Capítulo 8
Ouvindo a apresentação, Carmem optou por permanecer algum tempo calada, não só pelo choque com o que aconteceu a pouco diante de si, mas por precaução. Selecionava quase a dedo as palavras que diria a ele, já que testemunhou o quanto poderia ser agressivo. No entanto, todo aquele silêncio começava a deixar o ambiente desconfortável e, percebendo, Sabino resolveu se manifestar.
— A senhora está bem? Parece que vistes um fantasma!
Saindo de seus pensamentos, concentrou-se no dono do par de olhos azuis que estava parado a sua frente. Sorriu, a fim de disfarçar o rubor que se destacava em sua face, e respondeu.
Ah! Sim, claro... está tudo bem. Eu sou Carmen Tercena, a cientista do instituto, mas isso não vem ao caso. O importante é saber se o senhor está bem, já que esmurrou o vidro até quebrá-lo. – O tom de reprimenda não passou despercebido pelo homem. – Deixe-me ver suas mãos. Talvez seja necessário fazer um curativo.
— Não há com o que se preocupar. Elas estão ótimas, veja! – disse, analisando o dorso e a palma repetidas vezes. Haviam alguns cortes nos nós dos dedos e escoriações no pulso direito, mas ele os ignorava solenemente.
— Tenho que me preocupar e muito! Afinal, eu sou a responsável por cuidar de vocês até que despertem por completo! – revelou sem encará-lo.
— Perdão, mas o que quis dizer com "despertem por completo"?
Foi esse momento que ela se deu conta do erro que acabara de cometer. Sua mente se esforçava para criar uma justificativa aceitável.
— O senhor e os seus conhecidos chegaram aqui inconscientes e é meu dever zelar pela saúde de todos. Só isso. – "Parabéns, garota!", pensou.
— Então a senhora é médica e isto é um hospital?
— Não. Eu sou uma cientista e isto é um instituto de pesquisa.
— Dona Carmen, perdoe-me pela franqueza, mas isso não está certo. Uma mulher não trabalha. Deve ser mãe, dona de casa... Tem a mais árdua missão de ser o coração da família, a alma mater.
— Ai meu Deus, eu nunca ouvi tantos absurdos em tão pouco tempo! Não restam dúvidas de que vocês vieram do século passado. – rebateu irônica.
— Isso são modos de uma dama? A senhora está sendo muito impertinente!
— E o senhor está começando a me tirar do sério!
— Senhora Carmen!
— Dom Sabino! Chega!
Por causa da discussão, ambos não perceberam o quão próximos estavam, ao ponto de suas respirações colidirem no curto espaço que ainda restaram entre eles. A temperatura também já não era a mesma. Seria o embate o responsável pelo calor que sentiam naquele momento?
Quando um lapso de sanidade atingiu a mulher, esta desviou os olhos das íris azuis para os ferimentos que começavam a sangrar.
— Suas mãos! – sussurrou.
— O que disse?
— SUAS MÃOS! O senhor me distraiu com aquelas bobagens e eu esqueci completamente de examiná-lo. Vamos até meu escritório, sim?
— Só irei se me explicar o que está acontecendo. Ainda me sinto confuso com tudo isso.
— Certo. – deu-se por vencida. – Tens a minha palavra. Vamos?
Antes que um novo empecilho surgisse, a doutora conduziu o ex-congelado com certa rapidez até sua sala, onde guardava o kit de primeiros socorros mais completo da empresa. Deixou a caixa sobre a mesa e selecionou o material a ser utilizado no atendimento. Acomodou Dom Sabino em uma das cadeiras e, já utilizando luvas de procedimento, iniciou a limpeza dos ferimentos.
— O senhor teve muita sorte! – disse ainda concentrada nas mãos do homem.
— Posso perguntar o por quê?
— Nenhum pedaço de vidro ficou preso. Se isso acontecesse, só poderia ser retirado no hospital. – respondeu, fazendo os curativos com bastante cuidado.
Apesar da fala, ele não esboçou qualquer reação, pois se ocupava em vasculhar o ambiente com curiosidade. Além de estranhar o fato de uma mulher exercer funções fora de casa, também inquietou-se com os equipamentos a que ela tinha acesso. Sentiu-se fora de sua época, como se sua consciência tivesse viajado no tempo.
— Senhora Carmen, poderia esclarecer uma dúvida?
— Acredito que sim.
— Por quanto tempo eu fiquei adormecido?
Ela, que terminava de organizar os objetos na caixa de primeiros socorros, derrubou todo conteúdo no chão, tamanho o susto que levou com a pergunta. "O que diria a ele?", "Como responder aquela pergunta sem falar a verdade?".
