XX. Older
O dia havia amanhecido frio e ao decorrer das horas a temperatura diminuira. Passou todo o horário escolar ocupada, não atendia a telefonemas que não fossem de Piper ou Bysh e nem respondia as mensagens que recebia. Seus passos eram apressados, sua mente rodopiava em possíveis cenários de conversas e suas mãos tremiam ao pensar no que seu pai poderia lhe dizer. Richard estava hospedado em um hotel bastante confortável no centro da cidade, não era longe de seu trabalho e nem da casa que compartilhava com Clarice.
Pulou uma poça de água que se mantinha apesar da chuva já ter passado, o fim de tarde ficara nublado e um chuvisco leve ainda se fazia presente. Tentava não pensar no quanto o clima combinava com seu humor. Esperava que a conversa com seu pai fosse menos desgastante do que a que tivera com sua mãe no dia anterior. Chegou à frente do prédio e entrou diretamente para o hall, após ser atendida e anunciada, adentrou um elevador onde três pessoas ricamente vestidas esperavam por seus andares. Ao chegar no sexto andar, saiu sem olhar para nenhum dos que estavam com ela e seguiu direto para o quarto de seu pai, somente duas batidas foram necessárias para que ele abrisse a porta.
- Olá, abelhinha.
A saudou com um sorriso triste, bolsas sob seus olhos denunciavam noites mal dormidas e o cansaço era evidente em cada linha de expressão em seu rosto. Charlotte se jogou para cima dele o abraçando fortemente, seu pai era somente alguns centímetros maior que ela, porém parecia tão pequeno entre seus braços. O homem a apertou como se a qualquer momento ela pudesse desaparecer, aquele gesto fez algo dentro de Charlotte quebrar e antes que conseguisse controlar, lágrimas já desciam por seu rosto.
Parados à porta de um hotel estranho, se consolavam sem saberem os motivos de cada um. Charlotte se sentiu novamente com cinco anos, quando procurava conforto nos braços do pai após alguma nota baixa ou comentário problemático disfarçado de piada de mal gosto que escutava de algum colega. Sentira tanta saudade dele, parecia que seu coração se quebrava e remontava diversas vezes, não sabia como, mas sentia que o mesmo acontecia com ele.
Se afastaram após alguns minutos e ela seguiu para dentro do quarto enquanto ele fechava a porta. O local era como qualquer outro quarto de hotel, um ambiente desprovido de qualquer apego, preparado para a passagem de quem não planejava ficar. Sentou em uma das duas poltronas que ficavam em frente à uma enorme janela, esperou que ele ocupasse o assento à frente para perguntar.
- O que está acontecendo?
Richard desviou de seu olhar e encarou a vista da cidade que se movimentava alheia ao que acontecia naquele velho quarto de hotel. Ele coçou o queixo como se procurasse em sua mente o início de uma explicação, seus dedos da mão esquerda tamborilavam no braço da poltrona azul clara, parecia que envelhecia a cada segundo que se passava. Charlotte encolheu-se internamente, seu pai não parecia estar com pressa para contar o que motivara toda aquela confusão, isso a preocupava já que ele sempre fora um homem prático e prezava por respostas diretas e sem rodeios.
- Acredito que sua mãe não tenha lhe contado nada.
- Nada do que importa. - rebateu, sua voz soando mais dura do que gostaria.
- Ela tem um péssimo tato em relação às pessoas, sempre digo que ela é uma médica maravilhosa porque sabe se distanciar naturalmente. - riu suavemente como se fosse uma piada interna que compartilhava com Clarice, ele ainda não a encarava.
- Bom, nós dois sabemos que ela pode muito bem escolher o tamanho da distância que coloca entre todos, principalmente em relação à mim. - se sentia desconfortável por ver que seu pai ainda a defendia e por estar soando como uma criança birrenta.
Richard pareceu ter entendido por seu tom o que ela estava pensando e o sorriso em seu rosto diminuiu, a mão que estava em seu queixo caiu para seu colo enquanto ele piscava lentamente ao observar o céu mudar de cor aos poucos.
- Sei que ela possui uma ideia totalmente oposta à sua de como seguir a vida, mas ela só deseja o melhor para você, Charlotte. - a encarou com um olhar sincero, continuou antes que ela abrisse a boca para retrucar. - Quando você nasceu ela ficou perdida, nunca admitiu para ninguém, mas eu via a forma como ela segurava você, um pequeno ser humano que a fazia ter vários sentimentos que nunca sonhou ter. Ela se viu em você, viu os medos, inseguranças, batalhas e conflitos. Clarice não queria que você passasse pelo o que ela passou e criou toda uma vida que iria poupá-la da dor, porém não pensou que você iria querer seguir por outro caminho.
- Ela sempre quis me controlar, o que não faz o menor sentido já que era ela quem sempre me dizia que eu poderia ser tudo o que quisesse. Só esqueceu de adicionar que eu só poderia ser o que ela queria que eu fosse. - o interrompeu, não querendo escutar sobre os sentimentos de sua mãe por ela, mas seu pai parecia querer o contrário.
