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Amor é distopia no infinito cor-de-memória

esta já é uma velocidade considerável

i.e.

aquela que é possível apenas ver algumas formas no vulto.

é possível diferenciar uma árvore de um arbusto

mas não

uma pitangueira de uma aceroleira

(não que se tenham pitangas ou acerolas por aqui).

(aqui, por exemplo,

é possível diferenciar as formas de vestir

dos homens

das mulheres

daquelas que não são homens nem mulheres,

mas não

as crianças nas árvores

ou no barro).

já estou a essa velocidade considerável

em que os contornos se embaralham pela janela do carro

quando pisco e lembro de você.

brilhante assim

imaginei que fosse pela idade.

quando eu era infância,

a velhice me contava da juventude,

do que a idade e o oceano podiam fazer com as pessoas.

quem dera eu pudesse ver o que o infinito azul faria contigo e teus cabelos.

é, eu seria capaz de atravessar o Interior a passadas, só para te ver entre as ondas.

sim Amanda, eu já te tinha dito,

a forma como o azul bateria na areia, se espalharia pelo ar e pousaria na tua pele preta faria aumentar a rapidez das minhas passadas.

estranho eu ter dado de caras com a juventude nesse território de marfim seco.

se mormaço tivesse uma cor, era essa:

um infinito marfim fazendo morrer qualquer possibilidade de outros infinitos.

secando.

ou pior, nos fazendo perder.

esta já é uma velocidade considerável.

i.e.

aquela que é possível diferenciar as refeições ao longo do dia,

mas que cru e cozido se confundem,

ou que doce e salgados se misturam num gosto salobro. 

já estou a essa velocidade considerável

em que os corpos se embaçam pela reflexo do marcador de tempo

quando meus olhos cansam, eu os esfrego e lembro de você.

preta.

perco um pouco de passado e de futuro cada ver que me fixo nesse infinito marfim.

é um milagre eu lembrar da minha velhice e esperançar minha infância.

(como se eu acreditasse em milagres!

me diga Amanda, você acredita, não é mesmo?

o infinito prateado que se abre quando sorri me faz pensar que sim, você acredita).

o marfim já me fez perder as crenças também.

aliás, muito antes mim, para além da minha mãe, da minha avó e a mulher que veio antes dela.

fico pensando se alguma mulher já acreditou.

então esfrego os olhos de novo e lembro de você.

mais mulher que qualquer uma de nós.

talvez tenha inventado a crença e nós não saibamos.

qual a cor da invenção? 

é o contrário do marfim.

é o contrário da perda.

é o contrário do mormaço e do vazio.

a essa velocidade considerável, os vultos desarranjam as cores.

e tudo ganha o mesmo tom

(ou faz perder as singularidades).

sinto que estou me esquecendo a cada pedra saltada na estrada, a cada remédio que tomo, a cada ida ao infinito cinza da Fábrica, a cada nascer e por do sol, a cada lençol úmido que descarto.

esta já é uma velocidade considerável

i.e.

aquela que é possível diferenciar um mês de um ano,

mas os dias se confundem.

que se pode dizer onde trabalhamos

mas se perde os sentidos de quem somos ou de onde viemos.

já estou a essa velocidade considerável

quando adormeço e lembro de você.

existe algo na forma de nos conhecemos, no doce do vinho ou na respiração ofegante das escadas e do gozo.

existe um infinito que não se perdeu no marfim.

ele que me faz inventar

dose de remédio após dose de remédio,

Vacinação após Vacinação,

dias úteis de trabalho após dias úteis de trabalho.

eu fecho os olhos e ainda crio lembranças de você.

esse infinito preto com luzes dos sonhos, é o meu infinito de memória e de invenção.

e entendo que aqui, mesmo a essa velocidade considerável,

mesmo enquanto o carro transforma tudo vulto

mesmo enquanto a Fábrica apita recolhendo as empregadas,

mesmo enquanto os vírus nos retiram tudo que fomos,

mesmo enquanto as empresas vendem e compram tudo que somos,

mesmo enquanto conto os dias para o próximo contato,

mesmo enquanto sinto o calor que vem do marfim,

não há perdas.

não há danos ou danação.

nesse infinito só há você: preta, brilhante, rodeada de juventude amarela e esperança azul.

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