Invenção e esquecimento à velocidade dos odores
— Vó, conta uma história?
Ouço a voz fina de Teresa. Achei que ela tinha dormido. Me viro ficando de frente pra ela na cama.
— Qual história? A da lagarta?
— Não. Essa é de criança. Quero uma nova.
Eu me permito rir um pouco, mas aceito o protesto.
— Tudo bem! Hoje foi sua décima vacinação, merece uma nova. Aliás, uma especial. Vou te contar a história da sua mãe.
— Da minha mãe? — ela desconfia.
— Sim. Mas você vai prometer que ela é só tua. Não vai contar a ninguém.
— Tá. — ela concorda solenemente.
— Naquela época éramos só nós duas nesse Contêiner. Estava começando a segunda Pandemia e sua mãe tinha medo. O Profeta não estava governando, era o finalzinho do governo do Exército. E é por isso que ela conheceu o teu pai.
Consigo ouvir a respiração sendo suspensa. Nunca falei pra ela do pai e isso tem um motivo óbvio.
— Vera trabalhava na Fábrica junto comigo.
"Naquela época, os militares iam e vinham do Litoral para o Interior resolver assuntos de alimento e remédio. Foi assim que ela conheceu Paco. Ele era um rapaz alto, ruivo e bonito. Diziam na Fábrica que era sujeito importante no Litoral. Qualquer moça daqui queria a sorte de ser olhada por ele e foi sua mãe quem teve isso. Numa saída do trabalho, ele estava no portão. Tinha visto Vera e, mesmo metida num uniforme, logo se apaixonou. Ah, era impossível não ser assim! Os dois se juntaram feito imã. Começaram a se ver naquele dia mesmo. Até que veio a Partição.
"A gente já era dividido em Litoral e Interior, mas quem era dono de Fábrica aqui ou de Laboratório lá, conseguia ir e vir. Só que por causa do novo vírus, o Exército baixou a Lei da Partição. Foi tudo muito rápido. As fronteiras seriam fechadas de vez no próximo amanhecer e só os Litorâneos iam poder atravessar de volta pra lá naquele único dia. Paco e Vera perceberam que não iam suportar ter que esquecer um ao outro. Ele falou com seus superiores, chegou a inventar que tinham casado. Nada adiantou! Então, quando caiu a noite, decidiram arriscar. Se meteram num carro e foram para a Fronteira Leste, que era a mais distante, mas tinha a fama de mais abandonada. Só havia uma chance, tinham que chegar lá antes do sol bater nos portões.
— Você vai precisar ser corajosa, Vera. Caso peguem a gente eu nem sei o que vão fazer! — na verdade ele sabia, mas não queria preocupa-la.
— A gente vai conseguir meu amor. Juntos!
"Vera sempre foi muito otimista. Então quando Paco deu a parida no carro e apertou sua mão de leve, ela soube que ia dar certo. Seguiram por algumas horas sem serem incomodados por nada. Quase esqueceriam que estavam em fuga, não fosse a velocidade do carro. Começaram a 120km/h, as árvores iam passando depressa e as plantações de tubérculos se estendiam pelo Interior. Foi quando já estavam correndo há três horas que passaram pela primeira alma viva. Era uma mulher, um pouco mais velha que Vera e parecia estar pedindo ajuda.
— Nós precisamos parar!
— Não, não precisamos. Ela que precisa de alguém com menos a perder. — Paco não tinha tempo para a bondade de Vera.
— Para esse carro! Nós temos que ajudar.
— Não. O que temos que fazer é seguir.
— Mas ela está em perigo.
— Nós estamos em perigo! Será que você ainda não percebeu?
— Você que não percebeu que existe mais gente aqui no Interior. Todas essas vidas também importam.
— Acha que eu não ligo? Eu me importo. Mas você é minha prioridade. E se essa mulher é uma isca, se alguém pega nós três? A gente se fode. Você se fode! Sente esse odor doce?
— Sinto.
— Isso é cheiro de abacaxi, o que quer dizer que estamos na Unidade Territorial Jota. Aqui vive um bando de mercenários. Aquela mulher não deve ser diferente. Ninguém chega ao Litoral se parar aqui! A gente não chega junto. E o que acha que vão fazer com um desertor e uma mulher fugitiva na beira da estrada? — Vera engoliu a seco. Só agora teve a noção no que estava se metendo. Não existia mais meio termo. Ou o plano dava certo, ou estavam mortos.
"Continuaram na estrada. 150km/h. Ela nunca conheceu aqueles lugares e não é como se tivesse conhecendo. Eram só borrões pela janela do carro. O máximo que conseguia identificar eram alguns odores: de plantações, de comida e de flores. Nesse ritmo seguiram por mais 3h até que um odor diferente invadiu o interior do carro. Não era comida ou qualquer coisa que se planta. Era fumaça: cheiro das máquinas da Fábrica que aprendemos a manusear, cheiro de gasolina queimando.
"Não demorou para verem de onde vinha: um clarão aumentando na estrada à frente. Paco já estava esperando por uma barreira militar, mas uma em chamas ele nunca imaginou. Quanto mais avançavam, mais o odor ficava forte — a ponto de terem que cobrir o nariz e a boca com a blusa e fechar todas as janelas. À velocidade que estavam, não demorou para chegar ao foco do incêndio. Das 6 cancelas que fechavam a estrada, apenas uma estava funcionando, as outras estavam em chamas. Ainda assim, tinha blitz: os carros eram detidos por militares que conferiam documentos, rostos e imunidades.
