Juntos Somos Mais fortes
Ando pela cidade que está sendo reconstruída depois de anos vivendo em um caos e da queda de uma colônia que escravizava pessoas. Vejo cada árvore que foi plantada, as flores desabrochando, as crianças correndo e brincando umas com as outras livres dos grandes muros que nos enclausuravam, posso ver a felicidade em cada rosto, cada sorriso, a esperança de uma vida melhor em cada bloco que levanta a casa. Vejo tudo o que desejamos por anos sendo realizado e me sinto vazia, longe de conseguir colocar um sorriso em meu rosto, de me sentir feliz por essa conquista. Meu coração sangra toda vez em que penso nele. Raul se foi deixando um rastro de solidão dentro de mim e o fato de minha mãe estar doente só piora a situação, tudo em minha vida se transformou em cinzas, me sinto perdida, incapaz de compartilhar dessa felicidade que todos estão vivendo, não acho justo participar disso sem meu amigo aqui, ele que sempre desejou a liberdade, que sempre esteve ao meu lado e que fazia planos para quando esse momento chegasse. Era para ele estar aqui e não eu. A dor de ter perdido meu melhor amigo me consome, muitos não entendem meu luto e acham que Raul e eu tínhamos um relacionamento, mas não, eu o amava como um irmão, ele sempre foi meu parceiro e amigo e não tê-lo mais ao meu lado me faz sofrer de uma forma que por diversas vezes desejei a morte, na verdade é assim que me sinto, sou apenas uma casca de mim mesma, pois minha alma já não habita mais em mim, ela se foi no instante em que ele deixou de existir.
Passo por algumas pessoas que me chamam para conversar, finjo não ouvir e sigo meu caminho, todos tentam me tirar dessa tristeza, mas ela estará comigo para o resto da minha vida, que se depender de mim não irá durar muito, porque nesse exato momento estou caminhando para o que será minha libertação.
O monte está a minha frente, mais um pouco e chego em meu destino e assim poderei colocar um fim em todo esse sofrimento que estou vivendo. A grama verde se espalha pelo chão e pequenas flores brancas se destacam entre elas, tudo seria lindo se dentro de mim ainda existisse um resquício do que um dia eu fui, agora não consigo apreciar a beleza da natureza, para mim a vida não tem mais sentido, nada é capaz de me alegrar, tudo são apenas fagulhas do incêndio que se tornou meu coração. Continuo subindo vislumbrando as mudanças do local, as árvores que antes pareciam estarem mortas, hoje ostentam uma folhagem verde e glamorosa. Chego ao topo e fecho os olhos, deixando o vento bater contra meu rosto nos os últimos minutos antes do fim. Dou um passo à frente e sinto a terra se mover, ouço o barulho das pedras rolando ladeira a baixo e deixo meu corpo escorregar para o precipício.
— Não! — Escuto alguém gritar e sinto braços fortes me puxando de volta. Caí no chão tentando entender o que havia acontecido. Não vi seu rosto, pois seus braços negros me apertavam contra seu corpo impedindo de me movimentar, apenas ouvi o som da sua voz. — Por que fez isso, Amanda? — Então o reconheci, era Júlio um dos escravos que foi libertado da Zephir.
— Não suporto mais essa dor, Júlio. — senti as lágrimas caírem pelo meu rosto.
— Se matar não irá resolver seus problemas. Sei que a perda do seu amigo não está sendo fácil e que sua dor é inestimável ainda mais pelo estado de sua mãe, mas tenho certeza que Raul quer te ver feliz. Viva por ele e por você, não desista da vida, faça a morte dele valer a pena.
— Isso é impossível — sibilei.
— Vou te mostrar que é possível sim — ele disse e levantei minha cabeça para olhar em seus olhos. — Eu perdi minha família inteira para a Zephir e isso me deixou arrasado, por anos me senti sozinho. Também tenho meus traumas, Amanda, mas sei que juntos podemos superar nossa dor. Então eu te ajudo e você me ajuda, Topa? — perguntou olhando dentro de meus olhos.
— Topo. — Então aceitei e meus lábios se curvaram em um sorriso. O primeiro sorriso que dei depois de muito tempo.
