X. To build a home
Ao adentrar a casa, escutou as notas suaves de um violino, o tilintar de taças de cristal e conversas misturadas em um emaranhado de risos, sons de desgosto e provocações. A festa ocorria em um salão localizado à direita da entrada, era um dos locais preferidos de sua mãe e provavelmente o cômodo deveria estar ricamente decorado. Parou em frente a grande escada que dava para o andar superior, olhou ao redor sentindo uma estranha saudade. Lembrava de quando era menor e descia pelo corrimão a uma velocidade que lhe rendia enormes sermões, sorriu ao ver que os quadros que tanto amava e detestava ao mesmo tempo ainda permaneciam ornamentando a entrada.
- Char?
A voz calma e um tanto hesitante a fez voltar a realidade, olhou para Henry que esperava por seu próximo passo, a questão era que ela não queria dar qualquer passo em direção ao salão. Sua avó Mabel a tinha como uma das preferidas, o que ainda não fazia o mínimo sentido, e se Elliot não tivesse exagerado, na hora que a velha senhora com ares aristocráticos soubesse que ela estava "noiva", com toda a certeza iria querer que Charlotte voltasse aos negócios da família e assumisse a presidência de alguma das empresas. Era uma velha tradição que a Page pensava já ter sido excluída de suas vidas, mas pelo visto estava redondamente enganada.
Mordeu o interior da bochecha sentindo seu coração acelerar, não possuía muito tempo para pensar, deveriam entrar logo antes que aquela situação se tornasse ainda mais estranha. Sentiu o aperto de Henry em sua mão, uma breve lembrança de que não estava só no meio daquela confusão. Inspirou profundamente e virou o rosto na direção do Hart, abriu seu sorriso mais confiante e trouxe a superfície toda a etiqueta que seus pais haviam feito questão de que ela aprendesse.
"Sempre devemos saber como nos comportar em qualquer situação, Charlotte Clarice", e sim, sua mãe havia colocado seu nome do meio em homenagem a ela mesma. Seu pai, porém, havia adotado outra abordagem para fazê-la entender o quanto eram importantes as intermináveis lições que lhe eram passadas, "Nunca se sabe quando será necessário colocar uma máscara." E era exatamente isto o que ela iria fazer naquele momento, colocar uma máscara de felicidade e segurança, mesmo que por dentro o instinto de fuga se rebelasse para sair.
- Vamos terminar logo com isso.
Falou confiante, dando passos seguros em direção ao salão com Henry ao seu encalço. Assim que passou pelo enorme portal, sentiu os olhares queimarem sua pele, ergueu o queixo e arrumou a postura em uma clássica pose de Clarice Page. Seus olhos escanearam o lugar à procura de um rosto familiar, em questão de segundos encontrou sua mãe de costas para eles em uma conversa com seus tios e alguns sócios minoritários do hospital. Ainda bem que seu pai estava viajando, com certeza não iria conseguir enfrentá-lo.
- Acho que aquela mulher está lhe chamando.
Henry sussurrou em seu ouvido, olhou rapidamente na direção em que ele apontava com a cabeça, quem encontrou a fez relaxar um pouco. Anne acenava alegremente para ela, ao seu lado se encontrava Julius, seu atual noivo, ele acenou brevemente em reconhecimento assim que eles se aproximaram. Sua prima estava deslumbrante em um vestido rodado de seda rosa que destacava o brilho de sua pele escura, ao seu lado Julius parecia ter saído de um filme do 007.
- Senti tanto a sua falta. - Anne prontamente a abraçou, as pedras geladas de seu colar incomodando Charlotte. - Você não sabe o tédio que é essas reuniões sem você.
- São jantares de família, amor.
- Claro que são. - ironizou após a correção do noivo. Afastou-se de Charlotte e olhou seriamente para Henry. - Você então é o famoso noi...
- Não termine. - a Page logo se apressou para tampar a boca dela, Anne a encarou confusa. - Vovó Mabel tem ouvidos em todo lugar. - sussurrou em tom urgente.
- Então trate já de trocar esse anel para outro dedo pelo menos. - Anne sussurrou no mesmo tom.
Charlotte rapidamente retirou o anel, o colocando no bolso escondido de seu vestido. Olhou ao redor torcendo para mais ninguém ter notado, ainda bem que Henry havia escolhido um anel discreto. O Hart somente inclinou a cabeça quando seu olhares se encontraram, ela sorriu tentando transparecer calma, mas era difícil quando se sentia no centro de uma arena.
- Ela sempre sabe de tudo em alguém momento. - reclamou baixo.
- Você tem razão, ainda não contei sobre isso. - sua prima balançou a mão direita em frente ao rosto de Charlotte, claramente se via um anel delicado com um pequeno, não tão pequeno, diamante que chamava a atenção para o seu significado.
