Ouvidos que veem
Quando cheguei para visitar meu tio, como de hábito, encontrei-o na mesma posição de sempre. De longe, pude ver sua silhueta embaçada, certamente bebericando conhaque e fumando um bom charuto, antes de tirar a sagrada siesta. Ele é um homem pequeno e corpulento. Guarda ainda os músculos ágeis, mas a cabeça não funciona com o brilhantismo de outros tempos. Com 82 anos, alguma falta de memória e falhas de raciocínio fazem-se presentes. Até pouco tempo, antigos colegas buscavam seus conselhos sempre que um caso mais difícil se apresentava. Ele foi o melhor detetive que esse país conheceu, sua fama invadiu o mundo. Meus casos mais difíceis tiveram sua preciosa ajuda. Ocupei algo do seu lugar, mas não com a mesma genialidade.
— Meu bom sobrinho, que ventos te trazem? Veio filar um conhaque ou falar, mais uma vez, do teu caso insolúvel?
Ele sabe que esse caso, a morte da minha melhor amiga, não me sai da cabeça.
— Nenhum dos dois tio, só vim te dar um beijo.
Depois de quinze minutos de conversa amena, seu rosto se enrijece. Sei que, nessas horas, vai falar de trabalho. Ele nunca sorri quando trabalha. Gosta de dizer que o riso afrouxa os neurônios e relaxa a mente.
— Francis, o Gomez me telefonou hoje. Insiste na sua volta ao trabalho, precisam muito de você.
— Tio, não vamos falar disso. Eu não vou voltar ao trabalho, o senhor sabe que estou quase cego.
— Ao menos me diga o que você acha do caso do jornalista acusado de estuprar aquela jovem.
— Está claro que ele é o culpado. Narcisista e arrogante, não aceitou o não como resposta — respondi, displicente.
— Gomez me disse não haver nenhuma evidência — respondeu.
— Que ele procure. Foi o senhor mesmo que me ensinou: no seu mérito, seu defeito. Ele não é o melhor fotógrafo do país? Pois aí estará a evidência, ele não resistiu a precipitar esse momento. E ela não deve ter sido a única, o modus operandi foi muito profissional, certamente há outras vítimas.
Agora sim um sorriso de satisfação brotou no rosto do meu tio. Ele conseguiu o que buscava.
Fui criado por ele. Só nós dois na casa. Todos que nos conhecem dizem que se fôssemos do mesmo sangue não nos pareceríamos tanto. Eu sou fruto de um dos seus casos solucionados. Meus pais foram assassinados, eu era uma criança de dois anos, um tiro dado por um policial acabou ricocheteando e atingiu um dos meus olhos. Ele se apiedou de tal forma que me levou para casa, acabei virando seu filho, ainda que ele nunca tenha me deixado chamá-lo de pai.
Considerando minha condição de órfão e cego de um olho, ter sido criado por ele foi um golpe de sorte. Mesmo tendo perdido, nos últimos anos, quase setenta por cento da visão do meu único olho, não posso queixar-me da vida. Vivendo entre borrões, restam-me ouvidos sensíveis e raciocínio atinado que herdei do meu tio. Eu também tenho fama de desvendar todos os crimes que caem nas minhas mãos.
Mas o mais importante não resolvi.
Acordei desses pensamentos com um pigarrear do meu tio Artur. Despedi-me dele.
— Há três anos você dorme mal, come pouco e bebe muito. Só vai recobrar a tranquilidade quando solucionar o assassinato da Laura – disse ele, quando eu havia dado dois passos em direção ao portão. E completou:
— E você sabe que ela merece isso.
— E o senhor sabe que estou cego.
— Acabou de me lembrar e esqueceu? No teu defeito... teu mérito. Ou tua vantagem!
Meu silêncio respondeu por mim.
Eu sei que ele tem razão. Não voltarei a ter paz se não solucionar esse caso. Mas... cego? Qual vantagem isso me traz? Eu sei a resposta: estou mais sensível, mais intuitivo e com ouvidos mais atentos.
No regresso para casa, caminhando, repassei na minha mente, mais uma vez, todo o caso. Quantas vezes havia feito isso? Centenas? Quem sabe milhares...
Laura e Diogo eram um dos casais mais conhecidos da cidade. Advogados brilhantes, cursamos juntos o curso de direito. Sempre fomos grandes amigos, de certa forma inseparáveis. Os dois nos apaixonamos por ela, fui o preterido. Resolvi então casar-me com minha profissão, seguindo o exemplo do meu tio. Eles fizeram carreira como criminalistas. Eu fui para a polícia civil, ser delegado. Nossa amizade seguiu por décadas, até o dia do assassinato.