Depois desse dia não nos desgrudamos mais. Fazíamos tudo juntos, desde ajudar nas construções das casas até tirar leite da vaca para as crianças. Ele me falou um pouco dos familiares que perdeu, seus pais que não resistiram ao castigo por terem desobedecido uma ordem, tios que morreram de fome e o que mais o fez sofrer, a perda do irmão mais velho para o câncer. Jonas era seu herói e foi uma perda irreparável, contudo foram as últimas palavras do irmão que o fez seguir em frente.
— Ele colocou a mão em meu ombro antes de morrer e disse: "Seja forte, um dia você vai sair daqui e eu estarei sempre ao seu lado te apoiando em suas vitórias e te levantando quando cair. Não desista da sua vida." Fiz o que ele pediu e por muitos anos resisti a toda crueldade daquele lugar, mas com a esperança de um dia conseguir a liberdade, então você e seu amigo apareceram e me deram a chance de ter uma vida melhor. Raul morreu para te salvar porque ele queria que você vivesse esse momento e tenho certeza de que ele está ao seu lado assim como Jonas está ao meu, então não vamos decepcioná-los. — Aquelas palavras tranquilizaram meu coração.
Jonas e eu ficamos mais próximos e a dor que sentia aos poucos foi indo embora, jamais me esquecerei do meu grande amigo, contudo agora ele está apenas em meu coração e posso sentir sua presença a todo instante o que me fortalece e me faze seguir em frente, minha mãe continua na mesma, mas tenho fé que logo ela estará melhor.
Raul e eu encontramos um refúgio e sempre que queremos um tempo a sós, subimos até o monte e esquecemos do mundo com conversas, brincadeiras e histórias da nossa infância.
— Não acredito que você foi a primeira a quebrar as barreiras da colônia — ele disse surpreso com minha atitude.
— Pessoas estavam doentes e precisavam de remédio, essa foi a solução que encontrei — me justifiquei.
— Você teve um bom argumento, mas confessa que queria mesmo era sair e ver o que tinha do outro lado?
Coloquei as mãos sobre o coração me fingindo de ofendida. — Jamais, eu queria apenas ajudar.
— Sei, conta outra.
— Tudo bem, eu queria mesmo sair e isso caiu como uma luva — confessei.
— Eu sabia — ele e eu caímos na gargalhada.
De repente ele parou de rir e ficou me olhando. — O que foi? — perguntei.
— Você é linda, Amanda. — Júlio tocou meu rosto e mesmo tendo as mãos ásperas de um trabalhador, apreciei o toque. Ele se aproximou e nossos lábios se tocaram, no entanto o encanto foi quebrado com pessoas gritando meu nome, nos afastamos e corri em direção aos gritos.
— O que houve? — perguntei para Miranda, a mulher que estava cuidando da minha mãe.
— Dona Evy piorou. — Não foi preciso dizer mais nada, corri em direção a minha casa com Júlio logo atrás de mim.
Meu pai e meu avô estavam na sala quando entrei. — O que aconteceu pai?
— Sua mãe está pior minha filha, quase não consegue respirar. O doutor está lá dentro.
Sentei ao seu lado e segurei sua mão esperando pelo doutor que estava demorando mais do que o comum e quando o vi saindo do quarto fui a primeira a me levantar e me dirigi até ele.
— Como minha mãe está?
Ele abaixou a cabeça e temi por algo ruim. — A pneumonia tomou conta do pulmão, os antibióticos não estão fazendo efeito, temo que ela não tem muito tempo de vida. — Não pude acreditar no que ouvi, fui dando passos para trás até alcançar a porta que dava acesso onde ela estava. Entrei a vi tão debilitada que fez meu peito se comprimir.
— Venha aqui minha filha — Ela pediu.
Me sentei ao seu lado e segurei firme sua mão. — Vai ficar tudo bem, mãe.
— Sinto que minha hora está chegando, Amanda. — Não conseguir segurar as lágrimas — Me prometa que não vai cair outra vez, todos precisam de você aqui.
— E eu preciso de você, você não pode me deixar.
— Jonas é um bom rapaz e tenho certeza de que cuidará de você. Saiba que eu te amo. — A abracei negando o inevitável. E foram poucos dias até ela partir levando o que havia restado do meu coração.
Se antes pensei que perder Raul era a pior coisa que poderia ter me acontecido, perder minha mãe me mostrou que essa dor pode ser ainda maior. Minha vida perdeu completamente o sentido e foi em uma madrugada que resolvi colocar um fim em tudo. Esperei todos dormirem e saí escondida com minha adaga nas mãos, aquele seria meu fim.