- Ela não é perfeita e você sabe muito bem, mas isso não significa que ela não a ama. Charlotte. - fechou a boca novamente quando escutou seu nome, Richard apoiou os cotovelos nas coxas e inclinou-se em direção à ela. - Você sabe que ela nunca a machucaria de propósito, e...
- Pai, por favor.
Pediu, apertando os olhos fechados com as pontas dos dedos, não queria mais ouvi-lo falar de sua mãe. Não queria que ele a defendesse, não queria entendê-la porque nada iria mudar a forma como Clarice a fazia se sentir. Amava sua mãe, amava tanto que doía no fundo de sua alma o fato dela não ser suficiente para seus padrões, doía saber que mesmo Clarice a amando, só amar não era o suficiente para ela perceber que suas ações, por mais bem intencionadas que ela achasse serem, machucava sua filha a cada discussão. Richard notou seu esgotamento e permaneceu calado por alguns segundos, foi ao encontrar o olhar dele que a Page lembrou o que viera fazer ali.
- Pai, o que realmente aconteceu? E, por favor, não me enrole.
Seu pai abaixou a cabeça e olhou para o chão, os fios brancos que destacavam-se em seu cabelo castanho brilhavam à luz do pôr-do-sol. Nunca havia parado para pensar que ele estava envelhecendo, parecia uma loucura, mas era um fato que não se podia mudar. Quando ele falou, sua voz saiu abatida e envergonhada.
- Não é fácil falar isso para a minha própria filha, mas não aguento mais esconder isso de você, abelhinha. - o apelido carinhoso a fez querer chorar. O ouviu pigarrear antes de começar sua explicação. - Quando você tinha quinze anos, eu e sua mãe passamos por um momento bem difícil. Ela estava ocupada com a expansão do hospital e sobre quem iria fazer parte do Conselho, eu me preparava para a indicação como reitor e não estou estou procurando desculpas, mas o trabalho, estresse e a falta de tempo nos separou. O casamento esfriou, nenhum dos dois procurou fazer algo para mudar, mas eu sentia muita falta dela, na verdade sentia falta de alguém para me fazer companhia.
Ele parou, preparando-se para se levantar da poltrona, mas desistindo e continuando no mesmo lugar. Charlotte não ousou falar nada, somente observava cada movimento dele em silêncio.
- Não queria ter que lhe contar tudo isso, mas as coisas saíram do controle sem que eu previsse. É estranho como uma vida pode mudar de um dia para o outro, o quanto podemos perder e ganhar sem esperar. O quanto um relacionamento pode se mostrar mais frágil do que pensávamos por conta da quebra de confiança.
Charlotte apertou os braços da poltrona, seu corpo tensionou ao prever o caminho para onde aquela declaração levaria. Seu pai continuou o relato em uma voz baixa.
- Eu conheci a Eloise em uma reunião com os novos professores, nos demos bem de início e combinamos de sair um pouco após o expediente. Nos tornamos bons amigos, as conversas eram alegres, não existia pressão quando eu falava com ela, éramos somente duas pessoas desfrutando da companhia do outro e até aí estava tudo bem. Porém. - parou, levantando a cabeça e passando a mão pelo pescoço, claramente desconfortável. - Porém, cruzamos uma linha e não me orgulho em dizer que foi mais de uma vez. Apesar de tudo ter ocorrido tão rápido, para mim foi como se sempre tivesse acontecido e me senti mal e culpado ao decorrer do tempo. Sua mãe percebeu minha mudança, óbvio, e me confrontou, tivemos uma briga horrível e ela me expulsou de casa. Você deve se lembrar de quando passei dois meses em uma viagem a trabalho.
Somente assentiu, lembrava de que os dias sem seu pai por perto eram incompletos. Lembrava também de como sua mãe se arrastava pela casa e quando ela perguntava se estava tudo bem, Clarice dizia que estava somente com um resfriado e a pedia para ficar longe para não se infectar. Sua mãe não passou por bons dias, em algumas manhãs Charlotte jurava que a via limpar algumas lágrimas, mas havia concluído que era coisa de sua cabeça. O fato de sua mãe ter se tornando mais rígida e impaciente também não ajudou em nada para que ela notasse algo a mais por trás em toda a situação.
- Ela me procurou após várias tentativas minhas, disse que só voltaria se fizéssemos terapia e eu jurasse que nunca mais esconderia algo dela, aceitei na hora. Eu amo sua mãe, minha filha, amo tanto que nunca me perdoei pelo o que a fiz passar. Foi covardia da minha parte não ter tentando consertar tudo desde o início, ou pelo menos ter procurado outra saída. - sussurrou a última parte, cobrindo o rosto com as duas mãos. - Ela afirmou que me aceitou porque você não merecia crescer longe de mim e que apesar de tudo ela ainda me amava. Após voltarmos fizemos de tudo para darmos certo, a cada discussão tentávamos conversar depois e reconhecer nossos erros. E estávamos bem.
