Cartas a Netuno ou o caminho do post-mortem
Uns tais momentos depois daquilo, 23h37min
Eu me lembro de quando nos conhecemos: você metido em um desses moletons que trazem o nome de banda ou alguma marca e que vêm em cores fortes e irradiando manchas solares. Você sempre usava roupas largas e só mais tarde eu entendi os seus motivos (de qualquer forma, aquela noite exigia agasalho e leveza). Quem poderia imaginar que depois de tanto tempo continuaríamos juntos? Quem naquela mesa de leoninos poderia prever a paixão brotando entre cervejas, jilós e confissões adolescentes? Nós não éramos mais tão jovens, é verdade. Mas, naquele espaço-tempo, é como se fôssemos.
Foi naquela madrugada que você me contou da portuguesa. Aliás, não, você não me contou. Você nos fez ser poesia. "Os garçons empilhando as cadeiras", lembro de ouvir assim que fomos expulsos.
— Me olhe! — você ordenou como se eu tivesse desviado os olhos em algum momento da noite — Agora me peça que eu fale, mas não escreva.
Como eu poderia não dizer que já te amava desde então? Como eu podia não ser um metal atraído pelo teu corpo-imã a partir dali?
É, não existia alternativa (e não que estivéssemos preocupados a procurar alguma): vivemos aquela paixão. Entre cadeiras empilhadas e cervejas baratas, entre jogos de cartas e máquinas jukebox, entre comidas para gatos e vidros quebrados na estante, entre céu e chão de terra batida. Vivemos aquela paixão.
Sabe, às vezes eu acordo e só tenho forças pra fingir que você ainda está aqui. E eu, uma lua te orbitando.
Mas que porra, Netuno! Por que você decidiu acabar? Por que deixou a humanidade infectar teu planeta? Por que sucumbir? Por que EU deixei que isso acontecesse? Quais sinais eu não percebi? Quais gritos eu não ouvi? Quais...
***
Uma data que você gostava, 9h40min
Me desculpe! A última carta terminou um tanto quanto... abrupta. Tânia me disse que não é essa a ideia, apesar de que foi importante pra mim (segundo ela). Entendi que eu não devo me culpar pelo que aconteceu. Que "cada pessoa é seu próprio planeta". Também não devo te culpar. Não há espaço para culpa e devemos lembrar isso — no luto e sempre.
Então, resolvi tentar de novo.
Eu estive a ler a portuguesa, a pensar a terrível existência das duas retas paralelas. Elas só se encontram no infinito, não é mesmo? Você quem me disse.
Não está fácil continuar, eu te asseguro. Essa quitinete está cada vez maior e eu sinto cada vez mais frio. Você faz ausência em todos os cantos, por menores que sejam. Não importa quem venha ou o que fale: ninguém é um planeta envolto em moletom e com o fogo no lugar dos olhos.
Quando vimos tua decisão já tomada, ficamos sem ideia do que fazer. É claro que teu irmão foi pragmático e resolveu a documentação; e tua mãe, apesar de tudo, continuou a cozinhar e a receber as gentes. Mas, grosso modo, todos paralisamos — nem que tenha sido por um segundo ou um ano.
Se a tua presença é algo que se fazia notar em um raio de 4 bairros, a tua ausência é motivo de espanto para toda cidade. Desconfio que mesmo aquele garçom que empilhou as cadeiras já tenha ideia do teu trânsito.
Entrar na quitinete e encontrar teu corpo estendido foi como o tombo de bicicleta sem solo. O frio da tua pele invadindo pelo meu estômago e depois para todo corredor e pelo planeta. Não existia cor. Como poderia haver? O fogo sumiu. Depois daquela tarde, o mundo teve um fim em si mesmo. Era você quem nos abria as janelas para outros universos.
Eu não sei quem foi a primeira pessoa a chegar. Que diferença faz? Sei que me encontraram como um satélite perdido. Me carregaram por um vácuo a um hospital que também não tinha cor. Me colocaram máscaras e injetaram um ar que eu não queria. Pra que?
Do dia que te sepultamos, eu lembro tampouco.
***
O aniversário do dia em que fomos ao parque pela primeira vez, 14h40min
Conversei com tua mãe. Ela também sente tua falta. Disse que o silêncio do celular é ensurdecedor, que quando eu ligo é como se o sol despontasse no horizonte. Eu gostei de ouvir isso, era o tipo de coisa que você dizia. Lembrei de onde você colhia toda poesia e beleza da vida, com quem aprendeu a ser astro. Ela ficou de me enviar teus livros.
