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O medalhão tribal dourado

A noite de lua cheia ilumina a fazenda Jatobá. Paola está no quarto, sentada na cama, e estala os dedos com intensidade. Sirius aproxima-se da janela e as folhas no chão não se mexem. A voz encorpada e rude destoa da mulher de feições delicadas, cabelos sedosos e olhos cativantes. De repente, ela apaga a luz, deita-se na cama, e o choro incontido mostra o quarto escuro da sua alma. 

Sirius fica de sentinela. Ele escuta o balanço das águas do rio e um barulho chama-lhe a atenção. Uma criança tenta se comunicar com a Paola. Chega bem perto dela e cochicha no seu ouvido. Enquanto isso, lágrimas quentes machucam o seu rosto. Depois de um tempo, deixa o quarto e se dirige à porta de entrada da casa. Antes de sair, olha para os lados e corre em direção à estrada. 

A escuridão, a umidade e o cheiro de mofo fazem a Paola tossir e prejudicam a sua respiração. Passos firmes vêm na sua direção. Mãos com tatuagens nos dedos a atacam. Ela abre os olhos, amassa a boneca de pano e se encolhe no canto da cama. Balança os pés, cruza os braços e vocifera: "Paola, por que você sempre acorda no clímax do sonho?"

Depois do café da manhã, ela toma um banho no rio. O sol está fraco, são 6 horas, e ela se delicia com as águas do Prata. Nadar refresca a sua mente e revitaliza o seu corpo. Paola acha o maior luxo ter o rio só para si. A solitude a estabiliza e fortalece. Nas últimas braçadas, o Prata é "invadido" por várias pessoas. Ela cumprimenta os vizinhos, pega a tolha e vê um objeto brilhante no chão: um colar com um medalhão tribal dourado.  

Paola volta para casa correndo. Ela chama pela mãe e não tem resposta. Depois que o seu pai morreu, a mãe não é mais a mesma. As flores, o jardim, o pomar e as galinhas sentem falta dela. O celular toca, e uma voz divertida provoca:

— Oi, Princesa! São 8 horas. Liguei mais de mil vezes! Estou na cidade e você acordando tarde, o que é isso?

— Oi, Davi! Estava com um príncipe encantado. Por que você me acordou?

— Sei que não saio da sua cabeça. Mas, acalme-se ... você também não sai da minha. A saudade está me matando. E o pior, baixinha, é que faltam seis meses para o curso acabar. A tecnologia ajuda muito, mas não engana o coração. 

— Não sabia que era tão romântico. A distância faz milagres! — Risos.

— Como você está? E a Rose?

— Estamos indo. A mãe anda bem desanimada. 

— Mais tarde, ligarei para ela. Comporte-se, juízo e não se esqueça de mim. 

Paola pega uma maçã e senta-se no banquinho da copa. A vida está sem graça na ausência do pai. Ela sorri com os olhos ao recordar-se das manias dele: dormia com meias, mesmo no calor; comia miojo com doce de leite e bolo branco com queijo e mortadela; temperava os pratos salgados com pimenta e os doces com canela. Um homem passa por ela com um punhado de dinheiro na mão e a ameaça:

— Belezura, fique quieta. Finja que não me viu. Vou deixar você em paz, mas não dê com a língua nos dentes, ok?  — Paola fica parada, segurando o talo da maçã na mão. — Peraí... você se lembra de mim? 

— Não! Eu deveria?

— Não sei. O seu olhar é de quem me conhece. Eu acho que me recordo de você. Na época, não me chamou a atenção. Nunca fui chegado em crianças. — Mostra o canivete, torce as pontas do bigode retrô, sorri e sai.

O cheiro de umidade e de mofo dominam o ambiente, e Paola quase perde os sentidos. O seu dedo indicador direito começa a pulsar. Ela atira o talo na mesa e entra no quarto da mãe. Rose está machucada: nariz sangrando e a roupa rasgada. As duas se abraçam, e a filha indaga:

— Mãe, o que aquele monstro fez?

— Dessa vez, nada. Eu reagi, peguei o vasinho de flores e joguei na cabeça dele. O desgraçado roubou o dinheiro que estava na minha carteira.  

— Como assim? Ele já a agrediu outras vezes? — A Rose olha para baixo, coça a cabeça e suspira. 

Paola sabe que a mãe não abrirá o jogo e a respeita. Vai ao banheiro e pega a caixinha de primeiros socorros. Por sorte, os ferimentos são superficiais. Rose recusa a ajuda da filha para tomar banho. Paola avisa que fará o almoço e pede para a mãe repousar. 

