulo vermelho, afrodisíacas. Trabalhava feito um burro de carga, mas isso mantinha sua família, de certa forma, a salvo, afinal os Dirigentes apreciavam muito seu produto. Precisava muito de turbinar sua produção, porque tinha em seu bolso uma lista de ingredientes para um bolo encomendados por sua mulher e, da forma como ela lhe falara, sua vida dependia daqueles ingredientes, mas pelo jeito aquelas mandíbulas lá em baixo lhe dariam cabo de qualquer jeito.
O galho gemeu e dando um tranco final depositou um trêmulo Everaldo em câmera lenta a um metro de focinhos variados. Mas, num passe de mágica, os animais pararam de latir e abriram caminho para um cão de pelos negros que se aproximou lentamente de Everaldo. Pelo seu porte deveria ser o líder, mas já era um cão idoso, percebia-se. Nisso o cachorro foi chegando, cheirou sem cerimônia suas partes íntimas e, de repente, deu um pulo em seu peito, começou a chorar e a lamber o rosto de Everaldo: era o seu cão que o reconhecia! Ele fora requisitado para a fábrica de comida do governo há anos, mas pelo jeito escapara e agora liderava aquele bando de cães. Ele era realmente um cão especial, dotado de inteligência superior, capaz de agregar tantos cães a seu comando, o que lhes garantia proteção e sobrevivência, transformando a união do grupo em um fenômeno pós-pandemia. Os outros cachorros compreenderam e se juntaram à festa de reencontro tantos anos depois, com pinotes e latidos.
****
— Cadê o último ingrediente do bolo, Everaldo? — A impaciência da mulher era compreensível, pois o aniversário do seu neto se aproximava e um bolo diet era um dos presentes que queriam dar ao neto, nesses tempos terríveis pós-pandemia.
— Calma, minha velha, está aqui, não falei que eu tardo mas não falho? — gabou-se ele.
— Menos, Everaldo! — Mas o sorriso da mulher recompensava o perigo que correra.
— Bem, pegar o meu ingrediente secreto quase me custou a vida, sabe? Mas eu reencontrei meu fiel amigo Lupe! — E sorriu para o idoso cão que descansava a seus pés.— Agora ele pode passar fome aqui junto com a gente, né, meu velho? — O cachorro deu um longo suspiro satisfeito e voltou a dormir.
— Anda, Everaldo, me conte tudo.
— Bom, conseguir o seu último ingrediente do bolo quase me levou para o- lugar-que-não-tem-volta. Eu fui levar a cerveja na casa do doutor Borges, afinal, dos Dirigentes ele é o que mais aprecia minha cerveja. Mas eu não sou bobo, fiz um tanto a mais para a cozinheira, passei primeiro pela cozinha, entreguei a ela três garrafas mais o bilhete. O chato do Borges ficou um tempão conversando e cuspindo em minha cara. Alguém precisa me lembrar de levar um guarda-chuva, quando eu for lá conversar com ele, ainda bem que não tiro a minha máscara.
— Mas como você conseguiu sair de lá com o último ingrediente, homem?
— Aí é que está o pulo do gato! Rosa, a cozinheira, tirou o lixo ao mesmo tempo em que eu entregava uma garrafa de minha maravilhosa cerveja ao porteiro. Enquanto ele escondia seu presente, eu peguei junto ao saco de lixo a sacolinha e me mandei para cá. Como é o nome que eu quase esqueci? Ah! É a baunilha.
— Que bom, meu querido, agora o Nando vai ter o seu bolo e o melhor, na versão diet, para não lhe fazer mal.
— Nenhuma notícia?
— Não, a Sofia disse que o Marcelo está de olho na lista.
— Que danadinha nossa neta, hein? Acabou fisgando um médico, disse que não podia nem beijar...
— Fisgando uma ova! Ele que sofreu e correu atrás dela, graças a Deus nossas famílias são do bem e os Dirigentes não nos perseguem. Veja o que aconteceu com os vizinhos de baixo, que tragédia, sumiram com todos! Que tempos horríveis estamos vivendo!
— Mas se demorar muito esse transplante, não sei não! — suspirou Everaldo.
— Eu sei que posso estar fazendo o último bolo para o nosso neto. É como se sua vida fosse se esvaindo como as areias de uma ampulheta.
— Calma, você sabe que não é só o doutor que está de olho. Nossos amigos estão fazendo os contatos para nós.
— Mas o tempo voa e a hemodiálise não está surtindo efeito.
— Estamos correndo contra o tempo, temo que...mas haveremos de conseguir um rim compatível para ele, você vai ver, a Solidariedade é a nossa salvação, você sabe, ela tem feito milagres, se eles falaram que vão conseguir, vão conseguir.
— Amém — respondeu a esposa com fé.