- Então. - sua voz quase não saiu, ela arranhou a garganta antes de conseguir perguntar. - Então o que houve?
- Eloise apareceu semana passada. Não a via há anos e nem tinha notícias dela, porém ela não voltou sozinha.
Respondeu, retirando do bolso um papel dobrado o estendendo para Charlotte. Ela olhou receosa para o pequeno papel e o pegou, o desdobrou e viu a fotografia de uma mulher com longos cabelos castanhos, ela possuía um sorriso que arrancaria suspiros de muitos e um olhar forte. Desceu o olhar para a criança que a abraçava pela cintura, era um menino de cabelos curtos que sorria alegremente. Sentiu seu sangue gelar, sua respiração falhar ao passo que não sabia o que dizer, não havia dúvidas da semelhança entre ele e seu pai.
- Charlotte.
O ignorou, a foto escorregou de suas mãos quando ela levantou rapidamente. Seu corpo inteiro tremia de sentimentos conflitantes, deu às costas a seu pai, que não fez movimento algum para pará-la, e seguiu para fora do quarto. O caminho até o elevador parecia um borrão a sua frente, sentia que estava a um ponto de desmoronar e não queria fazer isso na frente de estranhos. Apertou o botão para o primeiro andar com a mão trêmula, se abraçou como se pudesse puxar alguma força do fundo de si e fazê-la percorrer novamente seu corpo.
◇ ◇ ◇ ◇ ◇
Henry saiu da galeria de Schwoz com um enorme sorriso no rosto, sentia que sua vida estava prestes a dar uma virada e queria comemorar com o mundo sua primeira vitória. Fez uma chamada de vídeo com Jasper e Chloe os deixando por dentro de todos os detalhes, teve que segurar a vontade de ligar para Charlotte ao lembrar da mensagem que ela havia lhe enviado na noite anterior. Aparentemente a Page estava com problemas em seu celular e não podia atender ligações, então ele se contentou em enviar uma mensagem avisando que tinha algo importante para lhe contar, não sabia o porque, mas queria muito compartilhar aquela parte de sua vida com ela. Após falar com seus amigos resolveu contar a novidade a sua mãe, se dona Siren descobrisse por outras pessoas nunca mais iria deixá-lo em paz. Foi essa ligação que o fez ter que ir até o centro para pegar uma encomenda com alguma amiga do clube do livro de sua mãe.
Caminhava tranquilo pelas ruas do centro, o clima agradável dava ao fim de tarde um ar mágico, porém ao se aproximar de um prédio viu Charlotte sair pelas portas de vidro. Ela não o viu se aproximar, parecia estar imersa em seus próprios pensamentos, pois esbarrou em algumas pessoas e as encarou com uma expressão de desculpas antes de continuar seu caminho. Henry só percebeu que a seguia quando poucos metros os separavam, deveria deixá-la seguir seu caminho, mas algo dentro dele dizia que era melhor saber como a Page estava. Era uma parte que se justificava dizendo que ela era sua amiga e que sendo sua amiga ele tinha o dever de zelar por seu bem estar, o fato dele estar sentindo falta dela ou de sua energia contagiante não tinha nada a ver com aquilo.
- Char. - chamou alto, aproximando-se um pouco mais. - Charlotte, está tudo bem?
Perguntou quando ela parou, ainda de costas para ele, a viu paralisar quando escutou sua voz e deu a volta para ficar de frente para ela. Charlotte olhava para baixo, inspirando o ar profundamente e expirando devagar, ela não o encarava e todo o seu corpo exalava tensão. Henry tocou seu antebraço e a viu tremer, Charlotte inclinou o corpo para frente e apoiou a testa em seu peito, o Hart rodeou seu corpo com seus braços a prendendo em um abraço meio desajeitado. Sentiu seu coração apertar quando ela se aproximou ainda mais, agarrando sua camisa com as duas mãos e escondendo o rosto na curva de seu pescoço. A abraçou mais forte, ficando em silêncio e tentando transmiti-la toda a segurança que conseguia, escutou um soluço vindo dela e logo lágrimas quentes molhavam sua pele.
- Estou aqui. - prometeu, sussurrando eu seu ouvindo e a sentindo assentir contra seu pescoço.
- E-eu sei.
A voz veio quebrada e Henry desejou poder retirar toda a dor de seu corpo, porém sabia que ela não lhe falaria nada, acontecera o mesmo na festa de sua mãe. Charlotte Page era quase um enigma para Henry, sabia que ela amava lecionar, adorava o cheiro de chuva, era teimosa, insistente e extremamente forte, era tão resiliente que o impressionava e possuía um senso de humor irônico. Porém não conhecia seus temores, os motivos de suas lágrimas e nem o que realmente atormentava seu coração. Quando escutou outro soluço percebeu que não importava, tudo o que não sabia sobre ela iria conhecer com o tempo, no momento ele só precisava estar ali por Charlotte assim como ela esteve por ele durante dias.
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