Capítulo 6
Dois corpos. A mesma vibração.
Dois corações. O mesmo ritmo.
Duas almas. A mesma essência.
O mais racional dos cientistas ou o mais apaixonado dos poetas não seria capaz de explicar a conexão existente nos enamorados. Um amor que sobreviveu à tragédia e ao tempo, que se recusou a morrer. Talvez estivesse adormecido, esperando o despertar do botânico e da rainha.
Os sorrisos emolduravam os rostos de ambos e o encontro dos olhares emanava paixão, brilho e saudade. Tão rápido quanto seus pés puderam se mover, Julieta diminuiu a distância existente entre ela e Aurélio, abraçando-o como nunca antes.
— Meu amor! – exclamou, derramando algumas lágrimas até então represadas. – Você está bem! Você está vivo!
O homem não conseguia articular as palavras, tamanha era sua emoção. Ainda que não soubesse toda verdade, sentia falta do calor do corpo de sua amada, como se estivessem separados há muito tempo. E, de fato, estavam.
Afastaram-se o suficiente para que as bocas se encontrassem. O beijo, apesar de profundo, era lento. Não havia pressa naquele momento, apenas o desejo de acabar com a saudade que carregavam um do outro. As mãos se posicionaram em seus lugares preferidos: as dela acariciavam a nuca e as costas do botânico, já as dele seguravam com firmeza a cintura da rainha. Quando as línguas se tocaram, o resto do mundo simplesmente desapareceu. Tudo se resumia aos amantes. Esqueceram-se, inclusive, que não estavam sozinhos no apartamento naquele momento.
— Eu acho melhor deixa-los a sós. – Carmen sussurrou ao filho quando este se aproximou dela.
— Concordo. Eu preciso ir pra SamVita. A senhora quer uma carona?
— Sim. – respondeu em um suspiro cansado. – Preciso voltar para a Criotec. Tenho um assunto sério para resolver. Vamos, então? – recebeu um aceno positivo de Samuca.
O barulho da porta sendo fechada despertou o casal, que mesmo a contragosto, precisou se separar em busca de oxigênio.
— Como está se sentindo? – ela perguntou, levando as mãos até o rosto do amado. – Fiquei tão preocupada quando te levaram para o hospital.
— Não se aflija, já me sinto bem. Foi apenas um mal estar devido à confusão do momento. De repente acordei e não reconheci coisa alguma ao meu redor. Na verdade... – fez uma pausa, observando aquele ambiente – ainda não consigo entender o que aconteceu.
— Aurélio, do que você se recorda?
— Até o naufrágio do Oregon, tudo. Minha última lembrança é você dizendo que ficaria ao meu lado pra sempre. Vejo que é mesmo uma cumpridora de palavra. – sorriram. – Depois despertei e, bem, você conhece o resto da história.
Fora a vez da rainha se afastar olhando ao redor, procurando as palavras certas para dizer a verdade. Os dedos se entrelaçavam, denunciando sua apreensão.
— Querido... há uma coisa que tens que saber, mas eu preciso que confie em mim.
— Não é necessário pedir isto, Julieta. É claro que confio em ti. O que aconteceu?
Ela foi rápida e certeira, como um curativo arrancado de uma só vez para evitar a dor.
— Aurélio, estamos no ano de 2018.
**********
Instituto Criotec
Eram quase 08 horas da manhã quando Susana e Carmen se encontraram na parte externa do prédio. A primeira carregava um semblante preocupado, uma vez que seu "pequeno deslize" (como pensava até então) fora descoberto. Já a segunda possuía uma expressão indecifrável. Estava séria, era inegável, mas ela havia se certificado de que suas emoções e pensamentos não transparecessem por seus olhos ou reações. Era esse enigma que mais incomodava a assistente, mais até do que a possibilidade de uma advertência que irá receber.
— Bom dia, Carmen. Queria falar comigo?
— Vamos ao meu escritório!
O trajeto pelo corredor principal foi marcado por um silêncio desconfortável. Assim que chegaram à sala, a cientista deu passagem para que a outra mulher entrasse, fazendo-o logo em seguida. A porta foi fechada e ambas se posicionaram em seus respectivos lugares à mesa.
— Serei breve, Susana. Eu lhe dei instruções claras de cuidar dos pacientes enquanto eu não estivesse presente e que me alertasse sobre qualquer ocorrência. E o que aconteceu? Você deixou seu posto, arriscando a segurança da nossa missão!
— Carmen, eu peço perdão por essa falha, mas como não havia acontecido nada o dia todo, eu pensei que...
— POIS PENSOU ERRADO! – o grito assustou a assistente. – Tem ideia de que enquanto a senhorita passeava, um dos congelados despertou e ficou sozinho sabe-se lá por quanto tempo? ELE QUASE MORREU, SUSANA!
O rosto da subordinada perdeu a cor e suas cordas vocais pareciam temer articular qualquer som. Ao mesmo tempo, a face da cientista ganhava um tom avermelhado, enquanto sua voz era carregada de irritação e desapontamento.
— Eu... eu não... Como ficou sabendo que essa pessoa acordou?
— Não é você quem faz as perguntas aqui, Susana! Limite-se a ficar calada! Nos conhecemos há muitos anos e quando assumi esse caso, você foi a primeira em quem pensei para integrar minha equipe. Mas vejo que cometi um equívoco.
— Carmen, por favor, não jogue fora todo esse tempo de convivência por conta de uma coisa sem valor. – tentou argumentar, percebendo o rumo da conversa.
— Foi você quem jogou sua credibilidade no lixo! Não consegue sequer entender a gravidade do que fez. A vida de uma pessoa foi colocada em risco! Esse caso seria um marco em sua carreira, mas o tratou como algo "sem valor".
— Ca... Carmen... – as palavras morreram em sua garganta, ao mesmo tempo em que os olhos lutavam para segurar as lágrimas.
— Eu sinto muito, Susana. – respondeu em um suspiro. – Sabes o quanto valorizo a lealdade em minhas relações. Jamais poderia trabalhar com alguém em quem não confio. A partir de agora, você está afastada em definitivo dessa missão.
— VOCÊ NÃO PODE ME DEMITIR! – ergueu-se de uma vez.
— Não é uma demissão. – a doutora levantou-se lentamente. – Apenas retornará para suas funções cotidianas no laboratório.
— Como um funcionário qualquer... – desdenhou.
— Sinta-se à vontade para se desligar da empresa. Isso não é problema meu. Eu peço para que deixe as chaves na recepção ao sair. Nosso assunto se encerra aqui.
Aquilo era um ultimato, do qual Carmen não abriria mão. Sem alternativa, Susana acatou a ordem da ex-chefe, levando consigo alguns poucos objetos que a pertenciam.
Do lado de fora, observou pela última vez a estrutura imponente do instituto, prometendo a si mesma que retornaria para o lugar que julgava lhe pertencer. E, assim, partiu.
**********
Pinheiros – Apartamento de Carmen
— 2018?
— Sim.
De todas as reações que Julieta poderia esperar de Aurélio, aquela seria a mais improvável para romper o silêncio que se instaurou no cômodo: risos!
Não um sorriso de canto ou uma risada curta. Eram gargalhadas! Uma crise que fez o tom de pele do homem se avermelhar violentamente e seus olhos lacrimejarem. Precisou sentar-se para não perder o equilíbrio, enquanto tentava – em vão – respirar.
A mulher por outro lado, parecia estática. Nunca presenciara algo tão escandaloso e jamais poderia imaginar que seu noivo era dado a esses rompantes.
— Élio, você disse que acreditaria em mim! Que modos são esses?
— ... Desculpe... Julieta... mas... isso... não faz o... menor sentido... – o riso não ajudava na hora de responder.
— Pare de rir e me escute! Eu também demorei a acreditar. Nós ficamos congelados por 108 anos.
— Meu amor, por quem é, você está variando. – disse depois de se acalmar.
— É a verdade!
— Eu custo a crer!
— Quando você saiu do hospital, não observou os veículos? As ruas?
— Decerto são muito diferentes do que costumávamos ver, mas...
Interrompeu-se diante das ações de Julieta, que andava em direção à janela imitando a forma com que Carmen havia lhe dito a verdade. Buscou no controle remoto o botão que acionava o cortinado de metal e, encontrando-o, vislumbrou mais uma vez o seu lugar de origem.
Aurélio, por sua vez, emudeceu ao se deparar com o novo mecanismo e o cenário que surgia além do vidro.
— Meu Deus... Isso... Isso é...
— A nossa São Paulo. – ela completou orgulhosa.
— E essas construções enormes? O que são?
— Carmen disse que se chamam edifícios. Ou prédios, se preferir.
— É... impressionante!
— Olhe a altura que estamos.
Ambos pareciam crianças em um parque de diversões. O novo século estava pronto para ser desbravado pelos dois. Julieta puxou Aurélio pelo braço, guiando-o por cada cômodo daquele apartamento. Havia aprendido as funcionalidades de alguns equipamentos, como a cafeteira e a televisão, e fazia questão de apresentá-las a seu noivo.
— Tudo aqui é novo, meu bem. Vivo! Cheio de luzes e cores. – ela explicava, enquanto preparava duas xícaras de café. – Experimente!
Assim ele o fez, matando a saudade daquele sabor forte que marcara sua vida em outros tempos.
— Acredita em mim agora?
— 108 anos... – suspirou aceitando a realidade. – Mas e os nossos amigos? As pessoas com quem convivíamos?
— Todos mortos.
Depois de cruzarem o pequeno caminho entre a cozinha e a sala, a rainha retomou a explicação enquanto andavam em direção ao sofá cinza claro com as xícaras em mãos, ainda degustando de uma boa dose de café puro.
— Depois do naufrágio na Patagônia, nós submergimos e ficamos congelados. Foi isso que nos manteve vivos. Aurélio, sobrevivemos eu, você, Ema, o Barão, Camilo e todos das famílias Sabino Machado e Benedito.
— Sim, antes de desmaiar, eu tive um pequeno vislumbre deles dentro daqueles esquifes. Isso significa que os outros passageiros do Oregon...
— Todos se foram. – lamentou a mulher, enquanto observava o líquido marrom ainda quente em sua xícara que está em suas mãos, lembrando brevemente de seus empregados e de sua cunhada, a fazia sentir-se um pouco triste com tais lembranças.
— Julieta, o mundo tal como conhecemos não existe mais?
— Não... Aurélio, eu sei que isso não combina comigo, mas tenho que admitir que estou assustada com essas informações novas que estamos recebendo diariamente. – as mãos dela logo deixam a xícara de café no centro e se apertavam com certa força, tentando aplacar o nervosismo.
— Não há porque se sentir assim, meu amor. – respondeu calmamente, fazendo-a se aninhar em seus braços. – O importante é que estamos juntos e assim permaneceremos.
**********
SamVita
— Mãe, calma, eu entendi toda a história, mas ainda acho a demissão uma atitude radical.
— "Samuca, eu não tive escolha. Se o Aurélio tivesse morrido, seria um desastre!".
— Certo... E já tem alguém pra assumir a vaga de Susana?
— "Ainda não. Antes eu preciso comunicar a decisão ao presidente da Criotec.".
— E enquanto isso...? – o jovem Tercena fez sinal para que Xavier entrasse em sua sala e aguardasse o fim da ligação.
— "Eu não sei... Talvez tenha que estender os plantões... Na verdade, não é isso o que mais me preocupa.".
— Algum outro problema?
— "Sim, mas não gostaria de tratá-lo por telefone.".
— Tudo bem. Passo aí mais tarde. Beijo.
— Precisa de ajuda, Samuca? – Xavier questionou quando o amigo encerrou a ligação.
— Minha mãe está sozinha no caso dos congelados. Susana pisou na bola e foi afastada definitivamente.
— Foi tão grave assim? – pergunta, curioso.
— Quase custou a vida de um deles.
— Samuel, eu sei que esse assunto não me diz respeito, mas não seria melhor se a doutora Carmen e o instituto traçassem uma estratégia de prevenção?
— Pra quê? – a vez de ficar curioso agora era do dono da Samvita, intrigado com essa sugestão do amigo, imediatamente ajeita-se em sua cadeira presidencial e coloca os cotovelos na mesa, apoiando seu queixo nas costas de suas mãos enquanto aguardava a continuação da explicação.
— Ao que tudo indica, essa senhora teve acesso a documentos sigilosos, informações privilegiadas. Em um caso de retaliação, o ideal seria um contra-ataque imediato.
O empresário nada respondeu, porém considerou viável apresentar essa linha de raciocínio para a cientista. Xavier, por outro lado, agradecia secretamente pela irresponsabilidade de Susana. Se tudo corresse bem, a Criotec seria a mais nova cliente no renomado escritório Inglês de Souza.
Quando o relógio anunciou o fim do expediente daquela quarta-feira, o advogado partiu para seu compromisso secreto. A necessidade de passar em sua casa antes e o trânsito caótico do fim de tarde o fez se atrasar para o encontro com Susana.
— Finalmente, homem! Se perdeu em São Paulo? – falou impaciente, dando passagem para os recém-chegados.
— Também estava morrendo de saudade. Como vai a minha desempregada favorita?
— Como as notícias correm! Foi aquele pirralho do Samuel?
— Indiretamente, sim. Eu estava presente enquanto ele e a mãe conversavam sobre a sua falha imperdoável.
— ARGH! MALDITA CARMEN! Mas se ela pensa que vencerá mais essa batalha, está muito enganada. Amanhã mesmo o mundo ficará sabendo o que acontece dentro da Criotec!
— Susanita, Susanita... – Xavier dizia com uma calmaria quase irritante. – Você não vai fazer nada. Não agora, pelo menos. Hoje mais cedo, eu fiz questão de alertar "meu bom amigo" sobre a possibilidade de um ataque seu.
— O QUÊ??? COMO PODE???
— Você é previsível, desatenta para detalhes e deixa rastros do que faz. Não é à toa que está nessa situação. Eu posso apostar como os Tercena estão arquitetando a blindagem do instituto, graças à minha brilhante sugestão. Além disso, estamos conversando há algum tempo e nem se deu conta de que existe uma terceira pessoa nessa sala.
A fala fez a ex-assistente se atentar para a presença da outra mulher que apenas observava o rumo daquele diálogo.
— Quem é ela?
— Seu trunfo contra a doutora Carmen.
— Ei! – fora a vez da inglesa se manifestar. – Tenha modos ao se referir a mim! Uma nobre como eu não pode ser apresentada como membro dessa ralé brasileira!
Visto a expressão confusa de Susana, o advogado achou por bem explicar o ocorrido.
— Esta é Lady Margareth Williamson, uma das congeladas que deveria estar sob a vigilância da Criotec se não fosse o descuido das equipes de resgate.
— Xavier, isso não é possível! Todos que estavam presos dentro daquele bloco de gelo foram transportados para o instituto. Um erro como esse em um caso de segurança nacional seria gravíssimo.
— Exatamente. E essa falta virá à tona no momento certo. Será um xeque-mate na reputação ilibada de Carmen Tercena.
— Certo, mas por que não fazer isso agora? E, antes disso, como você a encontrou?
— SERÁ POSSÍVEL QUE ESSA MOÇA NÃO CONSIGA ACOMPANHAR UMA SIMPLES CONVERSA SEM FAZER PERGUNTAS ESTÚPIDAS?
— QUE PALHAÇADA É ESSA, PROJETO DE CHUP CHUP? MAL CHEGOU E JÁ QUER SENTAR NA JANELINHA!
— As senhoras poderiam se acalmar, por favor?
— CALADO! – responderam em uníssono.
— Pois bem. – ele rebateu impaciente, seguindo em direção à porta. – Lady Margareth, vire-se para conseguir sobreviver nesses novos tempos. Susana, boa sorte nessa fase medíocre da sua carreira.
— Espere! – a ex-assistente pediu resignada. – Qual é o plano?
— Eu vou me infiltrar na Criotec, ganhar a confiança de todos. Será uma excelente aquisição para meu escritório, diga-se de passagem. Depois que conseguir tirar o máximo de proveito, plantarei a bomba e assistirei a explosão. Nesse dia, as senhoras poderão fazer o que quiserem contra quem desejaram.
A estratégia seduziu as mulheres, tão diferentes, mas com os mesmos ideais de vingança. A aliança foi selada naquela noite. A partir dali, o tempo passava a ser um fator determinante para o sucesso do caos.
***********
Instituto Criotec
Após a conversa por telefone, Samuca só desejava que as horas voassem, já que não conseguia mais se concentrar no trabalho.
Desde que se entendia por gente, eram apenas os dois contra o resto do mundo. O pai sumira no mundo sem deixar rastros, mas Carmen assumira mais esse papel com absoluta maestria. Tantos anos depois, a relação deles era baseada no amor mais puro que poderia existir entre mãe e filho. Cada uma de suas conquistas era dedicada a ela e sabia que o sentimento era recíproco. Por isso sentia-se tão aflito vendo-a tão preocupada com a atual situação.
Ainda que quebrasse as regras da empresa, o rapaz levou água e frutas para a cientista, que certamente estava sem se alimentar. Ela, por sua vez, serviu-se de uma maçã prometendo ser a última vez que cometia aquela "transgressão".
— Agora podemos retomar nosso assunto. O que está te perturbando?
— Essas pessoas. – foi direta. – O que será deles quando despertarem. Samuel, eles não têm documentos, um lugar para se abrigarem ou meios para conseguirem um emprego. A ciência diz que meu trabalho termina quando todos estiverem acordados e não oferecerem qualquer tipo de risco à sociedade.
— Mas...?
— Mas antes de ser uma profissional reconhecida e respeitada, eu sou humana e não posso simplesmente virar as costas para os desafios que eles terão daqui pra frente. Na verdade, só o fato de tê-los instalado em minha casa já viola as regras.
— Convenhamos que a senhora nunca foi 100% razão. – disse divertido. – É a sua sensibilidade que te destaca dos demais. E eu tenho uma ideia que soluciona essas questões de uma vez.
— Que ideia?
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