— Você vai aproveitar melhor que nós — explicou.
Quis perguntar do bilhete, não consegui. Não tenho a coragem de roubar dela o teu cheiro. Aliás, não é como se eu não soubesse o que está escrito. Aquelas palavras são como um mantra antes de dormir:
"Desculpe, eu não vou conseguir mais. O espaço do não-ser me atravessa para além do ser. Faz mais sentido viajar de vez pelo vácuo que ficar preso em terra firme. Eu amo cada um de vocês, como sei que me amam. Mas não dá mais. Espero que me perdoem."
Eu sei cada letra, cada ritmo, cada respiração. Eu te imagino escrevendo. Compenetrado. Preocupado. Decidido a parar a dor de todos. Emocionado. Mas, sem chorar. Você não chorava quando escrevia. "O choro não foi feito pra isso...", você dizia.
— ...nem a escrita — completava antes de sair sorrindo e piscando luz pela rua.
É, Tânia está certa: não deve haver espaço pra culpa minha ou tua. Foi sim a humanidade que não soube ocupar teu planeta e você fez o teu caminho de reta paralela.
Nos encontraremos apenas no infinito?
***
O teu aniversário, só teu em todo Universo, 17h
Parece que fiz certo das últimas vezes. Isto é: te escrevi, revive os sentimentos, falei da minha rotina e narrei também a minha dor.
— Você está indo bem, Alê. Está sim! — Tânia me assegura.
Bom, resolvi continuar.
Ainda não sei porque aquela quarentena mexeu tanto contigo. Eu entendo o pavor, a insegurança e o medo daquilo que seria o futuro. Mas, acreditava que estávamos conseguindo nos guardar. Será que tu pensou que seria pra sempre? De algum modo, parece que sim: apesar dos cuidados, nos infectamos por aquela suspensão da vida, da proximidade, do calor. Será que ficamos mais preocupados com as mãos que com as cores? Que planeta sobreviveria a algo assim?
Ainda não sei a resposta para qualquer dessas perguntas.
Ainda não sei se preferia ter te coberto de cheiros, sabores e toques a ter te rodeado de antissépticos.
Ainda não sei se resolveria. "O espaço do não-ser me atravessa para além do ser". Fico no meu mantra.
Ainda não sei, se é que um dia saberei.
O que sei é que as pessoas têm seguido. Tua mãe já se locomove pelos cantos com uma liberdade assustadoramente inventiva. Teu irmão imerso em notas musicais e pás de jardinagem (ouvi dizer que ele anda a semear alecrim). Helena e Marcela pensam agora em ter uma criança.
— Precisamos de vida — elas disseram. — Quem sabe você também não precise!
Quem sabe?
É, ainda não sei. Parar, suspender, retornar a uma rua que é tão cheia quanto o vazio dessa quitinete. A tua portuguesa insiste em falar de preferências. Pois sim, o que sei é que preferiria que a única coisa fria aqui fosse o teu chá sobre a mesa enquanto eu me alimentaria das tuas histórias e orbitaria a tua atmosfera.
Sei das urgências em prosseguir. Sei das impossibilidades em fazer isso.
Ainda não sei se sou capaz. Algum dia s(ab)erei?
***
Duas passadas além da porta, 10h55min
Sabe, se fosse o contrário você estaria lidando muito melhor com tudo. Eu não tenho dúvidas! Ah, se ao menos eu tivesse a coragem de ter feito ao contrário! Mas não é disso que vim falar.
Hoje eu estive em uma casa de chás. Sim, consegui aprender a ter bons hábitos com você: guardar minhas cuecas em fronhas ou parar de me importar com a forma que estendo a roupa sempre voltada ao poente. E estive com um rapaz. Sei que você não se importa com um detalhe assim, mesmo sendo leonino. (Também porque, e principalmente, bastaria eu sentir uma brisa leve do teu perfume de capim novo que iria feito cão atrás do cheiro de torta do desenho animado que assistíamos aos sábados).
Então, bem, eu estive com um rapaz.
Não posso dizer que foi algo ruim. Sua pele brilhava como prata desviando a atenção dos carros que passavam mais distraídos com o passeio. Ainda é incomum que possamos sair às ruas: mesmo com máscaras, mesmo com distâncias limitantes, mesmo com apenas-uma-mesa-e-duas-cadeiras-a-cada-dois-mestros-como-manda-a-recomendação-da-prefeitura.
