Capítulo 4
Nenhuma delas saberia dizer por quanto tempo permaneceram naquele chão, abraçadas, enviando e recebendo forças uma para a outra. A cabeça de Julieta repousava sobre o ombro esquerdo de Carmen, enquanto seus longos cabelos eram acarinhados pela cientista. A onda de soluços se aquietava aos poucos, a respiração retornava ao compasso e as últimas lágrimas rolavam pelo rosto. Estava visivelmente mais calma, mas não tinha a menor intenção de desfazer aquele abraço. Desde que Aurélio entrara em sua vida, ela aprendera a valorizar esses gestos de afeto e, naquele momento, ainda tão confusa, era tudo o que precisava.
— Ele me salvou. – iniciou a rainha, ganhando a atenção da outra mulher. – Por muitos anos, eu fui obrigada a me transformar em uma fortaleza e controlar tudo que me cercava, mesmo que a dor me destruísse dia após dia. Aprisionei meus medos, meus traumas... E isso quase custou a minha humanidade. Até que o destino, talvez cansado de ser tão cruel comigo, colocou Aurélio em meu caminho. De início, eu fiz de tudo para afastá-lo, mas fui traída pelo meu coração que resolveu se render àquele petulante. – sorriu ao lembrar-se de como o chamava. – Ele enxergou algo em mim que nem eu mesma conhecia, jogou por terra cada barreira que havia construído, me ajudou a expurgar meus demônios, me devolveu a vida. Depois do nascimento do meu filho, a chegada de Aurélio foi a coisa mais importante que me aconteceu. Eu não sei viver sem ele e também não quero aprender.
— Julieta, olhe pra mim. – as duas agora estavam frente a frente, sustentando o contato visual. – Não tenha medo. Um amor como esse, que foi capaz de atravessar o tempo sem perder a força, não vai sucumbir agora. Acredite, Aurélio vai te ouvir e despertará antes do imagina.
As palavras de Carmen traziam conforto, mas um detalhe acendeu a curiosidade da ex-congelada.
—"Capaz de atravessar o tempo"... O que isso significa?
Só então a cientista percebeu que Julieta talvez não tivesse noção da época que estava. Desde que abriu os olhos, o mundo dela se resumia à sala de criogenia e o escritório anexo. Forçou o cérebro a encontrar uma resposta rápida.
— Eu... eu quis dizer que... esse sentimento parece ser antigo, pela forma que você o descreveu...
— Na verdade, foi tudo muito rápido. Um ano, até a data do naufrágio. Gostaria de ser mais precisa, mas não sei por quanto tempo fiquei desacordada. Dois ou três dias, talvez?
— Err... Julieta... Foram muitas emoções para poucas horas, você está bem, porém ainda precisa de cuidados.
— Decerto. Estou tão cansada que poderia dormir por cem anos. Você poderia me levar pra casa? Tião e Mercedes devem estar aflitos sem notícias.
Cada fala de rainha era uma preocupação extra para Carmen. Como explicaria que ela provavelmente não possuía mais nada do que construiu? Que seus conhecidos estavam mortos há quase um século? E o principal: Que havia despertado em 2018?
Deu-se conta, também, que todos os congelados passariam pela mesma situação de Julieta: precisariam de muita ajuda para se adaptarem ao novo tempo, sob o risco de não conseguirem sequer sobreviver.
Mexendo freneticamente em seus cabelos curtos, a cientista tentava encontrar uma solução para o novo problema.
— Po... pode deixar que eu mando notícias a quem você quiser, mas por hora, é mais prudente que venha comigo.
— E para onde vamos?
— Para minha casa!
— Sua casa?
— Apartamento, na verdade.
— Apartamento? O que é isso? E se os outros acordarem? Não podem ficar aqui sozinhos. – Eram tantas perguntas que Julieta tropeçava nas palavras.
— Calma, uma coisa de cada vez. Daqui a algumas horas, minha assistente assumirá o turno. Nenhum deles ficará desguarnecido. Minha prioridade agora é a sua saúde e aqui você não conseguirá descansar o suficiente. Não se preocupe, Susana me avisará se alguém mais despertar.
A rainha soltou um longo suspiro e balançou a cabeça positivamente. Sairia daquela sala em alguns instantes e não sabia o que a aguardava. Seus pensamentos iriam mais além se não fossem interrompidos pela aproximação de Carmen, que trazia seu vestido e botas pretos - que rapidamente substituíram o traje hospitalar - e um pedaço de tecido nas mãos.
