O Mundo Perfeito
Eu vivia um inferno. A cada segundo do meu dia, tudo conspirava para o meu tormento ser o mesmo. Era o lixo barulhento do mundo contaminando meus pensamentos, querendo contato constante, olhar incessante, mentiras camufladas em sorrisos engessados, a falsidade na aparente hospitalidade, tudo imposto em regras contraditórias e nas quais eu não via finalidade. E isso era a vida que eu queria? Não, não mesmo! Essa era a razão do meu sofrimento. Até mesmo dormindo a perseguição era implacável, tornando minha noite um terror inconsciente permanente. Por que eu tinha que sonhar sempre com um roteiro que não me pertencia? Não havia paz no mundo por mim habitado, fosse dormindo ou acordado.
E, a todo instante, os riscos que eu corria eram persistentes, convictos de que me derrubariam, e eu dolorosamente resistindo. Até quando? Pergunta difícil porque nada parecia me conectar ao que todos diziam conhecer e ser o óbvio a fazer. O meu existir estava atrelado a outro universo, e ele em nada se parecia com aquele em que eu diariamente despertava, e nem seria assim. Quando encontrava meu momento perfeito, lá estava o cenário que escolhi, com os personagens que gostaria que estivessem próximos a mim. Todos os detalhes eram estrategicamente selecionados, todos presentes pelo tempo que eu quisesse. Era ali que eu encontrava paz para ser como sou, sem julgamentos, sem necessitar do consentimento daqueles que se apiedavam já ao me olhar.
Amigos? Não sei dizer se os tive em algum momento. Afinal, amigo persistiria e ficaria junto nas fases mais difíceis, não é mesmo? Eu estando nesse desajuste com tudo que era de mim esperado, quem se manteria ao meu lado? Não restou nenhum. Entraram e saíram sem desejar contato. Então, o lugar mais sociável era a minha casa, o meu quarto, os meus amigos imaginários. Só eles me apoiariam, incentivariam e me ajudariam a resistir quando tudo a minha volta estivesse para ruir. Mas, esse não deveria ser o meu paraíso? Deveria, mas nem assim eu me sentia plenamente seguro e reconfortado, pois temia, inexplicavelmente e a todo instante, perder esse momento de felicidade tão raro.
Como explicar esse meu jeito? Muitos me considerariam louco, outros diriam mimado ou abusado, mas a verdade é que alguns rituais, ditos manias, ajudam meu cérebro relaxar, amenizando a pressão, dando escape às tensões mais urgentes, só que ninguém assim entendia. Em função desse comportamento peculiar, tentaram me decifrar. Foi aí que surgiram siglas nem um pouco divertidas. Colocaram-me em um grupo nada específico, TEA. TEA? E nem me perguntaram se era chá que eu queria para amenizar o impacto dessa sentença, acredita? Mas o que definem como Transtorno do Espectro Autista, vejo como rotina, uma forma peculiar de organização, uma qualidade raramente apreciada, um diferencial desacreditado, um ponto de vista incomum e jamais valorizado. E por que isso deixaria de ser enriquecedor para se tornar ameaçador? Essa discrepância, ou melhor hipocrisia, era proveniente de uma empatia fajuta, dita da boca para fora, sem valor real no meu dia a dia.
Para completar, um outro T foi acrescentado a minha vida. TOC! Realmente, eu não queria bater nessa porta, mas foi necessário encarar o Transtorno Obsessivo Compulsivo, pois acrescentou preocupações a mais com meu zelo, minha integridade, meu sobreviver diante de tantas dificuldades. Pensei, com isso, estar mais vigilante diante de pensamentos tão aterrorizantes, mas enganei-me terrivelmente. Sequer conseguiria distinguir essa realidade alternativa e totalmente ilusória da que de fato estaria me afligindo. Apenas tudo pareceria perdido, até mesmo eu, ficando uma sensação de sumiço, de vazio infinito. Entretanto, essa opção ainda seria melhor do que se sentir um ovo podre, com sentimentos tão intensos e conflitantes. Nessas ocasiões, um lado totalmente negro emerge, controlando o meu pensar e tudo o que consigo sentir se resume ao medo, principalmente de mim. Foi dessa forma que inúmeras vezes quis colocar um ponto final nessa história, acabando com esse enredo que foge ao meu discernimento. Não sei como, uma luz persiste no fim desse túnel, vindo ao meu encontro, fazendo essa cegueira momentânea dissipar, permitindo que eu me reencontre. Não sei quando serei acometido por outra crise, mas acredito que dela dificilmente me verei livre.