Ainda é incomum.
***
Algum tempo depois que consegui sair da quitinete, 02h50min
Os encontros têm sido como quaisquer outros desde que te encontrei. É impossível não notar a falta do magnetismo que só os planetas têm. O rapaz é asteroide. Um Halley até! Mas não um Netuno. E ninguém será.
Preciso ser justo: consigo rir, tomar um chá e até me divertir. Certo dia fiz reparar que a portuguesa insistiria em elogia-lo versando sobre sua beleza cortada e suspensa. Ele ficou sem entender e eu percebi que estava fazendo as vezes de você: tentando ser planeta que ensina versos. Enquanto que o cometa, bem, passeou brilhando prateado.
Diversão, é como chamo quando isso acontece.
Sinto que devo te agradecer — mesmo Tânia falando que devo agradecer a mim mesmo. Foi você que ensinou como ser feliz. Ensinou, aliás, tantas coisas que é impossível colocar em uma carta: desde os versos curtos, aos sentimentos espessos. Contigo aprendi a ser nós e sem você, por causa de você, estou tendo que aprender a ser eu.
***
Depois de menos versos que eu gostaria, 04h50min
É difícil demais. Que droga, Netuno! É muito difícil. Não era pra ser assim! Era pra eu te afrontar pessoalmente, com você na minha frente. Era pra eu sentir as palavras batendo no teu rosto e você me devolvendo em gritos de fogo e fúria. Pra que você foi fazer essa merda? Por que simplesmente não aguardou como qualquer outra pessoa resignada e triste? Por que esses ares de inconformidade e não-ser?
Você já era, caramba! Era comigo. E eu só sou contigo. Quem vou ser a partir de agora?
Estou farto dessa tua portuguesa martelando minha mente. Farto de esperar que você volte em bicicleta para o amor. Farto de saber que nada vai chegar, nada vai voltar. Nem que eu abra teus livros; nem que eu cheire o alecrim plantado pelo teu irmão; nem que eu embale a criança de Helena.
Porra alguma!
Me afundo em saudade e se fosse um pouco mais corajoso inauguraria o infinito para que minha reta se juntasse a tua. Me perdoe pelo distanciamento, me perdoe a covardia, me perdoe ter deixado que a humanidade contaminasse a tua atmosfera, me perdoe não ter sido suficiente.
Eu te amo. Ainda e para sempre. E eu sei que nunca vou te esquecer. Mas eu quero, eu preciso que você me deixe prosseguir. Preciso parar de te orbitar, Netuno.
***
11 de agosto, 16h
Sim, eu voltei a contar o tempo em dias.
Sinto causar decepção, mas aqui na Terra é como fazemos. Entendo que em Netuno o tempo e o espaço se movam em outras dimensões, só que agora preciso estar nesse lugar.
Não foram semanas ou meses fáceis. Tânia e todos os outros ficaram muito preocupados e até eu me assustei. De qualquer modo, permaneci aqui. Mudei daquela quitinete, (me desculpe também). O frio já era insuportável.
Preciso dizer que a filha de Helena e Marcela se chama Vênus: é um pequeno planeta em nosso sistema. Tua mãe lhe cozinha mamão e outras coisas escorregadias; teu irmão lhe canta Leãozinho e sussurra sobre filhotes. Por enquanto, eu só assumo a função de ficar orbitando ao seu redor. Você a ensinaria versos, tenho certeza.
E por falar nisso, o motivo dessa visita ao teu planeta: estou dado a ver o mundo através de tua portuguesa. Serei breve para não me perder em órbitas. Descobri outros versos que não envolvem cadeiras ou retas. Que dizem de outros infinitos e chás.
Em um deles, soube que é no caminho do post-mortem que damos de caras com a vida. Que bonito isso, dar de caras com a vida!
Me pareceu justo. Quis vir te dizer.
Dizer que espero que você, onde estiver, tenha dado de caras com vida; e também que é o que pretendo ensinar a Vênus algum dia: ensinar que conheci um Netuno que era capaz de abrir Universos com um sorriso; capaz de aquecer o mundo com um moletom; capaz de incendiar o ser com um olhar.
Sim, quis vir te dizer que vou querer ensinar-lhe tudo isso. Porque foi o que eu aprendi contigo no caminho do post-mortem: admirar vida.
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