"O coração de Vera parecia saltar pela boca. Como poderiam escapar daquilo? Isso era loucura! Como foi pensar que algum dia conheceria o Litoral? O carro diminuiu a velocidade até parar na fila de carros. Não eram muitos, mas qualquer minuto perdido era precioso.
— Fique tranquila. Eu sei como isso funciona.
"Vera não tinha tanta certeza, mas a segurança que sentiu do companheiro a acalmou. A fila foi diminuindo enquanto os carros à frente atravessavam para além das chamas, de volta à corrida contra o tempo para chegar à Fronteira Leste (não havia outro destino para qualquer uma daquelas pessoas naquela noite). Quando chegou sua vez, Paco viu que estava errado. Duas militares cercaram o veículo e não se contentaram em conferir os documentos e imunidade, queriam saber mais de Vera. Era óbvio que com a pele morena ela não era nascida Litorânea.
— Não sou. Realmente não sou! — ela confessou, firme — Meus avós foram pra lá ao fim da Grande Pandemia. Temos lá um laboratório que precisa de insumos da Unidade Iborá, por isso eu e meu marido estamos aqui. Ele é militar, podem notar. Quanto a mim, a Esclarina que vocês tomam nos seus coquetéis de medicamento, eu produzo de olhos fechados. Se eu fosse vocês não prenderia numa barricada suja e incendiada dois Litorâneos que podem relatar as humilhações que passaram ao Governo enquanto tomam sol numa praia.
"Tudo o que disse foi com tal confiança que nem ela mesma duvidaria da invenção. As duas militares tremeram e deixaram-nos passar.
— Você é boa inventando história! — Paco estava surpreso.
— É de família. E elas são boas esquecendo protocolos.
"Foi o único momento que riram durante a noite, enquanto o carro alcançava 200 km/h. Não havia mais tempo algum a perder. 1h dirigindo a essa velocidade foi o suficiente para chegarem à Fronteira Leste. O céu já estava clareando e a confusão estava instaurada nas portarias da fronteira. Diferente do que tinham visto na barricada anterior, o que reinava ali era a tensão. Todos queriam atravessar e estavam apreensivos por isso. Os militares, no entanto, pareciam mais firmes em seu trabalho. Só um odor pairava no ar: mistura de pólvora e morte. Paco parou à uma distância segura e disse para Vera se esconder.
— Os militares daqui não são como as anteriores. Se não pudermos comprovar aquilo que falamos, seremos barrados. Eu tenho os meus documentos, vamos conseguir se não vistoriarem o carro.
— Você promete que vai dar certo?
— Eu prometo meu amor.
"Os dois se beijaram, mas estava clareando rápido demais para se deterem nisso. Vera se acomodou envergada no porta-malas e sentiu o carro arrancar. Bem devagar. Procurando o lugar menos perigoso para se apresentar. Quando achou que já tinham atravessado, o veículo parou bruscamente. Prendeu a respiração com o medo de que alguém lá fora poderia ouvir. Aqui o cheiro de pólvora era ainda mais forte. Mas... seria possível? Quase conseguia sentir o odor do oceano. Se pôs a inventar isso tentando esquecer o que acontecia fora do carro. Foi quando ouviu a porta da frente abrir. Sentiu Paco saiu do carro. O que estava acontecendo? Não conseguia ouvir direito, só distinguir frases soltas.
— Autorizado... atravessar a pé.
— Não... preciso do carro... documentos.
— Impossível... tudo será incendiado.
— Não podem... vidas em jogo.
"Será que toda essa correria durante a noite, tantos quilômetros, tanto tempo tinha sido em vão? Paco teria que atravessar a pé? A deixaria ali? Ouviu uma confusão. Barulho demais. Gritos. Socos. O carro chacoalhando por alguém sendo arremessado contra ele. Mais gritos. Até que: um tiro. O odor de pólvora ficou mais forte. Junto dele, o de sangue.
"Foi uma questão de tempo. Vera já sabia o que tinha acontecido. Quando os militares abriram o porta-malas, a tiraram de dentro e a prenderam, não houve surpresa. Ela viu o corpo de Paco no chão e a fronteira se fechando pra sempre enquanto o sol tocava a grade. Antes de ser deportada de volta pra cá, já sabia que você estava dentro da sua barriga. E teria quem amar a partir dali. Mas jurou, até seu último dia, que foi capaz de sentir o odor do oceano."
Quando termino de contar, tenho algumas lágrimas e um sorriso no rosto. Teresa dormiu. Imaginei mesmo. Começo a lembrar de uma música que minha avó cantarolava pra mim: era sobre quilômetros. Rio comigo mesma pensando como consigo inventar boas histórias.
Inventar e esquecer. É algo de família, parece.
Inventar essa paixão correspondida, o plano de fuga, o amor e até o odor do mar. Inventar que Paco era um bom homem. Inventar que Teresa nasceu de uma paixão e não de um estupro na noite em que os militares decidiram se aproveitar de qualquer pessoa e fugirem de volta para o inferno de onde vieram.
E esquecer. Esquecer que a corrida imaginária que os dois amantes fizeram contra o tempo (para que ele passasse mais devagar) foi uma corrida solitária de Vera para que o tempo passasse mais rápido, que aquela noite de horror acabasse logo.
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