— Confia em mim? – perguntou a doutora, vendo a mulher à sua frente fechar os olhos em resposta. Poucos segundos depois, a fita bloqueava qualquer chance de visão da ex-congelada. – A partir de agora, eu vou guiar você, não precisa ter medo.
— A única coisa que me dá medo nesse mundo sou eu mesma. – afirmou serenamente.
— Ai meu Deus, mal te conheço e já te considero! – devolveu divertida.
Ambas riram e logo deram as mãos. Lá estava a sensação boa de cumplicidade, tão presente naquele início de amizade. Carmen posicionava-se à frente de Julieta, encorajando-a a cada passo. Atravessaram a porta da sala de criogenia e seguiram pelo corredor principal. Chegaram perto da saída e as abas de vidro abriram-se automaticamente, causando um sobressalto na rainha.
— O que foi isso?
— Nada demais... – respondeu rapidamente, imaginando como explicaria para uma mulher do século passado que as portas funcionavam apenas por sensores.
— Que barulheira é esta? – perguntou incomodada com o ruído do trânsito de São Paulo.
— Err... Bem... São veículos.
— Carmen, o que está havendo? Até agora você não explicou o motivo para vendar meus olhos!
— Só por precaução. Você disse que confiava em mim, não?
— Disse. – confirmou em um suspiro curto.
— Ótimo. Agora espere aqui. – afastou-se dois passos para abrir a porta de seu carro. Com calma, acomodou Julieta no banco do carona. Fechou a porta e direcionou-se ao lugar do motorista.
— Ah, graças a Deus! Aquele barulho é ensurdecedor! Que tipo de carruagem é essa? – ameaçou tirar o tecido.
— Não, não, não, não, não! – impediu a cientista. – Calma! Eu vou colocar isso aqui para te proteger. Pode tocar se quiser.
— O que é isso?
— Chama-se cinto de segurança! Me escute: você só vai tirar a venda quando eu pedir, certo?
— Está bem. Mas, se me permite a observação, a senhora saber ser bem extravagante.
Carmen apenas observava sorrindo. Desde que assumira o caso dos congelados, sabia que mudanças ocorreriam em sua vida, mas não imaginava que iniciariam tão rápido. Seria capaz de cuidar de Julieta? E os outros? Teria a mesma sorte de relacionar-se bem com eles? Eram tantas questões que apenas o tempo poderia responder, por isso resolveu colocar seu cinto e dar partida no carro. Era hora de irem para casa.
**********
Guarujá, Pernambuco
Assim como Carmen, a vida de Xavier estava de cabeça para baixo desde que resgatara Lady Margareth. O pensamento de que ela seria útil em seu plano contra a família Tercena era o que o impedia esganá-la a cada reclamação ou insulto. Isso porque haviam passado apenas dois dias juntos.
Depois de marcar presença na SamVita, retornou ao local onde hospedara a inglesa.
— Será possível que o senhor não vai me deixar em paz?
— Também é um prazer revê-la. – seu tom de voz estava carregado de ironia. – E caso a senhora tenha se esquecido, esse apartamento é meu.
— Sem dúvida! Em hipótese alguma eu seria dona de um lugarzinho xexelento como esse e, para piorar, em um país atrasado. Vocês não se envergonham de viverem assim em pleno século XXI?
— Pelo visto se adaptou bem aos novos tempos.
— Eu nasci em um país onde o pioneirismo e o desenvolvimento são marcas registradas. Se essa colônia já apresenta equipamentos mais modernos que os de 1910, imagino como estará o avanço na minha amada Inglaterra.
— Ah tá. Lindo seu discurso, mas a senhora poderia fazer a gentileza de calar a boca? Eu preciso telefonar para uma pessoa.
— VEJA LÁ COMO FALA COMIGO, SEU NATIVO MAL EDUCADO!
— Shiu! – com as mãos gesticulou para que ela se afastasse, enquanto a ligação era completada.
— "Ora, ora. Xavier Inglês de Souza!".
— Susana Albuquerque, minha auxiliar de laboratório favorita!
— "CIENTISTA! CI-EN-TIS-TA! Sabe que odeio essa funçãozinha!".