- Isso é incrível, Anne! - exclamou animada, sorrindo sinceramente antes de puxá-la para um abraço. - Fico muito feliz por vocês.
Se afastou dela para parabenizar Julius, que continha um sorriso orgulhoso no rosto ao olhar para a noiva. Observou Henry parabenizar os dois em uma animação confortável, ele estava genuinamente feliz por eles e aquela constatação fez o sorriso de Charlotte aumentar.
- Nossa. Nunca pensei que veria isso. - olhou intrigada para a prima que a encarava com um brilho no olhar, mas Anne somente balançou a mão em um gesto para ela não se preocupar. - Mas sendo sincera, fiquei imensamente feliz em saber que você vai se casar primeiro.
Charlotte sentiu que uma imensa pedra de gelo estava alojada em seu estômago, o alívio de Anne era claro e se sentia péssima por ter que acabar com a alegria da prima, que era uma das pessoas mais próximas em sua vida. Afastou o olhar rapidamente para o outro lado do salão, sua mãe agora conversava com sua avó e isso era péssimo. Contraiu o rosto em uma careta rápida e tentou disfarçar seu desconforto, ignorou o olhar analítico de Julius e nem percebeu que Henry já estava conversando tranquilamente com Anne. O seu foco era nas duas mulheres que caminhavam para um canto mais reservado, não queria imaginar o que elas estariam prestes a conversar, mas o medo de que sua mãe usasse todos os meios que possuía para fazer com que ela não ficasse longe da família quase a paralisava.
- Charlotte, amor, está tudo bem?
- Claro, querido. - respondeu com um sorriso brilhante para Henry, que também sorriu, mas ela notou a preocupação brilhar em seus olhos. - Só preciso conversar algo com a minha mãe. Cuidem dele, por favor.
Pediu aos outros dois que logo começaram um assunto com o Hart, Charlotte apertou levemente a mão de Henry antes de dar às costas à eles e caminhar em direção à sua mãe. Pelo caminho distribuía sorrisos e cumprimentos, não parou para falar com ninguém que a impedisse de evitar o que quer que estivesse prestes a acontecer. Sua avó abriu um sorriso discreto e um tanto firme para ela, a Page somente se inclinou para beijar a bochecha macia dela e virou-se para sua mãe sem dar tempo de dona Mabel falar algo.
- Podemos conversar?
- Pensei ter lhe ensinado a não interromper uma conversa em andamento. - Clarice arqueou levemente uma das sobrancelhas e Charlotte se segurou para não revirar os olhos.
- Não irá demorar, prometo.
- Então, com licença, mãe. - pediu à senhora que assentiu como se desse sua permissão para que elas saíssem e Charlotte sabia que era exatamente isso o que ela acabara de fazer. - Vamos, querida.
Sua mãe colocou a mão em suas costas e a guiou para fora do salão. O toque era quente, carinhoso e ao mesmo tempo autoritário. Nunca iria conseguir compreender sua mãe, ela por vezes era fria, distante, mas em vários momentos era altamente protetora e possuía uma paciência invejável para ensiná-la sobre tudo o que julgava ser necessário. Seguiu a liderança dela enquanto caminhavam por um corredor que dava direto na biblioteca. Ao abrir a porta pesada de madeira, sentiu o cheiro familiar de livros e liberdade que a acompanhou por anos, aquele definitivamente era o local de sua casa que mais sentia falta.
- Imagino que queira conversar sobre seu noivado.
A voz de sua mãe a tirou de outro transe, tinha que se manter firme a realidade. Deu às costas para ela quando começou a examinar as lombadas dos inúmeros livros que permaneciam nas estantes que circundavam todas as paredes. Tocava gentilmente os livros, com um sorriso saudoso no rosto.
- Pensei que você estava falando sobre isso com a vovó. - não via sentido em não ser sincera com ela, pelo menos em questão àquele assunto.
- Deixe-me ver se compreendo, você pensou que eu estaria falando do seu noivado inconsequente para que assim ela pudesse forçar você a retornar ao convívio da família?
Não precisava virar para saber que ela estaria com os braços cruzados e um sorriso descrente no rosto.
- Exatamente.
- Não sei o que você pensa de mim, Charlotte, mas eu não faria isso.
- Não seria a primeira vez que você me manipula, mamãe. - olhou por cima do ombro, a expressão de sua mãe vacilou em um segundo quase imperceptível, mas foi o suficiente para Charlotte se voltar totalmente para ela. - Sei que você não está feliz com as minhas escolhas e que o futuro que planejou para mim não chegou nem perto do que estou construindo, mas ainda quero acreditar que no fim do dia você estará lá para mim.
