A Montanha Sob O Sol
— É um dragão! — insistiu Lírio, apontando para uma cabeça escamosa que se erguia no lago atrás da colina — Ali, olha!
— É um jacaré! — disse Rose, a mais velha. — Sabe, um lagartão que nada e come você se chegar muito perto?
Mas Lírio cruzou os braços e fez bico. Era uma menininha suada e desdentada.
— É um dragão!
Rose odiava aquela irmã. Odiava não poder livrar-se dela. E odiava ainda mais ser uma criança magricela e não poder se opor aos desmandos da mãe. Se fosse grande, isso não aconteceria.
— É um jacaré! — E, nisso, Rose tomou a maior pedra que viu e lançou-a sobre a cabeça escamosa para comprovar viu hipótese. — Viu? Não tem...
A água do lago estalou e de sua superfície cresceu um par imenso de asas. Depois, surgiu um corpo como o de um lagarto gigante. Por fim, uma cabeça chata, dentes afiados como navalhas e olhos vermelhos.
— Viu? — apontou Lírio, vitoriosa. — Um dragão.
— Quem és tu que ousas perturbar minha tranquilidade? — vociferou o dragão.
Rose só conseguia balbuciar coisas sem sentido, incapaz de entender o que ocorria em sua frente.
— Pois que tiraste minha tranquilidade, também eu tirarei a tua.
Dito isso, o dragão agarrou Lírio e saiu voando. Não muito alto, aliás, apenas o suficiente para que Rose o visse cruzar a mata fechada de pau d'arco e enfiar-se em uma caverna na base da montanha sob o sol.
Rose até queria, mas não podia só chegar em casa sem a irmã. Que diria à mãe? "A Lírio foi levada por um dragão", e a mãe diria: "Que dragão o quê? Você deixou sua irmã ser comida por um jacaré!", e daí Rose ficaria por mentirosa e inútil. Ah, como odiava ser pequena! Se fosse grande, todos acreditariam nela.
Rose enfiou-se na mata dos pau d'arcos e depois na caverna. Fria, úmida e escura, mas bastava um facho de luz para reluzir sobre a montanha de ouro na qual o dragão se assentava. Sob uma das patas dele, Lírio dormia tranquilamente. Oh, garotinha traíra!
— Quem pois que ousa... — o dragão começou.
— Tá, tá — cortou Rose. — Escuta, seu dragão, pode me devolver minha irmã? Está tarde já e temos que ir.
— Tua irmã é o preço pago por perturbar-me. Ela me pertence agora.
— O senhor não vai querer ela. Eu mesma só vim porque sou obrigada. Teve uma vez que ela caiu do balanço sozinha e ficou chorando e gritando e a mãe brigou comigo.
— Ela caiu sozinha?
— É, pode ser que eu tenha... empurrado ela um pouco, mas não precisava fazer escândalo, né?
— Pois se tu não reconheces o valor de tua irmã, deixa-a comigo.
— Não posso, minha mãe, sabe, gosta dela.
Mas o dragão ignorou Rose.
— Escuta, seu dragão, quanto mais o senhor demorar, mais eu vou ficar aqui perturbando sua tranquilidade.
O dragão abriu os olhos e irritou-se:
— Devorar-te-ei, então, humanazinha!
— Me devorar? — Rose riu. — Por favor, eu sou só pele e osso, tá vendo? O senhor vai é se engasgar.
O dragão concordou.
— Devolver-te-ei tua irmã, desde que pagues o preço por ela.
— Que preço?
O dragão sorriu.
— Olhei em teu coração, humana, e vi um desejo de não ser mais pequena. Eis o meu preço: dez anos de tua vida.
— Dez anos da minha vida?
— Sim.
— O que o senhor vai fazer com isso? Minha vida não tem nada de interessante.
— Que te importa? Pagarás o preço ou não?
— Mas como é isso... eu vou morrer dez anos mais cedo, é?
— Não quero dez anos de tua vida futura — disse o dragão. — Quero dez anos de tua vida presente.
— Não entendi.
— Que te importa? Pagarás o preço ou não?
Roses suspirou. Olho para Lírio e depois para o dragão.
— Ela não vale tanto, mas é o jeito, né? Eu aceito.
O dragão, então, soltou Lírio. Depois inclinou a cabeça até bem perto de Rose e soprou. Um sopro quente e forte. Borbulhante. Ácido sobre a pele. Depois, um formigamento. E, então, parou.
Rose abriu os olhos e toda a sua visão era turva. Viu que suas mãos estavam maiores. Suas pernas, mais longas. Tudo ao redor parecia... insignificante. Mas quando olhou o dragão, ele parecia ancestral. Talvez por isso, ela sentiu um pavor profundo.