No último ano, Everaldo e a mulher trabalharam na cervejaria, sem descanso, para produzir e subornar as pessoas certas, a fim de conseguir um transplante de rim para o neto tão jovem e já tão à mercê de um sistema de saúde que só privilegiava os ricos e as famílias dos Dirigentes. Mas o tempo passava e a rede Solidariedade, que agia no anonimato, ainda não conseguira o precioso órgão, mesmo o nome de Nando constando da lista não-oficial que salvava muitas vidas de pobres esquecidos pelo poder público. Os Dirigentes chegavam ao cúmulo de autorizar a retirada de um rim dos pacientes saudáveis, que se internavam por motivos outros, para salvar a vida dos seus. Mas o que salvava muitos é que médicos e enfermeiras simpatizavam com a causa da rede Solidariedade e evitavam uma tragédia maior.
****
No outro dia fariam uma festinha de aniversário para o Nando. Seus pais, ambos técnicos de informática, descobriram meio que por acaso que, quando sintonizavam a rádio 99,9 FM, ocorria uma interferência no sistema de vigilância dos Dirigentes, então podiam fazer a festinha sem se preocupar em serem vigiados.
O bolo ficara lindo, de encher os olhos. Estavam só aguardando a chegada do dr. Marcelo, namorado da neta. O médico chegou trazendo o melhor presente: a notícia que um rim compatível fora encontrado. Mas precisariam fazer uma pequena viagem até a cidade de vizinha, onde ficava o Hospital Regional, o prazo era até a meia-noite. Se chegassem após, o órgão estaria inviabilizado. Seria uma corrida contra o tempo!
— Como vamos passar pelos guardas noturnos? Eles vão querer saber onde vamos! — indagou Sofia.
— Podemos ir no meu carro. Sofia e eu, por sermos da área de saúde não teremos problemas, mas vocês sim.
— Tive uma ideia — falou Everaldo — mas vou precisar do meu grande parceiro Lupe! E chamando o cachorro saiu com ele pela porta, de onde voltou sozinho pouco tempo depois.
Um tempo mais tarde, levando o seu salvo conduto de médico e enfermeira em mãos, Marcelo e Sofia passaram pela guarda do bairro que já os conhecia, sendo seguido por alguns cães. Só faltava a guarda da saída da cidade, a mais inescrupulosa e cruel, sempre pronta a mandar para o-lugar-que-não-tem-volta quem desobedecesse ao rigoroso regime dos Dirigentes que, em nome da saúde da população, atormentava o povo com muita mentira e crueldade após a pandemia de 2020.
Alguns cães, bem orientados por Lupe, começaram uma confusão bem próximo à casa da guarda, dois cães começaram a se enfrentar e os demais fizeram uma roda.
Um dos guarda cutucou o outro:
— Você já viu cachorro lutar capoeira? Olha!
— Não acredito!
Os guardas debruçaram na balaustrada da ponte, onde, na parte de baixo, dois cães davam cambalhotas e rabo-de-arraia para nenhum capoeirista colocar defeito.
Sofia e Marcelo, vendo que os guardas estavam entretidos com a luta, foram se aproximando devagar com o carro para atravessar a ponte, aliviados, porque o tempo se esgotava, ainda teriam um bom pedaço de chão até o hospital e a sorte do Nando estava por um fio. Quando já estavam entrando na ponte, um dos guardas saiu do transe canino e fez um sinal para que parassem.
— O que temos aqui? — Com a lanterna, iluminou dentro do carro focando nos dois passageiros que estenderam seus salvos condutos que lhes permitia ir e vir, devidamente paramentados e com máscara.
— Temos uma emergência no Hospital Regional e fomos convocados.
O guarda estreitou os olhos e percebeu um fio de suor escorrendo pela têmpora da moça:
— O que tem no bagageiro?
— Nada não — respondeu com voz trêmula Sofia.
— Abre! — ordenou o guarda.
— Estamos atrasados e é uma emergência! — argumentou o dr. Marcelo.
— Eu quero que você abra! — enfatizou o guarda.
Com as mãos trêmulas, Marcelo pensou duas vezes antes de apertar o botão. Nessa hora, ouviram o outro guarda chamando:
— Tenente Lacerda, Tenente Lacerda, seu cachorro está ganhando! Olha que golpe fatal.
O tenente então, na iminência de receber um dinheiro pela aposta, o que alegraria sua tediosa noite, fez um sinal e mandou-lhes seguir em frente.
Aliviados, aceleraram e, um quilômetro depois, abriram o bagageiro retirando Nando, sua mãe e seu avô Everaldo, rumando a toda para o hospital, não sem antes receber no carro um cansado Lupe.
Os cães, como que por encanto, escafederam-se, deixando os guardas estupefactos com aquele sumiço, sem um resultado da rinha. Um dos vigias podia jurar que vira um cachorro preto falando alguma coisa com os cães antes da debandada.
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