Meu tempo para compreender e tentar absorver essas situações se tornou um desafio cruel e totalmente injusto, pois todos parecem nascer com o mecanismo correto de ajuste e eu seria aquele a apresentar uma avaria em um componente elementar. Um duelo voraz se estabelece, colocando-me, invariavelmente, em um abismo entre o real e o imaginário. Um novo cenário foi configurado, deixando que estranhos acessem minha essência, alterando-a enquanto eu assisto, impotente, ela ser maculada por quem quer que seja. É uma batalha dolorosa que não consigo evitar ou extirpar, mas luto incansavelmente para não me deixar apagar ou mesmo reprogramar.
Se houvesse uma explicação possível, será que ela me ajudaria, ou apenas tornaria o fardo irremediável? E, por que comigo? Por que as situações mais corriqueiras se transformam em cicatrizes horríveis? Um impasse fica perceptível diante de perguntas aparentemente inocentes. A sinceridade com a qual dou minha opinião nunca é uma qualidade apreciada, pois aborrece quem veio questionar-me. Frequentemente isso acontece e parece que nunca acerto, ficando todos comigo insatisfeitos pelo que eu nem imagino ter feito.
— Você gostou do meu corte de cabelo?
— Não! Você ficou com o rosto mais redondo. Estava melhor antes.
Quando relembro episódios assim, ainda não os compreendo, pois parecem exigir uma mentira descarada e, infelizmente, não sei agir assim. Logo, o afastamento se torna permanente ao perceberem que eu sou incapaz de usar os filtros sociais pertinentes. E se for para o lado irônico então, piorou. Essa sutileza não percebo, só se for expressa de forma caricaturada, e não é assim que ela costuma ser usada.
Por que todos julgam saber o que me faria feliz? Eles sequer percebem que eu absorvo tudo, mesmo não compreendendo o que está por trás de muitos de seus comportamentos. E aqui posso acrescentar que os risos são os mais difíceis de interpretar. Nunca sei se estão rindo para mim, de mim ou comigo. Além disso, tem uma mensagem que sempre fica perdida nas entrelinhas e que levam à interpretações distintas quando se muda apenas a entonação. Parece fácil, mas sempre tomo uma rasteira nesse quesito. Na primeira vez que isso aconteceu, algo soou confuso aos meus ouvidos. Eu entendia corretamente o significado de cada palavra e, ainda assim, interpretei de forma aparentemente errada.
— Você comprou isso?
— Sim.
Nessa ocasião, a pessoa continuou a me olhar, como se outra resposta eu fosse obrigado a lhe dar. A entonação estava levemente diferente na palavra "isso", onde fora dado mais ênfase, mas não entendi o que estava por trás daquilo. Havia algum julgamento moral contido ali, mas eu não compreendia aquela linguagem e um dano tornou-se evidente, pois a exclusão não fora piedosa ou benevolente.
Nas raras interações que consigo manter, o assunto abordado precisa ser do meu interesse, e aí me empolgo, penso que estou falando algo interessante, mas tardiamente noto um desencaixe, porque, de uma hora para outra, a pessoa com quem converso me interrompe dizendo que precisa ir embora. Em uma dessas vezes, alguém fez um comentário que foi difícil racionalizar.
— Você não percebeu que ele estava com pressa?
— Como eu perceberia?
— Pela maneira como ele olhava para os lados, para o relógio, estando inquieto enquanto lhe ouvia.
