Cadê a chave da gaiola?
I - Destruição do reino de Sarpati:
Davi abandona a armadura e o brasão da sua família real. O lema estampado nele diz: "A serpente nos protege com a magia do bem." O seu nome de príncipe, Duncan, perde a razão de ser. Ele caminha e, atrás dele, Sarpati é devorada por uma nuvem de fumaça. Os seus olhos ardem e uma tosse seca o castiga. A chuva que cai é bem-vinda e faz uma faxina no reino contaminado pela violência e destruição.
O cheiro de carne humana assada embrulha o seu estômago. A morte tem um odor que domina os demais sentidos. O andar dele é cambaleante e lento. Passa pelas árvores frutíferas, a maior parte delas sem vida, e avista a serpente. Ele endireita o corpo, tira os cabelos compridos dos olhos, e vai ao encontro do amigo. Davi diminui o ritmo ao enxergar três de seus inimigos, os cabeças de porco. Eles se aproximam com passos largos e deixam um rastro pesado na areia molhada. Ele se abaixa e ataca cada um deles com um soco certeiro nas "partes baixas". As "criaturas" caem e, para garantir a vitória, ele pega um punhado de areia e jogo nos olhos delas.
A serpente observa tudo sem sair do lugar. Davi se dirige até ele, levanta os braços e vocifera:
— Cornélio! Por que não me socorreu? — A serpente inclina a cabeça e olha fixamente para ele. — Que apatia é essa? Transforme-se! Como iremos nos comunicar desse jeito? — A mudança é rápida e Cornélio, sem pressa, retruca:
— Duncan, eu não posso me transformar de acordo com a sua vontade. Estou fraco. Gastei quase toda minha energia na defesa do reino. Não sei quantas vezes conseguirei assumir a forma humana para falar com você. E pode acontecer coisa pior: eu não ter magia para virar serpente. Aí você ficará preso num reino dominado pelos cabeças de porco.
— Serpente, não me chame de Duncan. Sem reino, sem coroa e, portanto, sem nome real. Não sabia que a sua transformação exigia tanto de você. Por que não me ajudou? Eu poderia ter morrido.
— Meu rapaz, eu não sou seu amuleto da sorte. Até hoje não entendeu a minha função, não é mesmo?
— Tá brincando, né? Você é ou, sei lá, era o guardião do reino dos meus pais. Uma das suas missões é me proteger.
— Não, não é! Eu tinha como missão proteger o reino que não existe mais. Contudo, fiz uma promessa ao rei e irei cumpri-la: o levarei para a Cidade das Sombras.
— E isso não é proteger?
— Não! Você é quem cuida da sua vida. Eu tenho o compromisso de levá-lo, na viagem entre os mundos, para o seu lar. Tudo seria diferente se Sarpati estivesse de pé. O trono seria seu e eu guardaria o reino por infinitas gerações.
— Nada é para sempre. As coisas estão em constante movimento e transformação. Essa lei espiritual é universal. Contudo, antes de partirmos, quero lhe agradecer por nos servir com a sua magia por séculos.
— Cumpri o meu propósito. Agora, chegou a hora de descansar. Entretanto, a minha aposentadoria depende de eu transportá-lo para o seu mundo.
— Sou todo seu. Não vejo a hora de chegar no túnel e reencontrar a Paola. — A serpente se enrosca no Davi e mergulha fundo. Uma luz, lilás e brilhante, abre um portal. — Cornélio deixa o Davi no mesmo lugar no qual, há sete anos, o pegou.
II – Volta ao lar:
Davi estranha a umidade e o silêncio do túnel. Tenta se levantar, mas não tem força. Enquanto descansa, pega um galho no chão e começa a desenhar o reino mágico: o castelo, os jardins floridos, as fadas, a serpente, os animais alados e as árvores prateadas. Ele retrata o reinado com uma riqueza de detalhes que o impressionam. Os seus pais, o rei e a rainha, estão juntos e ele está no meio deles. Ele olha para o resultado da obra e dá um sorriso. É um pedacinho da sua outra casa, que foi destruída, em um outro mundo.
Ele se recupera e os seus passos são firmes e rápidos. Nessa hora, lembra-se da Anaita e dos voos que faziam juntos pelo reino. Por ora, ele tem que se contentar com as suas limitações humanas. À medida que ele anda, a imagem da Paola fica mais viva, e o coração dele se expande de alegria. Davi ensaia, em voz alta, o que falará para a sua amada. Nada do que diz parece ser bom o suficiente para ela.
De repente, ele se cala, levanta as sobrancelhas e não desvia o olhar das estátuas dos anjinhos decepadas. Ele viaja no passado e sente o sabor do primeiro e único beijo que trocaram. Os anjinhos foram as únicas testemunhas do amor deles. Davi volta a caminhar e, depois de um tempo, percebe que está perdido. O túnel tem vários labirintos, e ele não tem a menor ideia de onde está. Sete anos se passaram, mas a cidade tem uma atmosfera diferente: ainda mais sombria e pesada.