— Senhora, por quanto tempo eu fiquei adormecido? – repetiu, demonstrando sua irritação diante daquele silêncio.
Não havia outra alternativa. "Seja o que Deus quiser", pensou.
— Foram quatro dias inconsciente...
_ Hum... Não é do meu feito dormir tanto tempo, mas...
— E 108 anos congelado! Pronto, falei! – revelou, cortando-o.
— O que disse?
— O que acabou de ouvir. O navio... Oregon, não é? Afundou em 1910, correto?
— Decerto que sim.
— Pois bem. O senhor, sua família e seus amigos ficaram presos em um bloco de gelo por 108 anos, até serem resgatados e trazidos para cá.
— A senhora está se escutando? – questionou incrédulo. – É impossível sobreviver por mais de um século, especialmente nessa condição!
— Mas aconteceu! Por obra e graça do divino ou qualquer outra entidade, vocês chegaram em 2018 em perfeito estado de saúde. – retrucou impaciente.
— Eu custo a crer!
Antes que Carmen pudesse lhe responder, o celular vibrou no bolso do jaleco. Era Samuca avisando que já estava na entrada da Criotec com Julieta e Aurélio.
— Venha comigo. – ela ordenou e seguiu pelo corredor, sendo acompanhada por Dom Sabino.
O curto caminho foi feito no mais absoluto silêncio. Apesar da irritação, o homem não deixou de notar a beleza da cientista, que em nada se assemelhava às mulheres que conhecera em sua época. Ela possuía um ar jovial, ao mesmo tempo em que era firme nas palavras e ações. Os olhos escuros brilhavam durante o desempenho de suas funções e a elegância na postura completava o hall de características que a tornavam única. "Uma sílfide!", decretou mentalmente.
Assim que se aproximaram do portão, avistaram o rapaz e o casal na área externa do prédio. A mente de Dom Sabino, antes atordoada, deu espaço ao alívio. Aurélio, que retornava ao instituto pela primeira vez após despertar, abraçou o amigo de infância e permitiu que duas ou três lágrimas rolassem pelo rosto.
— Teotônio, é muito bom vê-lo desperto! – disse, se afastando um pouco para olhá-lo. – O que houve com suas mãos?
— Nada demais. Também folgo em saber que está bem. Dona Julieta! – voltou-se para a rainha. – É um prazer reencontrá-la.
— Igualmente, Dom Sabino! Fico feliz que tenha acordado tão bem disposto.
— Até demais, eu diria. – Manifestou Carmen. – O amigo de vocês quebrou o vidro de uma das cápsulas.
— Típico! – decretou Julieta, mesmo sorrindo.
— Compreendam. Aquela coisa estava me aprisionando, era o único recurso de tinha.
— Se o senhor tivesse esperado mais dez segundos, eu teria acionado o controle manual. – a cientista rebateu.
— Bem, eu... eu peço sinceras desculpas. E você, meu jovem? – direcionou-se ao mais novo. – Qual seu nome?
— Ah, eu sou Samuel Tercena, filho da Dra. Carmen.
— Filho? – surpreendeu-se.
— S-sim... filho. – ela confirmou. – Algum problema?
— De jeito qualidade. É que a sua pessoa difere em muito das mães de minha época. Creio que, assim como dona Julieta, a senhora tenha gerado seu herdeiro na mais tenra idade. – falou admirado.
As mulheres ruborizaram diante do inusitado elogio, enquanto Aurélio segurava o riso.
— Bom... –Samuca pronunciou. – Já que estão todos entregues, eu vou pra casa. Tenham uma boa noite. Mãe, se precisar de alguma coisa, é só me ligar.
— Está bem. Dirija com cuidado. Boa noite! – respondeu, dando um beijo em sua testa.
O relógio marcava onze horas quando os quatro retornaram ao prédio da Criotec, acomodando-se no escritório de Carmen.
— Meus amigos, o que está acontecendo conosco? Eu me lembro da viagem à Patagônia, da colisão com o iceberg... E agora desperto com a notícia de que já se passaram 108 anos do acidente!
— Dom Sabino... – Julieta buscava palavras para explicar. – Por alguma razão, nós sobrevivemos ao naufrágio do Oregon e o congelamento preservou nossos corpos durante esse tempo.
— Isso quer dizer q-que... somente nós estamos v-vivos?
— Não! – Aurélio interveio. – Nossas famílias e também os Benedito estão aqui. Apenas não despertaram.
— Então minhas filhas... minhas três Marias...?
— Estão seguras! – afirmou a cientista, segurando nas mãos do homem.