O caso insolúvel começou, só hoje percebi, quando Diogo estava em uma viagem longa pelo exterior, quando foi colocar em prática sua decisão de abrir um escritório em Portugal. Nessa temporada em que estava sozinha, visitei Laura algumas vezes. Certa noite, recebi uma chamada dela. A casa havia sido invadida. Fui imediatamente, enquanto alertava meus colegas. Cheguei primeiro, a casa em silêncio. Aguardei, minha visão noturna estava a zero. Mas eu sabia que a espera poderia aumentar os riscos de uma tragédia. Meu instinto falou mais alto e entrei pela porta aberta, com sinais de arrombamento, e, no segundo andar, vi uma fresta de luz. Guiei-me por ela enquanto subia as escadas, arma em punho. No quarto, de onde vinha a luz, vinha também um ruído, uma espécie de gemido agudo. Eu tinha poucos segundos, tomar a decisão errada significaria colocar a vida dela, e a minha, em risco. Nesses segundos de indecisão, acendi mais ainda meus ouvidos, àquela altura aguçados pela pouca visão. Abri lentamente a porta e pude escutar, claramente, que ali havia estava apenas uma pessoa, em absoluto silêncio. Os gemidos eram do Luk, o cãozinho do casal.
— Laura?
— Francisco?
Não havia mais ninguém na casa. O episódio nem de longe teve a gravidade que poderia ter tido. A casa teve alguns pertences roubados, coisas de pouco valor. Nada de mais importante aconteceu, o caso foi tratado como um assalto comum. Diogo apressou sua volta do Porto, em uma semana retornou para o Brasil.
Alguns dias depois, quando tudo naquela casa havia retornado à normalidade, ocorreu a tragédia. O telefone tocou, atendi quase sem querer.
— Francisco, estamos sendo assaltados de novo— ouvi de uma voz conhecida, mas que não reconheci.
Quem é? — perguntei
— É o Diogo!
Cheguei em 15 minutos, depois de uns policiais que faziam ronda por perto. Vi, estupefato, o corpo de Laura no tapete, sua cabeça mergulhada em sangue, já escuro.
Tudo nos fez crer que foram os mesmos assaltantes do episódio anterior. Sabiam que o marido não deveria estar em casa, pois foram surpreendidos com sua presença, atiraram, uma só vez, e fugiram. O tiro foi certeiro, no olho de Laura, ela morreu ali mesmo.
— Eu havia te chamado, não deveria ter descido. Ela veio atrás de mim, eu não vi, só quando ouvi seu grito soube que havia me acompanhado — explicou Diogo, voz no diapasão do medo, assustado.
Naquele momento, tive a nítida sensação que aquela voz havia matado aquele corpo. É que ouvi um timbre calmo, aparentando nervosismo.
Mas, dessa vez, a audição aguçada não funcionou. Eu o conhecia bem, sabia o quanto ele amava Laura, nunca faria isso. Minha razão descartava totalmente a acusação feita pela minha intuição.
A reputação de Diogo era altíssima, nunca foi achado motivação, ele não foi considerado suspeito. De mais a mais, a casa havia sido recentemente assaltada e a arma, deixada ao lado do corpo, tinha apenas duas impressões digitais. Uma do Diogo, perfeitamente explicável: apenas no dia do assassinato perceberam que a arma havia sido roubada no primeiro assalto. A outra digital não foi identificada.
O caso nunca foi desvendado. Já são três anos.
Com a morte de Laura, Diogo mudou muito, eu também. Desde então, muito pouco nos vimos. Ele não suportou o golpe, nunca mais trabalhou, passa o dia em casa ou viajando pelo mundo. Sua cota na sociedade do escritório garante uma vida sem problemas financeiros.
Eu não consegui retomar a motivação, hoje estou mais para uma sombra do que fui, vivendo com minha parca aposentadoria. Meu tio não se conforma com isso. Acho que eu também não.
Enquanto caminhava e repassava o caso, lembrava do meu tio. Nos teus defeitos tuas vantagens...
Mudei de rumo e fui à delegacia. Gomez gostou ao ver-me de volta, já fui avisando que estava só de passagem... Entrei na minha antiga sala e ocupei uma mesa vazia. Pedi outra vez todos os arquivos do caso, tirei minha inseparável lupa do bolso.