Ela lava os tomates e os coloca na panela para ferver. Enquanto isso, uma voz masculina, vinda da casa ao lado, a transporta para o sonho não finalizado. As mãos tatuadas, com números, são as mesmas que ela viu a pouco. "Belezura... você não se lembra de mim? Nunca fui chegado em crianças, por isso você não me chamou a atenção." O barulho da água fervendo a chama para o presente. 

O molho de tomate, apesar de caseiro, está salgado. O macarrão não apetece: fica empapado, tipo "unidos venceremos". Mãe e filha se soltam um pouco e se divertem com tanta trapalhada. Paola percebe o abatimento da Rose e sabe como animá-la: jogar buraco até ela cansar e a deixar ganhar, é claro. 

Depois do jogo, Rose toma o seu remédio para depressão e se recolhe. Paola troca mensagens com Davi. O tempo parou desde que ele deixou a fazenda. Os dias são todos iguais, com exceção de hoje. Algumas inquietações, até então adormecidas, a perturbam: deve ou não aceitar a sua conexão com o mundo espiritual (premonições, visões e conversas com espíritos) e auxiliar quem a procura nas suas questões mal resolvidas? É correto abafar os seus dons? O que é mais sensato fazer? Por que o medo a paralisa tanto? O que o tatuado fez de tão terrível que bloqueou a sua mente?

A cabeça da Paola fervilha. Uma sopa de letrinhas, sem sentido e movimentada, toma conta do seu pensamento. Ela faz um chá de melissa, toma um banho morno e se prepara para dormir. A criança, da noite anterior, reaparece. O menino está ainda mais agitado e implora:

— Eu não sei quem é você. Acho que é um anjo. Por que não me ajuda? 

— Meu nome é Paola. Sou de carne e osso. E você, é deste mundo?

— Ué, sou. De onde eu seria? De Marte? Não sou robô, nem anjo ou qualquer outro tipo de coisa. Então, sou de "carne e osso". — Ele esboça um leve sorriso. — Não entendo por que não quer me socorrer. Só você pode me ajudar!

— Por que diz isso? Cadê os seus pais?

— Antes de eu nascer, o meu pai morreu. Minha mãe se casou para não ficar sozinha. Sinto arrepios só de pensar no meu padrasto. Ele é do mal. Nem sei como estou aqui. Ele tranca a casa e não nos deixa sair. Chega bêbado, bate em mim e depois despeja o resto da raiva na mamãe. Qualquer hora ele nos matará. 

— Os seus irmãos também apanham?

— O meu irmão mais velho desapareceu. O "Tosco", como gosta de ser chamado, conta que ele fugiu. Não acredito nisso. A mamãe está triste e fraca: passa o dia parada, não toma banho e nem come direito. 

— Eu conheço o "Tosco". Tenho medo dele e não sei como você aguenta viver num inferno. Não sei o que vou fazer, mas pode contar comigo. Quer dormir aqui?

— Não. É melhor eu voltar para casa. Ele bebeu e está roncando. Será pior se ele acordar e não me ver por lá. Conto com você. Não me abandone.

— Qual é o seu endereço?

— Moro na casa abandonada, a "igrejinha", do lado da ferrovia. Sabe qual é? E só para você saber, me chamo Tom. 

— Sei. Vou ajudar vocês. Tom, só tenho que descobrir como. 

Tom sai e a Paola o vê na companhia de um lobo cinzento. Ela não consegue pregar o olho. Cenas desencontradas passam pela sua cabeça. Ela pequena, num lugar escuro, o cheiro de mofo, a falta de ar e o "Tosco" violentando a sua mãe. A Rose, sempre que o via, pedia para a filha se retirar e ir brincar. Não entendia a razão de a mãe suportar aquela violência calada. Agora ela entende: a Rose estava, por algum motivo, protegendo a família. 

O lobo para na frente do quarto da Paola. A janela começa a bater, e ela o vê. Sirius, abaixa a cabeça, dobra as patas dianteiras, olha para a lua e uiva. Ela assiste a tudo com os olhos marejados. A sensação que tem é que pode confiar nele e na sua sabedoria. Olha para ele e afirma:

— Não sei o que me diz. Contudo, seria maravilhoso entendê-lo. Sinto que você é um ser de luz. Um guia espiritual que me mostrará como utilizar as minhas habilidades. — Ele inclina a cabeça e, ao invés de uivar, começa a falar.

