Diuturnus - Por: Ceginara
O que vou lhe contar irá abalar suas crenças sobre as novas descobertas. Você jamais as verá como casualidade. Garanto-lhe! Como eu sei disso? Sou a testemunha ocular de um feito épico, onde a ciência, até então, não tinha sido capaz de controlar, só vislumbrar.
Você já ouviu falar da Teoria de Bootstrap? O nome pode parecer estranho, mas a ideia por trás dela é simples. Ela refere-se à viagem no tempo, mais especificamente ao passado, onde um objeto ou informação fica preso em um looping infinito de causa e efeito, no qual o item já não tem ponto de origem discernível. Havia um paradoxo envolvendo-a... agora, não mais.
Você vai entender isso rápido, com um mero questionamento. Quem veio primeiro, o ovo ou a galinha? O ovo precisa que a galinha o ponha, e a galinha, para se tornar galinha, precisa nascer de um ovo. E assim, a origem do ciclo se perde e nunca saberemos onde tudo começou. É justamente aqui que eu entro e violo tudo isso.
Antes, porém, preciso lhe contar como tudo iniciou. Para isso, vamos precisar voltar no tempo, há exatos 30 anos, quando uma pandemia acometeu, de forma inesperada, o mundo em que vivemos. Tudo mudou a partir desse evento. O planeta perdeu o reprodutor natural da espécie humana, portanto, só o cromossoma X sobreviveu.
Nessa época, eu era casada com Roberto e trabalhava como Auxiliar de Enfermagem em um hospital de referência mundial. Éramos um casal apaixonado, com planos que, infelizmente, tiveram que ser alterados em função de um vírus modificado. Foi quando eu cometi um ato vil inconcebível, eu o matei. Qual a razão disso? Receber o pomposo seguro de vida para me manter. Afinal, ele não sobreviveria, visto que não havia remédio ou vacina capaz de ser desenvolvida em tempo hábil. Acredite! Foi uma decisão acertada. Posso, ainda, acrescentar que ele estava feliz até o último suspiro, me amando loucamente. Desse crime, eu saí ilesa, já que todas as evidências corroboraram para que a causa mortis fosse creditada unicamente à cardiopatia intrínseca.
A fortuna recebida viria com um ônus: a culpa que me perseguiria eternamente, porém, mesmo assim, eu seguiria em frente. Por isso, resolvi aceitar o convite da Rita, minha amiga e colega de trabalho. Iríamos curtir uma noite sem julgamentos morais para nos divertirmos em um bar, e Rita fez questão de escolher o lugar.
Naquele dia, conheci o Rafael. Um cara alto, boa pinta e que trabalhava como Gerente de TI. Ele parecia eu, querendo achar um sentido imediato para viver ao máximo. Quando percebi isso, a afinidade entre nós foi imediata, intensa e puramente física. Esticamos esse happy hour para a minha casa, entregando-nos, a lascívia que nos consumia. Não demorou para que aquele encontro casual gerasse visitas consecutivas, com ele sob os meus lençóis, inundando-me com seu ímpeto, tesão e desempenho. Não se tratava de afeto, somente sexo.
Tudo estava indo às mil maravilhas quando uma nova revelação surgiu em minha vida: eu estava grávida. Não tive filhos com meu falecido marido e, diante do acontecido, descobri inesperadamente a causa — ele era infértil. Sendo assim, bastou um deslize nos cuidados básicos para proteger-me e me vi desfrutando desse outro prazer, a maternidade. Eu fiquei radiante com essa possibilidade, mas apreensiva com o sexo do bebê que, sendo masculino, viria brevemente a falecer.
Rafael era casado e, mesmo a relação estando fria por anos de convívio, ele amava a esposa. Sendo assim, a última coisa que desejava era uma criança concebida fora do matrimônio. Portanto, fora contundente e insistente para que eu acabasse com essa gravidez, pois sabia do destino que o acometeria brevemente.