A lua era a única iluminação naquela noite fria, as lágrimas escorriam sem parar pelo meu rosto, caindo em meu busto e molhando o tecido azul do vestido. Posicionei a lâmina em minha barriga e pude sentir o quão estava afiada.
— Ás vezes as perdas vem para nos fazer mais fortes. — Me assustei com aquela voz e olhei para o lado vendo Júlio com as mãos nos bolsos e a cabeça baixa. — Sei que nada do que eu disser vai diminuir a dor que está sentindo, mas lembre-se de que já passei por isso e sei exatamente como é, não a julgo pela sua fraqueza, mas quero que saiba que estou aqui e se você deixar sempre estarei. Venha comigo, Amanda, não desista de nós, de si mesma. — Ele estendeu a mão em minha direção e seu olhar se prendeu ao meu em uma súplica desesperada.
Mesmo com o coração partido em vê-lo implorar tomei minha decisão — Me perdoe, mas eu não posso. — Então enfiei a adaga em minha barriga, sentindo a lâmina rasgar minha pele e vendo o vestido que antes era azul ficando completamente vermelho.
— Amanda! — Ouvi seu grito e passos correndo em minha direção enquanto me sentia caindo e minha alma se esvaindo do meu corpo. — Não! Fique comigo, por favor, não vá — ele implorou quando me segurou em seus braços. Suas lágrimas se misturando com meu sangue e manchando tudo com a cor da morte. — Eu te amo. — E essa foram as últimas palavras que escutei antes de apagar...
"Volte para mim, por favor." Eu conhecia aquela voz, mas não conseguia me lembrar de onde, tudo estava escuro e eu me sentia perdida. "Esse não é o fim, não pode ser." Quem era? Onde eu estava?
— Você tem que voltar, Amanda, ainda não é a sua hora. — Essa voz eu reconheci de imediato.
— Raul é você? — Tudo ficou claro e eu vi meu amigo diante de mim. — Meu Deus! É você mesmo. — Corri para abraça-lo.
— Seu lugar não é aqui, minha filha, ainda não.
— Mãe? — Olhei para o lado e a vi, ela se aproximou e tocou meu rosto.
— Volte, eles precisam de você.
— Quem?
— Olhe — pediu Raul e uma imagem se abriu a minha frente mostrando meu pai, meu avô e Júlio em volta do meu corpo desfalecido em cima de uma cama. — É para eles que você tem que voltar, aquelas pessoas necessitam de você. Júlio principalmente, ele fez de tudo para te salvar.
— Eu morri? — perguntei sem conseguir desviar da cena diante de mim.
— Ainda não, mas se não voltar agora não terá outra chance. — minha mãe falou. Olhei outra vez para as pessoas que choravam por minha causa e me senti mal por fazê-las sofrer.
— E vocês, eu não os verei de novo?
— Não, mas estaremos sempre com você aqui dentro. — Raul disse tocando meu coração.
— Vá minha querida, eles estão te esperando.
— Faça isso por mim, minha amiga, deixe Júlio cuidar de você. Vocês só são fortes juntos. Volte, viva e seja feliz.
— Eu amos vocês.
— Nós também te amamos — disseram juntos e de repente tudo virou um borrão.
Meu corpo inteiro doía, me lembrava exatamente o que havia acontecido, até meu encontro com minha mãe e Raul, fiquei triste em não poder vê-los novamente, contudo, quando abri os olhos e vi o sorriso e a felicidade estampados no rosto de Júlio percebi que fiz a escolha certa. Ali era meu lugar, ao lado deles.
— Você pediu e eu voltei para você. Me perdoe, fui fraca, mas prometo que nunca mais farei você sofrer. — Júlio se sentou ao meu lado e segurou minha mão.
— Você está de volta e é isso que importa. Vamos superar isso juntos.
— Por que juntos somos mais fortes — eu disse e ele me abraçou.
Com tudo isso aprendi que não importa o quanto você está sofrendo, não importa sua dor, basta você olhar para o lado que verá que existem pessoas capazes de fazer você se sentir feliz apenas pelo fato de existir. Então não se deixe levar pela tristeza, faça dela sua escada para chegar ao topo e alcançar a felicidade outra vez.
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