Nesse dia entendi que o corpo também dava indícios se você estaria agradando ou não. Chamam isso de linguagem corporal, mas é outra questão que não consigo identificar, reconhecer e decodificar. O resultado é uma crescente ansiedade, insegurança e depressão por ter falhado diante de uma oportunidade que tão cedo não deve se repetir. Juro que tento, mas só sobra confusão e ferimentos dessa infrutífera experiência.
Eu não tenho como remediar tantos danos que uma única tentativa de interação social é capaz de me causar. Eu penso que, se você ama falar de um determinado assunto, é normal se empolgar quando lhe é dada a chance de se pronunciar. Há o estímulo inevitável, a empolgação crescente e, de repente, ninguém mais parece acompanhar o meu acalorado modo de me manifestar. Sinceramente, a palavra frustração se torna extremamente pequena para definir a minha impotência diante dos resultados advindos dessa incongruência.
Algumas pessoas se dispuseram a me auxiliar, tentando criar melhorias para as dificuldades que elas conseguiam detectar. E, um assunto parecia ser de senso comum. Todos diziam que eu deveria ter um animal de estimação, que iria me ajudar na interação, na forma de se relacionar e na carência que eu tinha de uma companhia, de um amigo para conversar. Mas qual bicho eu escolheria? Cachorro ou gato? Eu não sabia. Fui pesquisar o comportamento deles e foi quando percebi que teria problemas, com ambos. Os cachorros porque são carentes demais, latem, querem atenção constante e demonstração de afeto intenso. Já os gatos, são independentes, com seus interesses bem definidos e priorizados, dando atenção quando e a quem querem. Eles se parecem muito comigo, então, qual seria o benefício? Desisti dessa ideia quando soube que, além de escolher o animal, também teria que cuidar da higiene, alimentação, defecações e mijos pela casa, fora o bom comportamento que teria que ensinar para que nada fosse danificado. Sem chance! Cuidar de mim já me dava trabalho demasiado.
Minha sensibilidade sensorial é outro fator de atrito. Quando um estímulo sonoro, visual, tátil, gustativo ou olfativo ocorre e não é o desejado, isso me perturba, se tornando uma sessão de longa tortura. Infelizmente, eu não tenho poder algum para mudar isso. As pessoas parecem possuir algum gene programado para estarem sempre agrupadas, falando alto, gesticulando para todos os lados, indiferentes aos incômodos que tanto me desequilibram. Além disso, elas não são transparentes com o que pensam e sentem, pois percebo que elas reclamam de tudo: da vida que levam, da rotina que carregam, do tempo que nunca é suficiente para o lazer, do trabalho que é sempre visto como um carrasco, da aparência que tem e o desejo de ser um clone de alguém e, analisando tudo isso, o esquisito sou eu?
Só que ninguém imagina como seria ser eu por um dia. Seria triste, solitário e angustiante, pois o repúdio gratuito sempre me fora constante, incompreensível e, por isso, minha trajetória social estava marcada por memórias emocionais trágicas. Tento deletá-las, mas elas me assombram como fantasmas, rompendo a estabilidade que tão dificilmente tento alcançar.
Por isso, fazia um tempo que eu estava descrente da vida, das possibilidades que teria para me tornar alguém produtivo, tendo êxito e felicidade mesmo convivendo com minhas dificuldades. E, quando já me achava definitivamente encarcerado no fosso dessa existência, surge uma pandemia. Agora todas as pessoas desse planeta precisariam se isolar, criar hábitos de interação diferentes, manter rituais rígidos de higiene e proteção, respeitar o outro para melhor a situação de todos. Será que, sob essa nova forma imposta de viver, as pessoas conseguiriam entender o que sempre fora meu jeito de ser?
Sei que todos temem a doença, a morte que ela indiscutivelmente hoje representa, mas eu já convivia com tudo isso antes desse novo vírus aparecer. Então, não foi o medo que em mim floresceu, mas a esperança de me ver inserido, de forma compatível, no mundo em que vivo. Seria um recomeço, uma nova jornada, onde se incluiria respeito, cordialidade, empatia e generosidade, curando a humanidade de seus maiores males. E, se assim vier a ser, seria o que de mais perfeito e libertador eu poderia querer.
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