Davi encontra uma bifurcação e decide ir para à esquerda. Caminha cem metros e não acredita no que vê. As suas mãos ficam frias, seus lábios se ressecam e a pele empalidece. Tenta chorar, gritar, mas nada acontece. Os seus pés estão fincados no chão. A cena é desoladora: vários esqueletos humanos espalhados pelo caminho e muitos jogados uns sobre os outros. A primeira coisa que lhe veio na mente foi: "Será que um deles é o da Paola?" Em seguida, surge outra indagação: "O que aconteceu que deixou as pessoas tão desesperadas?"
Depois de ultrapassar o "mar de esqueletos", ele se depara com os cubículos com as portas escancaradas. Não há sinal de vida e o silêncio é sepulcral. As máquinas têxteis estão enferrujadas e destruídas. Ele desaba em uma das camas e olha para as paredes com desenhos de crianças. Imagina quem eram as pessoas que moravam ali, quais os seus nomes e como se relacionavam. Uma tristeza se apossa dele e nocauteia a sua alma.
Davi acorda e sente o corpo moído, como se tivesse levado uma surra. Demora um pouco para se ambientar, mas logo recorda-se de tudo pelo que passou. Assusta-se com a falta de ar e com a sensação de uma espada fina e pontiaguda penetrando no seu peito. A dor é tanta que ele sente uma forte dor na cabeça e tontura. Senta-se no chão e tem ânsia de vômito. Ele insiste em colocar o mal-estar para fora e expele um pouco de água com sangue. Essa tortura dura vinte e nove minutos e o deixa mais debilitado.
Ele reúne o pouco de energia que lhe resta e vai em direção ao banheiro comunitário. Os chuveiros e torneiras não funcionam. Ele precisa se limpar e sabe que não pode ir muito longe. Ao sair do banheiro, olha para o lado direito e um tímido sorriso aparece. Arrasta-se até o depósito que está vazio, dá mais uns passos e chega até o poço artesiano. Lava o rosto, os cabelos e o corpo. Ingere tanta água que sente o corpo pesar. Suspira ao se deparar com o que será o seu banquete diário: um exército numeroso de baratas e formigas.
Uma gota de esperança, no meio do "deserto", o resgata da apatia. Ele se anima, faz uma varredura nos cubículos, e pega objetos que lhe serão úteis: botas, roupas, casacos, cobertores e lençóis. Volta para o seu canto e guarda os pertences num grande caixote. Fecha a porta e sai a procura da casa da Paola. O cenário que encontra é lúgubre: das hortas e pomares restaram os galhos secos e retorcidos; a farmácia, o ambulatório e a capela estão vazios. O túnel parece uma cidade fantasma, e o Davi tem a sensação de nunca ter vivido ali.
Ao longo do percurso, ele enfrenta o vazio ocasionado pela morte e pela destruição. As perguntas que ele se fez, ao encontrar com os esqueletos, não saem da sua cabeça. Os pensamentos negativos o dominam e ele é obrigado a parar. Senta-se numa pedra e o corpo começa a formigar, as mãos e pés suam frio, e o coração acelera. Davi fica com falta de ar e acredita que irá morrer. A agonia passa, mas parece que durou uma eternidade. Pensa um pouco e decide prosseguir, a casa da Paola está perto.
Aproxima-se da casa e fica parado por um tempo. A sujeira domina o ambiente. Davi toma coragem e entra. As poucas roupas estão guardadas e mofadas. A Bíblia permanece aberta no Salmo 91. Em cima de uma cadeira, uma boneca de pano sorri. Ele pega a Sue, a abraça, e chora até não ter mais lágrimas para derramar. Solta a boneca e esbraveja até perder a voz. Lança a cadeira contra a porta da casa, várias vezes, até quebrá-la.
Ele deita-se na cama e não sabe como chegou em casa. A boneca e a Bíblia estão do seu lado. Davi lê o Salmo 91 do livro sagrado. A oração o acalma, e ele dorme. Sonha com a mãe da Paola e com as suas histórias contadas antes da pandemia. Ele e a amada ficavam fascinados com a vida fora do túnel e tinham vontade de experimentá-la um dia. Faziam planos de conhecerem juntos os "quatro cantos do mundo", expressão muito utilizada por Rosa. No fim do sonho, ele vê um lugar bonito, arborizado e com um casarão. Na porta está escrito, em letras garrafais, Fazenda Jatobá.
Davi dá um pulo e demora para perceber que tudo não passou de um sonho. A sua garganta está seca e ele bebe água. De repente, ele entende o motivo de tanta excitação: a Fazenda Jatobá é o local onde os pais da Paola trabalhavam como caseiros. Na pandemia, entraram na igreja da fazenda para rezar, viram uma porta diferente – larga e mais alta do que o normal – e resolveram abri-la. Ela é a passagem entre a Cidade das Sombras e a Fazenda Jatobá. A fé do casal os salvou da pandemia que dizimou todas as pessoas da terra.