Ele me levou a uma clínica clandestina de aborto. O procedimento foi feito e, após sedação e aspiração intrauterina, aquela vida não mais existia, descobrindo que eu viria a ser mãe de uma menina. Depois disso, uma curetagem foi realizada com o intuito de limpar meu útero de todos os vestígios daquele ser que ali estivera. Mas algo deu errado.
Após ser liberada pela clínica para voltar para casa, percebi que ainda sentia algo estranho, mas considerei ser uma etapa normal devido ao que fora feito. Conforme os dias passaram, a dor se intensificou, a ponto de tornar-se insuportável. Fui internada às pressas no antigo hospital em que trabalhava.
Não demorou muito para eu receber outra notícia cruel em minha vida. Em decorrência da gravidez interrompida, tive uma infecção uterina séria e, como consequência, tornei-me estéril, ou seja, incapaz de gerar filhos. Como não pensar que estava sendo punida por ter cometido um crime, o segundo, contra uma vida? Mas não! Dessa vez, quem matou meus sonhos foi Rafael, que me levou naquela espelunca e me abandonou à própria sorte. Eu o odeio por ter agido assim comigo, e estou sendo consumida por esse ardil sentimento.
A verdade é que ele queria apenas me foder, em todos os sentidos, garantindo êxito pleno ao apagar de vez a maior prova do nosso envolvimento, mantendo inabalável, por assim dizer, o seu casamento de fachada. E eu sequer poderia desejar vingativamente a sua morte, porque ela já estava determinada e o levaria impiedosamente.
Foi no fosso da minha existência, sentindo-me ferida e abandonada, que o ódio encontrou aconchego e morada para o que viria a seguir. Nenhum homem valia o meu sofrimento. A dura constatação é que ninguém seria capaz de substituir aquele que me amou e do qual a culpa ser-me-ia consorte por toda a vida.
Segui em frente, mas não como imaginei fazer. Inicialmente, à medida que o caos viral assumiu o destino da humanidade, me isolei. E isso me fez mergulhar em quem eu era, julgava ser ou havia me tornado. Foi um laboratório intenso, parecendo mais um processo autodestrutivo, que acabava dolorosamente com meu amor próprio e autoestima. Encarei meus piores temores e blindei-me contra as investidas de quaisquer outros pretendentes ao cargo de alimento romantizado para o meu coração carente.
Assim renasci para encarar o mundo com novas diretrizes e recomeçar com a perspectiva sincera do que eu almejava seguir. Foi procurando novidades que encontrei uma startup que desenvolvia pesquisa no cérebro de pacientes com morte cerebral comprovada. O estudo buscava encontrar formas de restabelecer sua funcionalidade ao estimular e reconstruir as áreas cerebrais através do uso de frequências específicas, mapeadas em tempo real.
Sendo uma profissional da área da saúde, esse trabalho imediatamente chamou minha atenção. Você sequer imaginaria as possibilidades e avanços que isso acarretaria, bem como, a fortuna que eu obteria? Pois bem, resolvi investir meu dinheiro nesse negócio, tornando-me a única investidora do projeto.
O tempo passou e, mesmo com indicativos significativos, nenhuma evidência conclusiva havia sido obtida pela startup. Nesse ínterim, a pandemia já havia deixado uma ruptura indelével na história da humanidade. O vírus geneticamente modificado havia exterminado todos os homens da face da Terra, se autoeliminando junto com o último representante do cromossoma Y.
Passaram-se trinta anos. Nesse período, as mulheres em idade fértil foram obrigadas a gestar crianças por inseminação artificial assistida. O planeta estava sendo repovoado novamente pelo cromossoma masculino e uma nova ordem estava sendo estabelecida.
Rafael havia morrido, mas a marca que ele deixou ainda doía em meu peito. A raiva permanecia intensa e, infelizmente, eu não tinha como superar a mácula deixada. Minha fertilidade perdida tornava-me incapaz de ver esperança no mundo em que homens ressurgiram frutos apenas da tecnologia.