— Eu preciso falar com elas. E com minha esposa, imediatamente!
— Isso não será possível. Todos permanecem inconscientes e um despertar forçado comprometeria seriamente o estado de saúde. Poderia ser fatal. – foi direta, deixando os três abalados.
— Senhora. – Aurélio iniciou. – Já que falar com eles não será possível, pelo menos nos deixe vê-los, por favor. Não são só as nossas famílias que estão lá dentro, mas acima de tudo, o que nos restou de nossa época.
O pedido sensibilizou ainda mais o coração de Carmen, que já sentia os olhos marejarem. Como ser humano e, especialmente, como mãe entendia perfeitamente a angústia que habitava aqueles corações.
— Vamos, sigam-me. – disse, andando calmamente em direção à porta de seu escritório e sendo seguida pelos ex-congelados.
Mais uma vez, a doutora se viu cruzando aquele corredor no mais absoluto silêncio, ainda que estivesse acompanhada. Dom Sabino, Julieta e Aurélio concentravam-se em seus pensamentos, tão difusos e, ao mesmo tempo, conectados. Quando adentraram na sala de criogenia, se dirigiram aos espaços ocupados pelos seus filhos e demais familiares.
O patriarca dos Sabino Machado dividia-se entre as cápsulas de Marocas, Nico, Kiki e, por fim, dona Agustina. Curiosamente sua expressão era tão serena quanto as delas. Pareciam dormir o mais profundo dos sonos, alheias a toda confusão que as cercava. Questões como "O que diria quando despertassem e tentassem retomar a vida anterior ao naufrágio?", "Como poderiam sobreviver neste aparente novo século?", "Seria capaz de protegê-las de um mundo que ele mesmo desconhecia?" rondavam sua mente.
A rainha, por sua vez, dedicava sua atenção a Camilo. O fato de ter sido a primeira a despertar e conhecer o tempo vigente lhe deu coragem e tranquilidade naquele momento. Por cima do vidro, suas mãos se movimentavam como se estivessem acarinhando o filho. Apesar da situação, ela era grata aos Céus por sempre colocarem pessoas importantes em seu caminho, como seu unigênito e Aurélio, quando a vida parecia estar de ponta-cabeça.
O botânico era, visivelmente, o mais emocionado. O mar de seus olhos transbordava em lágrimas silenciosas, sofridas. Diante das câmaras de Afrânio e Ema, lembrou-se de um passado distante, onde a perda da mãe e o fato de ser filho único (como pensava até então) o aproximara cada vez mais do pai. Anos depois, a viuvez o deixou ainda mais ligado à sua menina. Por melhor que fosse o prognóstico, o coração de Aurélio se contorcia ao vê-los naquele estado.
Julieta, percebendo a angústia que acometia seu noivo, afastou suas aflições e foi ao encontro do amado, abraçando-o. Incontáveis foram as vezes que o homem esquecia-se de seus conflitos para socorrê-la e, agora, ela retribuía. Não por obrigação, e sim porque queria, porque sentia-se capaz, porque o amava.
— Vai ficar tudo bem. – ela sussurrava.
Do outro lado da sala, Carmen se ocupava em responder as perguntas de Dom Sabino. Não poderia afirmar quanto tempo a esposa e as filhas do homem permaneceriam desacordadas, afinal cada organismo reagia de uma forma, mas garantia que elas seriam muito bem cuidadas nesse período.
Com toda aquela agitação o patriarca esquecera-se totalmente de que estava vestido apenas com um traje hospitalar de tecido fino. A doutora, tentando evitar um constrangimento maior, apressou-se em buscar seus poucos pertences no almoxarifado.
— O senhor pode usar o banheiro para se trocar. Seguindo o corredor, é a primeira porta à direita.
Dom Sabino agradeceu e seguiu o caminho indicado. Ao adentrar, espantou-se com o ambiente que se criava diante dos seus olhos. O lugar era amplo, com paredes brancas e peças de mármore bege. No teto, os vários pontos de luz completavam a decoração. O cômodo em nada se assemelhava aos banheiros existentes em sua época, por mais luxuosos que fossem. A comparação entre suas lembranças e a realidade só confirmava o que já sabia: o tempo havia passado.
Quinze minutos depois, ele retornava à sala de criogenia, sendo avistado pelos demais.
— Teotônio, junte-se a nós! – chamou Aurélio, muito mais calmo.
— Agora que todos já se certificaram que suas famílias estão a salvo e o senhor está devidamente vestido, creio que podemos retornar ao meu escritório. Temos assuntos sérios a tratar.
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