Ele não consegue ficar parado e gesticula muito. Entra e sai de casa várias vezes. Davi para na porta e vê a boneca sorrindo para ele. Uma ideia lhe vem, mas é descartada. Ele busca mudar o pensamento, sem sucesso. O assunto cola que nem um chiclete na sua mente. Resiste por um tempo, cansa de lutar, e com receio diz:
— Sue, lembra-se de mim? Eu brinquei muito com você e com a Paola. — Ele, sem jeito, espera por uma resposta. Depois de alguns minutos, Davi abre um largo sorriso. — Sue, não sei como explicar isso, mas eu sinto que você tem algo para me dizer. E a nossa comunicação será por intermédio do meu inconsciente. Eu estou desconfiado que a encontrarei em um sonho. Ficarei esperando, ansioso, por você.
Davi passa o dia conversando com a Sue e lendo o Salmo 91. Na verdade, ele não precisa mais lê-lo. Ele o declama como se fosse uma poesia. O encontro com eles o deixou mais feliz. As suas esperanças se renovaram, e ele acredita que encontrará a Paola viva. Chega a hora de dormir, ele conversa com a boneca e combina de se verem durante o sono. Ela olha para ele e sorri. Ele se convence de que terá notícias da Paola.
Ele tem vários sonhos desconexos com o mundo mágico do seu pai, com a Cidade das Sombras e com a Fazenda Jatobá. As imagens são envoltas por muito sangue, dor e sofrimento. Um pouco antes de acordar, a serpente aparece para ele, mas não consegue se comunicar. Cornélio perde a magia e não toma a forma humana.
A cada dia que passa, o Davi fica mais frustrado e perdido. Os sonhos o deixaram, ou pelo menos ele acredita nisso, e a boneca não responde às suas perguntas. Ele decide parar de comer e de beber. Vai até o poço artesiano e volta para casa. Tenta conversar com a Sue, lê o Salmo 91, e retorna ao poço. Faz esse itinerário durante todo o dia. Adormece com a boneca no colo. Os dois caminham de mãos dadas e sobem as escadas que dão acesso à igreja da Fazenda Jatobá. A porta está aberta, e eles enxergam pessoas andando e conversando no jardim. Ouvem o canto dos pássaros, latidos de cachorros e vozes animadas de crianças. Davi, surpreso, questiona:
— Sue, pelo visto a pandemia acabou, né? Você acha que a Paola mora na Fazenda Jatobá? — Ela olha para ele e sorri, mas dessa vez ele entende que o sorriso é um retumbante SIM! — Eu sempre acreditei que, de um jeito ou de outro, você me mostraria o caminho a ser trilhado. Amiga, obrigada por me salvar.
III – Na Fazenda Jatobá
A grama está úmida, o sol nasce e o galo canta. A Fazenda Jatobá está cheia de vida. A natureza, depois de tanto tempo, recebe os humanos de coração aberto e pulsante. É difícil acreditar que a pandemia aniquilou, por séculos, os filhos queridos da mãe terra. Davi recebe todo esse amor emanado por Gaia e a cura se faz.
As casas estão com as janelas abertas e a movimentação é intensa. As pessoas estão na lida e muitas delas cuidam da horta comunitária. Um outro grupo ordenha as vacas e distribui o leite nas portas dos moradores. Algumas mulheres e crianças dão comida para as galinhas e recolhem ovos. Davi fica sem ar ao ver uma linda mulher contando histórias para crianças. Os seus cabelos estão presos num rabo de cavalo e alguns fios dançam com o vento. Ela, de vez em quando, dá uma pausa na leitura. O grupo interage e ela retoma a história.
Paola se despede deles, pega uns cravos brancos, e vai para casa. O centro da mesa ganha um charme com as flores dispostas num vaso rústico de madeira. É hora do almoço e ela ajuda a mãe a colocar a mesa. A família conversa e a quarta pessoa não se senta à mesa. O dia passa e, no jantar, o quarto integrante não comparece.
Ela faz as orações e se prepara para dormir. Na cama, encostada nos travesseiros, Susie descansa. A Bíblia está do lado dela marcada no Salmo 91. Paola junta as mãos e os seus olhos se inundam por um mar de lágrimas. Um barulho vindo de fora a conduz à janela. No jardim, perto da "árvore do amor" - duas gameleiras se uniram e as suas raízes se entrelaçaram às copas formando um coração -, ela ouve a parte final de um soneto conhecido que diz:
"(...) Crescemos e não saímos da gaiola
As sombras são suportáveis ao seu lado
O seu olhar é o sol que me aquece
O nosso amor me mantém motivado
Sua doce presença me entorpece
Envelhecer junto a ti me consola."
Eles se beijam e recuperam sete anos de solidão. O amor toma conta deles, e o beijo dura uma eternidade. Davi segura as mãos quentes e úmidas da Paola, faz um suspense, e declara:
— Ainda bem que a frase do meu verso "Crescemos e não saímos da gaiola" não condiz com a realidade. Nós encontramos a chave da gaiola, saímos da prisão em que vivíamos e...
— Sinto-me abençoada pela estrofe final do soneto profetizar a nossa união duradoura e feliz. É chegado o fim do tempo de solidão e um recomeço nos espera. O mundo doente e sombrio foi embora. Um novo capítulo das nossas vidas se inicia cheio de bênçãos, amor e glória!
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