E era verdade, ela realmente queria que apesar de tudo pelo que elas passaram, todas as discussões, afastamentos e acusações, as duas conseguissem ficar juntas sem que uma delas saísse machucada.
- Não sei o que você quer que eu diga ou faça, Charlotte. - declarou, sentando-se em um poltrona de tecido verde escuro. - Você trouxe ele, pensei que após todos esses dias afastada da família você talvez tivesse voltado a si e terminado esse relacionamento. - era visível o quanto ela se esforçava para não demonstrar o quão irritada se encontrava, mas Charlotte a conhecia muito bem. - Só tenho uma pergunta e quero que você seja sincera, por favor.
Franziu o cenho intrigada, então apoiou as costas na estante, encarando sua mãe sem desviar do olhar firme que ela a lançava.
- Dependendo da pergunta, prometo fazer meu melhor.
A resposta pelo visto havia sido o suficiente, Clarice se recostou na poltrona, as pernas cruzadas onde um pé balançava um salto preto com a ponta dourada, ela tamborilava as unhas pintadas de um azul quase preto no braço da poltrona. Parecia uma rainha pronta para julgar seu súdito e apesar de um lampejo de desconforto ter passado por seus olhos, ela logo começou a analisar Charlotte atenta a qualquer reação. A Page mais nova prendeu a respiração, sentia que a pergunta que sua mãe iria fazer talvez definisse o rumo da conversa que estavam tendo e só queria ir embora sem ter uma grande briga.
- O que você realmente sente por ele?
◇ ◇ ◇ ◇ ◇
Henry sentia que estava deslocado, por mais que Anne afirmasse que nem todos que estavam ali eram da família, ele se sentia como um peixe fora d'água. O que também não o deixava era a sensação inquietante de que Charlotte escondia algo grande dele, essa sensação não o atormentava apenas naquela noite, não conseguia tirar da cabeça que ela o escondia algo há dias e não iria falar o que era a menos que ele a confrontasse. O problema era que o Hart odiava confrontos e provavelmente iria detesta-los ainda mais se tivesse que se impor contra Charlotte.
- Ela vai ficar bem.
A voz doce de Anne o fez parar de encarar o local por onde sua nova amiga tinha saído a alguns minutos, virou o rosto para encontrar o casal o olhando encantados. Aquilo o deixou sem jeito.
- Charlotte sempre sobreviveu a tia Clarice, é apenas mais uma noite normal nessa casa. - Julius afirmou, olhando despreocupado ao redor.
Os três estavam sentados em um sofá circular em um canto do salão, taças de champanhe balançavam em suas mãos e apoiado nas pernas de Henry se encontrava uma travessa com variados canapés. Enquanto Charlotte não chegava ele aproveitaria para jantar, ou o mais próximo de um jantar que conseguiria levando em conta o tamanho daqueles aperitivos.
- Ela é sua tia também? - perguntou confuso à Julius, estava se perdendo na contagem dos primos da Page.
- De sangue não, mas meus pais são muito amigos dela e do tio Richard. - respondeu, tomando um gole generoso da bebida enquanto passava um braço pela cintura de Anne. - Ele é sócio em uma das clínicas dos Page, talvez seja por isso que não se opuseram ao nosso relacionamento.
Agora aquilo chamou a atenção de Henry, ele olhou para os dois confuso, com a boca cheia de canapés não conseguia falar nada. Agradeceu por Anne ter entendido a pergunta silenciosa que ele fazia.
- Nossa família é bem rigorosa em relação a quem escolhemos para casar, vovó Mabel acredita que todo o poder das empresas deve permanecer nas mãos de um Page. Ela herdou tudo do bisa Phil, ele construiu seu legado do zero e foi muito difícil ser aceito nos pontos mais altos da sociedade. - dava para sentir o orgulho dela ao falar de seus antepassados. - Ele começou com uma clínica para os mais pobres, naquela época ele não podia atuar visivelmente como médico por causa das leis que o proibiam, então ele atuou escondido. Com o passar dos anos e conhecendo as pessoas certas, o nome dele foi se solidificando até que a vovó Mabel deu todo um novo significado ao sobrenome Page.
- Eles são donos de várias clínicas ao redor da Costa oeste e de dois grandes hospitais. - Julius completou. - Mas apesar de todo o sucesso, essa família ainda é apegada a tradições meio desnecessárias.
- Julius! - exclamou impaciente.
- É a verdade, querida. - se defendeu, rindo quando ela o beliscou suavemente no braço. Olhou para Henry ao voltar a falar. - Mabel segue religiosamente a regra dos primogênitos, a cada geração que nasce ela dá a direção de um empreendimento a quem se casar primeiro e for um primogênito.