— Teu preço está pago. Pega tua irmã e segue teu rumo, humana insolente.
Tomou o corpo de Lírio em seus braços com a facilidade de um adulto. Afastou-se medrosamente e depois correu. Agora, tinha pernas longas e medos bobos.
...
O sol estava sobre a montanha quando chegou à caverna. Rose respirou fundo e tomou coragem. Esgueirou-se no interior úmido, frio e escuro. Lá estava ele, gigante, um lagarto com asas deitado sobre seu tesouro.
— Quem ousa...?
— Sou eu — disse ela. — Rose. Perdoe-me, senhor dragão. Mas... o senhor me enganou.
— Como ousa...?
— Não... eu quis dizer... o senhor não especificou os termos de nosso acordo. Eu estou dez anos mais velha. Achei que seria apenas o corpo, mas minha consciência também envelheceu.
— E que eu tenho haver com isso? Falei-te que não queria os dias de tua vida futura, então tomei os dias de tua vida presente.
— Eu não sabia...
— Tu sabias, tu apenas não te importavas, humana insolente.
— Não é verdade! Eu... não entendia o que significava, mas o senhor roubou minha infância. Eu sequer me reconheço. O mundo é cinza e vazio. Faltam-me os anos e faltam-me também os valores que eu deveria ter aprendido com eles. Por favor, devolva-os.
O dragão suspirou.
— Eu os devolverei desde tu me dês algo por eles. Tua irmã.
Rose recuou.
— Minha irmã não.
— O que foi? Tua irmã não vale tanto, tu mesma disseste.
— Como adulta, eu vejo as coisas claramente. Eu trocaria minha vida por ela. Por favor, peça outra coisa.
O dragão disse depois de pensar:
— No topo da montanha, onde o tempo não vai, há uma árvore que não dá frutos, um pássaro que não canta e uma velha que não morre. Tu deverás contar-lhes três histórias e com isso conseguir que a árvore dê frutos; o pássaro, cante e a velha, morra. Se o fizeres, terás de volta teus anos de vida.
— A montanha é íngreme e sem trilhas, como devo subir?
— Dar-te-ei meus olhos para que vejas, meu olfato para que farejes e minhas asas para que voes.
Rose suspirou.
— Eu aceito.
O dragão, então, inclinou seu focinho até bem perto de Rose e soprou. Um sopro quente e forte. Borbulhante. Ácido sobre a pele. Depois, um formigamento. E então parou.
Rose abriu os olhos e toda a visão diante dela era clara. Depois, olhou... de suas costas pendia um par de asas e ela podia sentir cada um dos odores que vinham da floresta.
— Segue teu caminho, humana insolente.
...
O sol estava se pondo quando avistou a árvore.
Ela era fina e pequena, tinha com cheiro de frutas cítricas. Rose aproximou-se de seus galhos e percebeu que não havia frutas.
— Quem és tu, donzela? — perguntou a árvore, dançando com o vento. — És uma flor bela.
Rose espantou-se ao ouvir tais palavras. Mas, depois de um minuto, fez uma reverência.
— Eu sou Rose. É um prazer conhecê-la.
— Teu nome é certeiro. Mas que a trazes a este canteiro?
— Eu vim porque quero comer um dos seus frutos.
— Oh, peço desculpa. Há tempos que não dou fruta.
— Por quê?
— Meus frutos nascem da alegria e há muito não há aqui sequer poesia.
Rose pensou um pouco e depois disse:
— Se eu lhe contar uma história, você ficará alegre?
— Talvez sim, talvez não.
Rose pigarreou e começou seu conto.
— O Grande Criador, uma vez, plantou três sementes na base da montanha sob o sol. A primeira tornou-se uma árvore mais alta que qualquer outra. A segunda árvore deu lindas flores. Seus galos se estendiam rosados e cheios de pura cor e cheiro. A última árvore era pequena e não tinha flores chamativas. As duas outras riram dela, mas a pequena árvore esperou pacientemente durante o ano.
"Então, veio o vento, envergou a maior árvore e tornou-a torta. Veio o outono e tornou as flores da segunda árvore secas. A última árvore, porém, em seu tempo, deu pequenas frutas em seus galhos. E, passando o criador por ali, com fome e cansado, colheu seus frutos, comeu e ficou muito agradecido."
"Então, tomou a última árvore e a plantou no alto da montanha, para que todos pudessem apreciá-la não por sua beleza ou força, mas pelos frutos que ela dava. E sob os raios do sol, a pequena árvore floresceu e cresceu e de seus frutos nasceram outras como ela."
A árvore permaneceu quieta, dançando com a brisa.