O que acompanhava esse contexto vinha sempre carregado de muita tristeza, e foi esse o impulso motriz que me faz gastar uma quantia considerável para ir atrás do cérebro meticulosamente preservado de um homem muito específico, o paciente zero.
Esse era um material relevante para o projeto da startup em que eu tanto investira. Um geneticista saudável, de meia-idade, que trabalhava em seu laboratório, em uma renomada universidade de pesquisa científica, desenvolvendo um estudo de aprimoramento dos espermatozoides humanos a partir de uma cepa de herpesvírus alterada geneticamente.
Assim que todo o trâmite legal foi resolvido, o célebre objeto repousava no laboratório de desenvolvimento de estudos científicos que eu custeava, tendo prioridade máxima, além de um aporte financeiro maior para garantir a dedicação plena da equipe de cientistas responsáveis.
Feixes de energia quântica foram disparados por toda a superfície cerebral do falecido pesquisador, bombardeando-o com frequências baixas, médias e altas, aleatoriamente, mas capazes de produzir disparos eletroquímicos que poderiam promover ondas cerebrais reais, reproduzindo um estado temporário de consciência.
Mergulhávamos no desconhecido, mapeando cada efeito produzido. As possibilidades de novos conhecimentos, oriundos de uma resposta positiva desse experimento, fez com que eu começasse a acompanhar de perto tudo o que era feito. Eu havia investido aqui bem mais que tempo e dinheiro. Existia em mim plena convicção de que algo extremamente importante estava em minhas mãos.
E eu acertara! Demorou, mas o inusitado se revelou. A neurocientista da equipe, que comandava os testes, me tirou da cama bem cedo, com um telefonema urgente. Ela estava eufórica, me fazendo chegar o quanto antes ao laboratório.
— O que conseguimos, Patrícia? — falei esbaforida diante da expectativa que me consumia.
— Obtivemos uma resposta que foi registrada tanto no eletroencefalograma quanto na eletrocorticografia e na ressonância magnética.
Isso era algo extremamente promissor, mas como chegamos nisso depois de esgotarmos praticamente todas as tentativas? Patrícia me disse que um pensamento intuitivo e persistente a fez testar uma combinação inédita de frequências emitidas, considerando a modulagem e tempo em que elas seriam aplicadas.
Eu já estava expert nesse assunto e, ao ouvir essas palavras, uma ideia maluca surgiu em minha mente. E se aplicássemos esse experimento em cérebros ativos? Nós potencializaríamos o uso das capacidades cerebrais? Olhamo-nos estarrecidas. Sabíamos que algo grande estava em processo naquele momento. Não perdi mais tempo.
— Patrícia, vamos testar isso agora! — disse-lhe enquanto me preparava para ser a cobaia desse novo procedimento.
— Beatriz, não funciona assim. Temos que tomar medidas de segurança, passar por protocolos de checagem e postular o processo para ser aprovado pelos órgãos responsáveis.
Eu tinha tanta certeza que meu pensamento não se tratava de mera fantasia, mas que estava pautado em todos os estudos e práticas que tinha presenciado no decorrer de décadas de estudo, que me dirigi a ela com convicção plena.
— Não se preocupe comigo, Patrícia. Eu assumo todos os riscos, e sei que não são poucos. Assino o que você quiser. Apenas faça-o.
Como investidora, minha voz tinha peso real no futuro dessa pesquisa. Dessa forma, enquanto ela preparava o local em que eu estaria deitada, e com inúmeros dispositivos apontados para pontos milimetricamente definidos na minha cabeça, aproveitei para escrever, de próprio punho, uma carta eximindo-a de qualquer responsabilidade com o que viesse a ocorrer.