— Paola, o meu nome é Sirius. — Ela arregala os olhos e fica de queixo caído. — Sou um mensageiro espiritual, faço a ponte entre os dois mundos. Fui atraído pela sua energia vital. Você é um canal aberto para o mundo anímico. A sua disponibilidade me trouxe até aqui. 

— Tenho tantas coisas para te perguntar. A primeira delas é como estamos conversando? Os nossos meios de comunicação são diferentes: você uiva, eu falo. Como isso é possível?

— A resposta está no seu peito. 

— No meu peito? Acho que está querendo dizer no meu coração?

— Não. No seu peito. 

— Continuo sem entender.

— O que acha do medalhão dourado? 

— Ele tem poderes mágicos?

— Sim. 

— E quais são?

— Poderes de materializar pedidos. 

— Hum... então quer dizer que só estou me comunicando com você por causa do pedido que fiz?

— Exatamente. 

— Não é perigoso ele cair em mãos erradas?

— É. Ao longo dos milênios, os humanos se utilizaram dos poderes do medalhão de forma egoísta, violenta e destrutiva. 

— Ele não atiça a ganância humana? 

— Ela existe com o medalhão ou não. A magia dele, supostamente, facilita as coisas. No fim das contas, com magia ou não, o ganancioso faz qualquer coisa para atingir os seus objetivos, inclusive matar os seus semelhantes. 

— Sirius, o medalhão revela o caráter das pessoas?

— Isso mesmo. O seu detentor decidirá se o poder dele será usado para o bem ou para o mal. Os pedidos poderão reverter em favor da individualidade ou da coletividade. 

— Como o medalhão chegou até a mim?

— Ora, você sabe como foi. Ele estava ao lado da sua toalha na grama. 

— Você o colocou lá? 

— Coloquei. Eu senti a chama da vida e o deixei lá.

— E se eu não o encontrasse? O que aconteceria?

— Outra pessoa, com a mesma energia psíquica, o encontraria. 

— Você protege o Tom, não é mesmo?

— Sim, na medida do possível. Todavia, ele precisa ser ajudado por uma pessoa. No caso, você!

— E qual será o nosso plano para salvá-lo?

— A tática é simples, porém difícil de ser seguida à risca. O sucesso da empreitada dependerá do seu bom senso, ou seja, da sua habilidade em saber o momento de usar ou não o medalhão. Além disso, os seus pedidos devem ser materializados em prol do bem comum. Logo, preste atenção: o que manifestar será prontamente atendido e inexistirá a possibilidade de arrependimento. 

— Não me sinto preparada para esse desafio. Entretanto, entendi o meu lugar no mundo e cumprirei a minha missão. Amanhã, o aguardarei aqui para irmos ajudá-lo. Combinado?

— Paola, descanse. Amanhã será puxado e exigirá muito de você. 

O dia, ao contrário do esperado pela Paola, passou rápido. Anoitece e ela leva o jantar para a mãe.  A Rose mal toca na sopa de aspargos, sua preferida. Elas conversam, e a filha se despede dando um abraço na mãe. Os remédios a deixam sonolenta e indisposta, porém acalmam o peso suportado pelo seu coração. 

O Sirius a espera debaixo do Jatobá. Ela passa a mão na sua cabeça, se agacha e abraça o seu pescoço. Os dois caminham, em silêncio, pelos 3 km. Ela toma um banho de lua cheia que a encoraja e renova as suas ideias. Na entrada da "igrejinha", a Paola diminui o ritmo. Ela junta as mãos e pede o auxílio dos céus para agir com sabedoria, amor e respeito. Olha para o lado e não vê o lobo. 

Ela bate à porta, e o Tom a recebe. Sentado, com uma garrafa de cachaça na mão, o "Tosco" mal a reconhece. Ele coça os olhos e não perde a oportunidade de debochar:

— Belezura, você é medrosa como a sua mãe. Quem sabe depois a gente se entende? Detesto decepcioná-la, mas a "Gorda" está nas últimas.

— "Tosco", onde ela está?

— Não me lembro. Tomei tantas que não sei de mais nada. 

A mulher está no chão, sem roupa, com vários ferimentos de cigarro e cortes de faca pelo corpo. A sua respiração está fraca. Paola pede pela cura da família e para que o perdão se instale definitivamente no relacionamento deles. 

Um feixe de luz ilumina a casa e todos são envolvidos por ela. O homem e a mulher estão abraçados. O Tom está do lado do Sirius. Do lado de fora, uma alcateia uiva e o som é cativante. Dessa vez, a Paola não sabe o que eles dizem, ela entregou o medalhão para o seu guardião.

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