- Elliot e Sabine estão de olho no hospital central, por mais que eu ache que a vovó queira passar ele para mim. - Anne falou baixo, olhando ao redor à procura de alguém que pudesse escutar. - Modéstia a parte, eu sou uma ótima médica e adoraria implementar várias ideias que estou elaborando. Não ia ser ótimo aumentar as cirurgias pró Bono, amor? - seus olhos brilhavam ao perguntar ao noivo, que somente sorriu ao ver a animação dela.
- Alguma coisa me diz que Charlotte não quer que ela saiba sobre a gente. - Henry comentou sorrindo tensamente, olhando para o fim do salão onde uma senhora séria conversava com Elliot perto de uma estátua que ele não reconheceu.
- Ela com toda a certeza não quer. - Anne disse, rindo como se soubesse de algo que era oculto à ele. - Mas acho que sobre isso ela é quem deve contar para você.
- E pelo visto não irá demorar. - Julius falou, olhando para além de Henry.
O Hart virou o rosto a tempo de ver Charlotte aparecer ao seu lado, ela estava tensa, as mãos fechadas em punho e os olhos injetados de uma fúria que ele nunca vira. Levantou-se e ficou de frente para ela, sua expressão deveria ser de pura preocupação já que ela o encarou rapidamente e desviou o olhar ao tentar relaxar.
- Char, o que houve?
Indagou calmamente, percebeu que se deixasse a preocupação transparecer ela iria se sentir culpada, o que não fazia o menor sentido, mas sabia que era isso o que iria acontecer. Como ela não respondeu de imediato, Henry colocou a mão em seus ombros e desceu pela extensão do braço a sentindo relaxar minimamente ao seu toque, quando chegou as mãos, elas ainda estavam fechadas, com cuidado as envolveu e acariciou a pele macia com o dedão.
- Vamos embora.
Ela falou com uma voz firme que o surpreendeu, percebia que ela estava a beira das lágrimas, mas apesar de tudo conseguiu forças para se mostrar segura. Em questão de segundos abriu um sorriso alegre, que ele sabia ser forçado, olhando para o casal que os encarava preocupado e desejou um boa noite gentil. Após abraços e breves despedidas, eles se retiraram do salão sem falar com mais ninguém.
- Vão querer me matar por eu não ter falado com eles, mas não estou com cabeça para isso. - declarou, apertando a mão dele com tanta força que ele teve que segurar uma reclamação. - Desculpe. - pediu, soltando rapidamente sua mão da dele e caminhando mais rápido para a saída.
Ela estava nervosa, tão nervosa que não conseguia focar sua atenção em nada. A conversa com sua mãe claramente não foi boa e os pensamentos que agora povoavam a cabeça da Page com toda a certeza a iriam fazer chorar em algum momento. Só percebeu que estavam descendo a leve rampa para fora da casa quando quase tropeçou em uma pedra, Charlotte caminhava sem olhar para trás.
- Char. - chamou, não tendo resposta. - Charlotte, será que dá pra você parar um pouco?
- Não posso. - afirmou, e ele queria estar errado ao notar o tom levemente embargado na voz dela.
Correu para acançá-la e a segurou pelos ombros quando parou de frente para ela. O peito da Page subia e descia por conta da respiração acelerada, ela mordia o lábio inferior e seus olhos estavam nublados como se lutasse contra algo. Henry levou uma mão ao rosto dela a tempo de sentir as primeiras lágrimas descerem, ela quis se afastar, mas ele não permitiu e a puxou para os seus braços. Charlotte ainda o empurrou, as mãos espalmadas em seu peito, mas logo sua força diminuiu e escondeu o rosto na curva de seu pescoço, se permitindo chorar.
- Desculpa. - pediu, com a voz abafada e embargada, mas sem levantar o rosto.
Henry sentiu uma parte sua se partir ao vê-la daquela forma, não conhecia a fundo todos os medos e sonhos de Charlotte, mas poderia afirmar com certeza de que ela fazia de tudo para não chorar em público. Tê-la ali em seus braços era a prova de uma confiança que o abalou mais do que o Hart gostaria e conseguia entender.
- Sem problemas, meu amor. - garantiu, a abraçando mais forte pelos ombros e sentindo os braços dela rodearem sua cintura.
Henry olhou para a casa iluminada e para a vista de dentro dela através das janelas, conseguiu ver que alguém os observava, de onde estavam não dava para enxergar o rosto direito, mas sabia que era uma mulher. Ela estava com uma mão apoiada na janela e só se afastou quando outra pessoa deveria tê-la chamado já que a mesma virou-se para trás e caminhou apressada para longe. O Hart definitivamente iria colocar aquela noite na sua lista das mais desastrosas, mas por enquanto iria oferecer seu apoio a Charlotte nem que permanecessem toda a noite naquela posição.
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