Desta vez apenas ouvi as gravações. O telefonema, os depoimentos posteriores. Perguntava-me porque não reconheci sua voz. O que havia de diferente nela? Ouvi também os poucos depoimentos do Diogo. Era claro que ali estava uma emoção fingida. Revi possíveis motivações, de fato não existiam. Os roubos, em um curto intervalo de tempo entre um e outro. Ninguém foi visto pelos vizinhos. Nenhuma outra casa foi roubada. Quase nada foi levado, e o objeto de mais valor, a arma, deixada na cena do crime na segunda vez.
Eu poderia, como todos, apenas relaxar e considerar um latrocínio. O caso só não havia sido encerrado por que não deixei. Ainda gozava de certo prestígio, mesmo fora de combate.
Resolvei ir, sem avisar, à casa do Diogo.
Toquei a campainha, ouvi passos suavemente mancos que aumentaram de volume até pararem. Foi o próprio dono da casa que atendeu. Surpreso com a visita inesperada, deu-me um aperto de mãos e ficamos por uns segundos na porta, até eu pedir para entrar. Não pude deixar de notar que as mãos que apertaram as minhas estavam levemente molhadas.
Devagar, quase cego, com minha bengala, cheguei ao sofá. Ouvi os mesmos passos mancos me acompanhando. Um grito abafado veio do segundo andar.
—Diego, sobe.
O dono da casa olhou imediatamente para mim. Mantive silêncio. Parece que vi suas faces enrubescerem.
— Já subo, tenho visitas.
Tentei conduzir o assunto para reminiscências passadas. Ele foi vago nas respostas, era possível ouvir um sorriso nervoso e a voz em um timbre vacilante. Outra vez ouço:
— Diogo, vem.
Era o suficiente, levantei e me despedi.
Voltei à delegacia. Passei a noite ali. O que ouvi na casa fez-me perceber algo diferente, algo que estava lá e não tínhamos visto. Crimes perfeitos não existem, é o que meu tio sempre me disse. Telefonei para os hospitais que haviam em São Pedro, cidade onde Diogo cresceu, consegui o número e telefonei para um antigo orfanato de irmãs de caridade, que ainda existe na região. Achei o que buscava.
Telefonei para a Polícia Federal. Sim, Diogo Cavalcante Pereira havia saído e regressado do Brasil nos dias que eles sabiam, já havia sido tudo apurado.
— E Diego Cavalcante Pereira, mesma filiação?
Uns minutos de silêncio.
— Está aqui nos registros. Saiu e nunca regressou.
Desliguei e murmurei: voltou, voltou sim!
Naquele momento, soube que havia resolvido o caso. Mas precisava checar. Mandei trazer o viúvo à delegacia. Chegou desprevenido, não dei tempo para ele raciocinar.
— Você está preso.
— Eu? Sob qual acusação?
— Assassinato da tua cunhada.
Ouvi ele engolir em seco e continuei:
— Você nunca se conformou por ter sido preterido por teu pai. Diogo e Diego, gêmeos univitelinos, idênticos, mas ele resolveu te deixar em um orfanato, com poucos dias de nascido. Achou que não poderia cuidar de dois, com a morte da tua mãe no parto. Escolheu o perfeito, deixou você por ter uma perna mais curta que a outra. Diogo nunca soube desse fato. Mesmo com todos os tratamentos que você fez, o problema persiste. Culpou seu irmão por ter crescido em um orfanato. Seguiu os passos dele à distância, acompanhou a família que o educou, seu tempo de faculdade e advocacia. Com tudo dando errado na tua vida, decidiu tomar o lugar dele, julgando que deveria ser teu. Traçou todo o plano, conhecia cada detalhe de sua vida, encomendou a invasão da casa, assassinou teu irmão em Portugal e regressou ao Brasil com seus documentos. Laura notou a diferença e, com o passar dos dias, fazia muitas perguntas. Você, sem saber como agir, desferiu o tiro, apressando o plano de sumir com ela. Depois, resolveu me chamar.
— Você está louco, como vai provar isso?
— Com tuas digitais, que estão na arma. As que julgávamos ser de outra pessoa na verdade eram do verdadeiro Diogo.
— Desgraçado, cego desgraçado.
— Sim, cego, mas com ouvidos que valem ouro.
Com o mesmo sorriso do meu tio no rosto, recordei-me dele. Sim, nos teus defeitos, tuas vantagens. Ou virtudes!
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro