O dia que não terminou - Por: Laércio
Álvaro tem 26 anos, trabalha no Instituto de Física da Universidade Federal Fluminense e ama poesia. Ele é baixo e magro, de cabelo crespo e olhos encovados. Possui lábios finos e nariz afilado, esse último disfarçado pelos óculos grandes de lentes grossas. Mas sua principal característica é a timidez. Álvaro é muito tímido.
Nestes tempos de pandemia sua vida continuou igual, ele que vive em isolamento social desde que se entende por gente. Não conheceu o pai. A mãe, bancária, faleceu mês passado, vítima da Covid. Com a perda da mãe a vida tem sido um recomeço difícil de administrar, mas a rotina não se alterou, segue sendo entre laboratório e casa, relativamente pertos um do outro.
Quando no trabalho, dedica-se ao estudo da física quântica, obcecado em dar seguimento aos trabalhos de Heisenberg, principalmente o laureado Princípio da Incerteza. Quando em casa, sua principal ocupação é ler poesias. Está aprendendo a cuidar do lar e do Thierry, o gato da mãe, com o esmero possível. Mas não gosta que esses afazeres ocupem muito do seu tempo. Prefere dedicá-lo à poesia, principalmente à leitura de Fernando Pessoa, seu poeta favorito.
A relação com o poeta português é antiga, ele ainda estava no Ensino Médio quando, passando por um sebo, viu uma edição do "Eu Profundo e os outros Eus". O título chamou-lhe a atenção, por cinco reais comprou o livro. De brinde, quase por acaso, ganhou o que considera sua joia mais preciosa: o gosto por poesia. Devorou o livro, leu repetidas vezes. Passou noites e noites lendo Tabacaria, o mais famoso poema de Pessoa, até decorar seus 165 versos. Dizia que precisava ter esse poema consigo, sempre que o necessitasse, por isso a avidez em retê-lo na memória.
Não é exagero dizer que Fernando Pessoa é o melhor amigo deste estudante de física, com certeza ele não se molestaria com essa afirmação. Mas existe uma confidência que ele não gostaria que contássemos, que ele não compartilha com ninguém.
O segredo que Álvaro guarda em cofre vermelho é a paixão por Sara, surgida ainda na graduação. Segredo administrado com tanto cuidado que nem o observador mais atento nota que a postura curva se faz mais ereta e os olhos piscantes piscam mais acelerados quando Sara entra no laboratório. Ela é alta, bonita, cabelos curtos e olhos castanhos. Uma mulher segura e extrovertida, que provoca um reboliço interno no Álvaro, controlado com muita arte, apenas revelado pelos breves movimentos que descrevemos.
Feita essa introdução, vamos ao fato que nos estimula a escrever essa história, para que registrada fique. Há exatos sete dias, em 12 de junho de 2020, Álvaro não suportou a solidão. Nunca antes o dia dos namorados havia sido uma data significativa para ele. Mas abalaram suas fibras a ausência da mãe e a menção de Sara, quando se despediram, de que teria uma noite de fazer jus à data. Foi para casa cabisbaixo, odiando aquele amor, caminhando e, como sempre, recitando Tabacaria em voz inaudível. Era noite quando resolveu regressar ao trabalho. Convenceu-se que necessitava terminar uns experimentos, mas a razão principal era outra: a casa, os livros e o gato não mostraram-se capazes de impedir a ida ao fundo do poço. Fingiu que precisava ir ao laboratório. Mesmo na quarentena, alguns profissionais seguiram trabalhando, haviam pesquisas que não poderiam sofrer solução de continuidade.
Pois justo naquele dia o subchefe do Instituto foi trabalhar em um projeto ultra secreto, no qual estava envolvido há três anos, sem que ninguém, nem mesmo o reitor, soubesse de sua existência. A escolha de uma sexta-feira à noite, dia dos namorados, deu-se porque um contato importante precisava ser feito e, para isso, o laboratório deveria estar vazio.
Em síntese, o projeto consistia em uma possibilidade de viagem no tempo. Sim, eu sei que esse assunto vem à tona recheado de descrédito. Mas dessa vez era diferente. Apenas cinco laboratórios em todo o mundo estavam envolvidos nessa tentativa, que emergiu por acaso, no bojo de estudos sobre realidade virtual. A busca inicial era por um óculos que permitisse ao usuário ter vivências agradáveis sempre que desejasse fugir da realidade.
Ocorre que estudos confirmaram que alguns animais possuem a capacidade de, em momentos de extrema tensão, transportarem-se a situações vividas, buscando a serenidade necessária para fugir da presa ou mesmo ter uma morte digna. Não vou, agora, deter-me em contar por qual via chegou-se a essas conclusões.
Assim, esse óculos de realidade virtual foi desenvolvido apenas com elementos biológicos, buscando aproveitar essa capacidade de algumas espécies. Foram utilizadas fibras de teias de aranha, globos oculares de formigas, células epiteliais de salamandras e outros materiais do gênero. Imaginava-se, com esses materiais, potencializar o obtido pelas vias normais para feitos dessa natureza, à base de chips eletrônicos e trânsito de dados por satélites ou cabos.
Mas o resultado obtido por esses insumos extrapolaram qualquer previsão. A causa ainda está sendo buscada, mas o efeito, visto primeiro em ratos e coelhos e consolidados no fim do mês passado em macacos, não permite dúvidas: o óculos transporta seu usuário no tempo. Primeiro, notou-se que o uso em cobaias as faziam desaparecer. Reapareciam exatas 23h57 minutos depois. Uma recontagem das cobaias, feitas através das câmeras do laboratório, mostravam que elas iam e voltavam no tempo. Um hamster, com o óculos, desaparecia, a contagem de ratos dos dias anteriores era refeita e, em determinada data, achava-se uma cobaia a mais, na fita gravada. Sim, isso mesmo, a alteração plasmava-se no filme. Outra vez vou pular as explicações precisas, mas a base encontra-se no citado Princípio da Incerteza, objeto de estudo do protagonista desta história.
Tudo isso o Dr. Soares teve que contar ao Álvaro. Ocorre que ele, ao entrar na Faculdade, ouviu do segurança:
— Veio trabalhar com o Dr. Soares?
— Sim, vim – respondeu, sem saber o que dizer.
Achando rara a situação, aproximou-se pé ante pé da sala onde o doutor estava e pôde ouvir a conversa com um colega tailandês, sobre os resultados com macacos obtidos nos últimos dias. E ainda ouviu, em perfeito inglês:
— Agora temos que entregar todos os resultados. Os experimentos seguem, com humanos, sob a supervisão dos militares. Eles não irão abrir mão desse novo poder.
Dr. Soares desligou o telefone, abatido. Álvaro entrou na sala, perplexo:
— Você ouviu nossa conversa? – perguntou, sem mostrar sinais de preocupação. Estava abalado demais para isso, além de saber que aquele discípulo não era uma ameaça. Prosseguiu
— Dediquei cinco anos a esse projeto. Agora não posso ver sua consagração.
— Mas... professor, isso não é justo!
— Te ensinei muitas vezes que o mundo não é justo...
— Também ensinou a nunca deixar algo pela metade.
— Não é o caso, cheguei ao fim.
— Não, não chegou.
Silêncio. No rosto do discípulo, expectativa, no do mestre, decepção.
— Eu estava seguro que conseguiria mandar alguém a outro tempo e espaço.
Mais silêncio...
— O senhor sabe como fazer?
— Sei.
— Por que não fazemos?
— Não estou preparado para isso.
Álvaro refletiu sobre o que estava em jogo, o que perderia, quais danos colaterais adviriam de uma decisão dessa e concluiu:
— Eu estou!
— Você?
A conversa prosseguiu. À medida que avançava, se mesclavam tensão e expectativa.
— Meu filho, escute bem. Você só tem um dia para ficar fora. Escolha um, só um dia e local para visitar.
O jovem não titubeou: Lisboa, 14/01/1928, ao meio dia.
— Mas e o futuro? E o passado mais remoto?
— Professor, quero estar na casa de Fernando Pessoa, nesse dia.
Não havia tempo para controvérsias. Visitas inconvenientes poderiam chegar a qualquer momento.
Não foi difícil encontrar as coordenadas exatas do destino desejado. A preparação durou poucos minutos.
Sentado em uma simples cadeira, colocou os óculos ao rosto, similar a um de natação, pequeno. A contagem regressiva começou em sessenta.
— Não se esqueça, um pouco menos que um dia. É uma corrida contra o tempo. Basta você sentar nessa mesma posição e colocar os óculos, acionarei os computadores nesse horário, você voltará.
A máquina contava: trinta, vinte e nove...
— Professor, se eu não regressar, cuida do Thierry por mim.
Cinco, quatro, três, dois, um.
Álvaro não ouviu a resposta. Apenas viu-se em uma cidade, com ares da Lisboa que ele buscava. Extasiado, começou a olhar ao redor. Seus olhos debruçaram-se em uma placa, sobre um pequeno negócio: Tabacaria. O coração disparou. Olhou para o lado oposto da rua, viu uma janela, pelo vidro pode divisar uma silhueta, camisa branca e colete, óculos de aramado fino, cabelos curtos e bigode bem aparado. Sim, aquele era Fernando Pessoa.
Álvaro escolheu estar lá no dia em que o poeta escreveu seu poema mais famoso, por muitos considerado o melhor poema do século XX: Tabacaria.
Ficou ali, parado, coração pulando forte, sem acreditar no que estava vivendo, sem saber o que fazer.
Em poucos minutos, percebe que o pequeno abrigo carioca que vestia não o ajudava no inverno Lisboeta. Olhou o relógio e viu que eram 12h15min. Lembrou-se de um dos conselhos do professor e buscou a Igreja mais próxima. Procurava um casaco que o abrigasse, do frio e dos olhares curiosos sobre suas roupas. Quando na fila, viu que era observado por um Padre. Teve a sensação que iria ser abordado e sabia não estar pronto para responder muitas perguntas. Quando viu aquele homem alto, de batina, aproximando-se, olhar inquisidor, apavorou-se. Não havia mais tempo para fugir. Tentou buscar o que fazer, sentiu que seria descoberto, os crimes perfeitos nunca existem. Lembrou-se de uma história que havia lido, onde o idioma estrangeiro fez-se o disfarce perfeito e, antes que definisse como agir, foi trazido desta lembrança por um boa tarde.
— Sorry, I don't speak portuguese, — respondeu.
— Esses ingleses são mesmo estranhos — ouviu o padre murmurar, virando as costas.
Alívio!
Depois de ganhar comida e um sobretudo, pediu às irmãs de caridade, entre gestos e um inglês pobre, algum dinheiro para regressar à sua cidade. Pronto, missão cumprida, agora poderia prosseguir com o plano.
Saiu dali e foi direto ao Chiado, bairro do Café A Brasileira, onde sabia que o poeta passava parte das tardes. Uma fotobiografia de Fernando Pessoa, que ele folheara tantas vezes, o situava relativamente bem na capital lusitana.
Sentou e pediu um café. Não havia passado ainda uma hora quando viu o poeta entrar, dirigir-se ao garçom, entregar sobretudo e chapéu e sentar-se em uma mesa do salão, quase ao seu lado. Reparou que a fisionomia do poeta demonstrava preocupação, tristeza, angústia. Sentia tanto amor pelo personagem que estava em frente a ele, gostaria de ajudar de alguma forma. Impressionou-se com sua fragilidade física. Pensou em todos os versos que Pessoa compôs. Em como aquele homem conhecia a alma humana, como expressava o que ele, e tantos outros, gostariam de expressar, de forma tão precisa, usando as palavras com tanta poesia.
Nesse momento, nosso jovem chorou. Agradecia à Física, essa ciência que estuda as entranhas da matéria, a possibilidade de estar ali, junto àquele poeta, que tão bem conhece as entranhas da humanidade, em seu sentido mais pleno. Secou as lágrimas, sorrindo ao perceber a repetição do termo e viu, pela primeira vez, quão próximas eram suas paixões: a Física e a poesia.
— Sim, tratam de entender o profundo, o não visto à primeira vista, as verdades não antes verbalizadas.
Pensou em voz alta, sem querer, pois o vizinho de mesa respondeu:
— Poeta?
— Não, não senhor.
— Pois parecia estar a recitar uma poesia.
Álvaro, sem pedir licença, passou à mesa do poeta, apresentando-se como professor brasileiro, de férias por Lisboa. O poeta respondeu com monossílabos, parecia arrependido por ter puxado assunto. Estava ainda sisudo, introspectivo. Fez-se silêncio na mesa. Um não sabia o que dizer, outro não estava disposto a falar.
Naquele instante, Álvaro, de forma automática, começa a recitar Tabacaria. No terceiro verso é interrompido pelo olhar atento do novo velho amigo. Baixa os olhos, envergonhado, e cala-se.
— Repita, por favor – fala o poeta.
O brasileiro fica aterrorizado. Diante do olhar inquisidor, repete o que havia dito:
Não sou nada.
Não posso querer ser nada.
Nunca serei nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Nesse momento, aproxima-se uma mulher da mesa. Era Sara! Álvaro fica apavorado. O que ela estava fazendo ali, com roupas daquela época, com aquele corte de cabelo? Teria sido também transportada?
— Essa é minha amiga Lídia — apresenta Fernando Pessoa.
— Muito prazer — responde Álvaro, gaguejando e fazendo uma ligeira mesura com a cabeça.
Lídia senta-se e o poeta, quase imediatamente, pede licença.
— Mas combinamos esse café.
— Não posso ficar, tenho que ausentar-me.
Disse isso e dirigiu-se ao garçom, pediu o mesmo de sempre para a senhorita, pagou a conta, pegou chapéu e casaco e retirou-se, apressado.
— Foi algo que falei? — perguntou Álvaro.
— Não, Fernando é assim, estranho.
Desfeito o mal estar inicial, começaram a conversar alegremente. Ele tirou da cabeça a ideia daquela moça ser Sara, mas não pôde deixar de impressionar-se com as semelhanças. Ele é que estava diferente. Nunca havia se visto assim: falante, eloquente, até engraçado. Não se reconhecia, onde a timidez? Onde antes o gelo, agora via só fogo em seu comportamento. Teve muita vontade de beijar a nova amiga ali mesmo, no Café, mas conteve-se.
Algumas horas passaram-se, Lídia levanta-se para ir embora, Álvaro oferece-se para acompanhá-la, caminhando, baixo o frio da noite, até a casa do poeta, o mesmo lugar por onde algumas horas antes havia adentrado nesse portal do tempo.
Chegaram na casa e Lídia apenas informou, ar de aborrecida, que convidou seu amigo para um chá, indo direto à cozinha. Na sala, em pé, o poeta escrevia sobre uma cômoda. Por vezes lia alto, deixando o visitante extasiado.
Em dado momento, Álvaro não se contém e dirige-se à sala, falando em voz alta:
Que sei eu do que serei,
Eu que não sei o que sou?
O Poeta ouve, excita-se e põe-se outra vez à escrever. O físico regressa à cozinha, não sem antes deixar no ar:
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
E assim transcorreu a madrugada do dia 14 para 15 de janeiro de 1928! Enquanto Fernando escrevia, Álvaro ouvia, não resistindo a estimular versos, colocando-os ao alcance das mãos que grafavam céleres, tentando capturar corretamente a poesia que bailava ao seu redor.
No dia seguinte, os três já eram grandes amigos. Fernando, Lídia e Álvaro. Acordaram tarde da noitada poética e decidiram almoçar um bom cozido português, na rua Augusta, regado a um tinto do Alentejo.
Eram 11h54min quando Álvaro olhou o relógio pela última vez e discretamente sorriu. Decidiu que seu futuro seria no passado. Que melhor final para o seu amanhã? Olhou para o garçom e pediu um bom Porto, para abrir o apetite. Os amigos não compreenderam quando ele propôs um brinde de desculpas ao Thierry e agradeceu à poesia, à física e à vida!
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