— Está bem, querida. Pode falar agora?
— "Posso... Esse instituto está tão parado quanto os picolés humanos.".
— Você não deveria falar assim... Eles serão seu passaporte para o sucesso e o poder!
— "Não tenho tanta certeza." – disse rolando os olhos. – "Acredita que um deles saiu do freezer e a imbecil da Carmen não me avisou? Eu faço o trabalho mais pesado e tudo o que ganho é um dia de folga!".
— Hum... Típico dos Tercena. Mas eu tenho uma informação exclusiva para você. Quase um trunfo.
— "O que é?".
— Calma querida... Melhor que falar, é mostrar. Amanhã estarei em São Paulo. Onde podemos nos encontrar?
— "Na minha casa, às 18h.".
— Excelente! Ah, antes que eu esqueça, quem foi descongelado?
— "Uma tal de Julieta Sampaio Bittencourt.".
— Julieta Sampaio Bittencourt... Interessante. Bem, minha querida, nos veremos amanhã. Até.
Assim que desligou o celular, Xavier foi surpreendido pela presença da hóspede, que acompanhara a conversa.
— Quer dizer que a Nativa Metida a Rainha não só sobreviveu ao naufrágio, como também acordou?
— Você conhece essa Julieta?
— Ham... Digamos que a Rainha do Café e os Williamson foram sócios durante muito tempo.
— E o que deu errado?
— Esse assunto não lhe diz respeito!
— Engana-se! Mas deixemos isso para outro momento. Eu vou arrumar minhas malas, vamos para São Paulo está noite. Sugiro que se prepare.
— Mas é humanamente impossível chegarmos lá amanhã!
— Não se formos de avião!
— E o que seria um avião?
— Você verá, minha Lady! – finalizou Xavier com um sorriso triunfante diante da confusão de Margareth.
**********
Pinheiros, São Paulo
Faltavam poucos minutos para o meio-dia quando Carmen e Julieta adentraram o apartamento da cientista, que não deixou de guiar a amiga enquanto desviavam da mobília.
— Já posso tirar esta venda?
— Agora sim. Um momento que eu vou desatar esse nó.
Era a segunda vez que Julieta abria seus olhos no novo e desconhecido tempo, e mais uma vez era surpreendida pelas imagens que se formavam em seu campo de visão. Branco, cinza e preto dominavam as paredes e separadores de ambiente, enquanto uma cartela de cores quentes estava presente nos vasos decorativos, peças de cozinha e nas flores. A rainha sorriu ao notar um pequeno buquê de rosas vermelhas no centro da mesa de jantar.
— São as minhas favoritas! – pontuou e, em seguida, continuou explorando cada canto com o olhar curioso. – Como disse que esta habitação se chamava?
— Apartamento.
— É deveras interessante. Você tem muito bom gosto.
— Obrigada. E essa nem foi a minha maior realização. – acrescentou divertida. – Bem, acredito que você queira tomar um banho, comer alguma coisa... Pode ficar no meu quarto, se quiser. Lá poderá descansar melhor.
— É muita gentileza de sua parte, Carmen. Folgo em saber que existem pessoas tão nobres assim. – sua fala era sincera.
Assim que adentraram no cômodo, Julieta deparou-se com a enorme cama que ocupava quase todo o espaço, mas o que lhe roubou a atenção foram os pontos de luz no teto e sobre a cabeceira.
— O que são esses pequenos lampiões?
— São lâmpadas. Funcionam através da eletricidade.
— Eletricidade! Dentro das casas?! – exclamou surpresa. – Meu Deus, até parece um novo mundo!
— É... um novo mundo... – repetiu, sem saber o que responder. – Fique à vontade. Aquela porta à direita dá acesso ao banheiro, tem toalhas limpas e um roupão lá. Se precisar, estarei no quarto de hóspedes.
— Carmen! – chamou rapidamente. – Você mora aqui... sozinha?
— Sim. Meu filho passa por aqui às vezes, mas o apartamento é só para mim.
— Filho? Vo... Você é mãe?
— Sou. De um rapaz. Samuel tem 23 anos.
— A mesma idade de Camilo. Estou tão aflita sem notícias dele.
— Julieta, nós deixamos o instituto há três horas. Ele está bem, todos estão. Relaxe. À noite, quando eu reassumir meu posto, te levarei comigo. É uma promessa! – finalizou, tranquilizando a rainha.
**********
Instituto Criotec
— Quer dizer que foi só eu virar as costas para vocês começarem a sair do freezer? – Susana debochava enquanto caminhava pelas cápsulas criogênicas. – Não vão me responder? – olhou de um lado para o outro. – Ah... Animem-se, meus caros picolés! Não vai demorar para eu assumir este caso, então é bom se acostumarem com a minha presença. – apenas o riso forçado e o barulho dos saltos contra o chão cortava o silêncio.
Percorreu o corredor principal e parou em frente à porta de madeira onde jazia o nome da Dra. Carmen Tercena. Entrou e dirigiu-se ao seu local favorito: a cadeira de couro preto, estilo presidencial. Dali era possível observar todos os cantos do amplo escritório, tão ambicionado pela assistente. A sensação de poder era um bálsamo aos sentidos de Susana.
— Tudo isso deveria ser meu... há muito tempo. Mas eu não me dou ao luxo de errar duas vezes. E ninguém brinca com Susana Adonato!
Convencida de que mais nada aconteceria naquele dia, deixou seu jaleco no armário de funcionários, pegou a bolsa e saiu antes do fim de sua jornada. Seria apenas uma atitude insubordinada, se o alarme da sala de criogenia não tivesse soado avisando que mais uma câmara havia despressurizado.
Lá dentro, o homem se debatia como se estivesse imerso em um pesadelo. Rápidos flashes passavam por sua mente. O tremor. A água. Gritos. Orações. Pedidos de socorro. Uma promessa. "Estou aqui com você". O frio. A escuridão.
Num impulso, o par de olhos azuis se abriu e os pulmões puxaram a máxima quantidade de ar que conseguiram. Piscava algumas vezes buscando focar a visão, mas parecia uma missão impossível. Reuniu o que restava de força em seu corpo e, como um suspiro, chamou.
— Julieta.
**********
Pinheiros, São Paulo
"Batemos em uma geleira!"
"O navio vai afundar!"
"Mulheres e crianças primeiro!"
"Meu amor, embarque!"
"Não sairei daqui sem você!"
"Por favor, Jul..."
"Ao seu lado, pra sempre. Se lembra?"
Castanho e Azul.
"Eu te amo!"
— Aurélio!
Foi a primeira pessoa que lhe veio à mente e, por conseguinte, aos lábios quando se livrou das lembranças do naufrágio. Seu coração batia apressadamente, como um sinal. Ela sabia. Somente ele era capaz de descompassá-la daquela forma.
Levantou-se em um salto e correu desajeitada pelo apartamento até encontrar quem procurava.
— Carmen, temos que voltar! Aurélio despertou!
Por muito pouco, a cientista não engasgou com o café que tomava. Levantou-se da mesa, indo de encontro à mulher.
— Julieta, respire fundo. Você está pálida, trêmula. – preocupou-se.
— Ele acordou! – uma lágrima teimosa rolou por seu rosto. – Eu sei. Eu sinto! Vamos, por favor.
— Tudo bem. – respirou fundo antes de prosseguir. – Mas antes... preciso te mostrar uma coisa. Você pode me acompanhar, por favor?
Sem entender, a rainha apenas atendeu ao pedido, parando em frente ao que parecia ser uma janela. A anfitriã acionou um dos botões do controle que trazia nas mãos e, como mágica, as cortinas desbloquearam lentamente a visão externa. Sem acreditar no que estava acontecendo, aproximou-se ainda mais da estrutura de vidro, ao passo que a surpresa dominava seu rosto.
— O que... é isso?
— Isso é São Paulo. – revelou com cuidado. – Pinheiros.
— O... onde nós estamos? – questionou estática, reconhecendo o nome do local onde morava.
— É isso... São Paulo, bairro de Pinheiros.
Por mais que tentasse, Julieta tinha dificuldade em articular as palavras. Sua mente estava um caos, fazendo paralelos entre o que se lembrava e o que seus olhos lhe mostravam.
— Mentira! Você está mentindo! – sua fala era ácida.
— Não estou! Olhe para mim! Eu prometi que a levaria para rever sua família e vou cumprir, mas eu preciso te dar um choque de realidade. – a seriedade era palpável em sua voz. – Nós não estamos em 1900.
— 1910.
— Nós... estamos em... 2018!
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