Mantive-me o mais relaxada possível naquela sala acusticamente isolada, portanto, fechei os olhos para filtrar quaisquer estímulos sensoriais externos. Patrícia monitorava o experimento da sala anexa a que eu estava. Suas últimas palavras através do microfone foram precisas e seguras:
— Vou iniciar a primeira onda cerebral induzida. Você deve sentir seu fluxo de ideias mais amplo e focado, pois estaremos aumentando, concomitantemente, a irrigação cerebral, permitindo uma maior neuroplasticidade, bem como, o equilíbrio da atividade cortical entre os dois hemisférios cerebrais.
Após sua fala, as luzes se apagaram e eu tentei me manter o mais calma possível, mas confesso que minha ansiedade estava alta. Assim que a frequência emitida me atingiu, algo inimaginável aconteceu. Não foi somente o poder de desempenho sináptico aprimorado do meu cérebro que sobressaiu. Alguma outra área havia sido estimulada. Eu me senti viajando por frequências cerebrais além das minhas.
Isso mesmo! Eu acessei facilmente os pensamentos da Patrícia, que previsivelmente pedia aos céus para que eu não morresse e que o experimento fosse bem sucedido. Não contive o meu pensar que intuitivamente respondeu a isso: "Se não estivesse tudo bem, algo estaria apitando nesses aparelhos que monitoram o que estamos fazendo!"
Logo após, ouço a neurocientista repetir, em voz alta para si, o que eu acabara de pensar. Como assim? Além disso, meu cérebro parecia ter adquirido a capacidade de mapear todas as ondas cerebrais que estavam por perto. Conectei-me ao pensamento do segurança do estacionamento e criei uma sugestão simples: "Verifique se sua pistola está embainhada no coldre!" — e assim ele o fez.
Resolvi ir mais longe e, em segundos, percebi que poderia me conectar a qualquer mente, sugerindo um pensar que muitos considerariam como sendo "intuição". Então, ela seria isso?
Quando dei por mim, visualizava uma linha temporal, a minha, desde o meu nascer até o momento atual e, como em uma lista telefônica, entendi que teria acesso a qualquer ser vivo, podendo influir no seu pensamento sem que ele percebesse.
O Paradoxo de Bootstrap havia caído. Minha consciência, nesse estado induzido pelo experimento, conseguia viajar para o passado, observando-o e tendo acesso a todas as informações e, o mais incrível, interagindo com outras consciências, criando o que, até o momento, entendíamos por "intuição".
Não sei dizer como ocorreu, mas me conectei à consciência do paciente zero, não ao cérebro morto que estava em meu laboratório, mas ao pesquisador ainda vivo, no momento em que ele iniciava suas pesquisas no laboratório. Eu conhecia cada detalhe daqueles acontecimentos ali ocorridos e foi inevitável "intui-lo".
"Se você utilizar uma cepa do herpesvírus humano e modificá-la geneticamente, obterá respostas novas."
— Por que eu não pensei nisso antes! Herpesvírus humano é compatível — disse o animado geneticista.
Meu Deus! Eu havia viajado no tempo, para o passado, e acessado a mente daquele renomado cientista, dando-lhe a resposta que iria exterminar todos os homens. Meu sentimento foi canalizado nesse momento. Quem precisava desse Y ordinário? Eu destilei, naquele pensamento, o ódio que tinha de qualquer representante desse sexo.
Estava criado o loop temporal onde, a cada vez que minha consciência estivesse em um dos extremos, do presente ou do passado, o meu conhecimento sobre o ocorrido seria o causador da ação que geraria a pandemia. Sendo assim, a criação do vírus não foi um acidente e o ciclo se repetiria indefinidamente.
A descoberta de que a consciência pode viajar para o passado promoveria uma verdadeira revolução. E quem eu seria nessa nova ordem mundial? A detentora de uma história singular, onde um amanhã inusitado jamais se revelaria, visto que eu, Beatriz Nogueira de Castro, o controlaria.
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