— Tu és sábia, guria. Onde adquiriu tal sabedoria?
— Uma vez, tentei apressar as coisas e me arrependi. É necessário paciência para esperar os frutos.
— Tu me destes júbilos absolutos. Em troca, toma um de meus frutos.
Dos galhos da árvore brotaram pequenas frutinhas alaranjadas. Rose comeu-os com alegria.
— Preciso falar com um pássaro que vive nesta montanha e não canta .— disse Rose. — Onde posso encontrá-lo?
— Ora, bolhas! Aqui em minhas folhas.
Havia, nos galhos da árvore, um ninho com um pássaro dentro.
— Olá, Rose — disse o pássaro. — Ouvi tua história. É muito bonita. Que queres de mim?
— Quero ouvir seu canto.
— Não quero. Todos os pássaros cantam e eu não quero cantar como os outros.
— Não precisa cantar como os outros. Canta por si mesmo.
— Não quero.
— Então, posso lhe contar uma história?
— Faça como quiser.
— Era uma vez, uma velha senhora que adorava espiar a casa vizinha pela fresta da janela. Um dia, quando ela foi espiar o novo casal de vizinhos que se mudara, ela viu tudo preto. Então, ela imaginou que os vizinhos tinham colocado um pano preto sobre a fresta para não serem vigiados.
"No segundo dia, a mesma coisa. No terceiro também e assim por diante. Um dia, no mercado, encontrou uma amiga e perguntou se ela conhecia o novo casal. A amiga respondeu que eles tinham ido embora há alguns dias pois diziam ver o vulto de uma mulher observando-os enquanto dormiam. Quando eles foram embora, apenas disseram que a tal mulher tinha olhos pretos."
— Que história assustadora! — disse o pássaro.
— Sim. Você nunca sabe até onde seus impulsos podem levá-lo e quando se voltarão contra você.
— Tem razão. Mas agora estou com muito medo e não sei se dormirei hoje. Que devo fazer?
— Há um ditado que diz: quem canta, os males espanta. Por que não experimenta? Aposto que não terá mais medo se cantar.
O pássaro pensou e depois disse:
— Pode ser que sim.
Então, abriu o bico e entonou uma cantiga animada.
— Sente-se melhor? — perguntou Rose.
— Sim — disse o pássaro. — Obrigado.
Rose, então, deixou-os e partiu na busca da última. Seus novos poderes a permitiam ver através da névoa que cobriu a montanha ao cair da noite e a levaram até uma cabana onde se assentava uma velha senhora.
— Olá, Rose — disse a velha.
— Como sabe meu nome?
— Ora, é porque eu sou tu — riu ela. — Eu sou a estagnação. Sou todas as vezes que você não se decidiu. Primeiro, quis algo. Depois, não quis mais. Primeiro odiava sua irmã, agora a ama com paixão. Quis ser adulta, agora quer ser criança. Eu não morrerei até que tu pares de estagnar.
Rose pensou um pouco. Depois, contou:
— Era uma vez, um homem que comprou um cavalo. Mas o cavalo morreu, então, ele comprou um cachorro, mas o cachorro morreu. Então ele comprou um gato, mas o gato morreu. Então ele comprou um pássaro, mas o pássaro morreu. Então ele comprou uma carroça e então morreu.
— Qual o significado disso?
— Nenhum. É apenas uma história — disse Rose. — Essa é a vida. Fazemos uma coisa e depois outra. Isso não é estagnar, é seguir. Querer uma coisa e outra é o que mantém meu ciclo girando. Por não querer ouvir os berros de minha irmã, eu fui ao lago. Por não querer acreditar nela. eu a perdi. Por não querer ser criança, eu pude salvá-la e por não querer ser adulta, eu vim aqui. Tudo isso que fiz é ação, não estagnação. Meus indesejos não param o tempo, eles é que me movem.
A velha sorriu, feliz.
— Finalmente posso morrer em paz. Não estou presa na indecisão, estou livre nela. Obrigada, Rose.
Então, recostando-se, a velha morreu.
Rose ficou por ali até ouvir uma voz dizer:
— Teu preço está pago.
Um sopro a envolveu. Quente. Forte. Borbulhante. Ácido sobre a pele. Quando abriu os olhos, estava na floresta dos pau d'arcos. Ela, tão pequena, e o mundo ao redor tão grande.
— Segue teu caminho, pequena humana insolente — disse a voz.
Os novos poderes de Rose haviam sumido. A grandeza e a capacidade de voar, apenas. Mas o aprendizado, que é o maior poder, ela levaria para sempre.
Rose correu para casa. Atrás dela, a montanha sob o sol continuava de pé.
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