Capítulo 2
— Então, Susana, o que é tão urgente? – pergunta Carmen já andando em direção à sua mesa, logo sentando-se em sua cadeira e agora olhava diretamente pra assistente, esperando para que a mulher continue a falar.
— Dra. Carmen, conforme a sua orientação, o laboratório analisou as peças de roupa e acessórios dos congelados, além das amostras de DNA. Os resultados estão aqui. – informou a assistente, enquanto entregava o conjunto de pastas. – Também mandaram o relatório clínico de cada um.
— Tão rápido assim? – questionou, vislumbrando as informações que continham nos relatórios.
— É um caso peculiar, tão inusitado que despertou o interesse do governo. – Disse em um tom levemente surpreso. – Eu, pessoalmente, jamais me deparei com algo parecido em toda minha vida.
— Tem a sua primeira vez para tudo Suzana, agora vamos ao que interessa. – sentenciou a cientista.
— Primeiramente, as análises do material genético indicaram quatro grupos de parentesco, possivelmente filhos e pais. O maior deles é composto por sete pessoas: cinco moças com pouco mais de 20 anos e um casal mais velho, próximos aos 65 anos, as vestimentas deles são as mais simples entre todos. Provavelmente não eram membros da aristocracia – Iniciou a exposição dos resultados enquanto seguia em direção à mesa de Carmem, sentando-se em uma das cadeiras. Assim que ficaram frente-a-frente, a assistente retirou as fotografias que acompanhavam os laudos e disponibilizou-as sobre o móvel.
— Empregados? De uma dessas famílias, possivelmente? – questionou alternando os olhares entre Susana e as imagens dos primeiros pacientes.
— Ou passageiros da terceira classe... Enfim, o fato é que nenhum deles, assim como os outros pacientes, possui marcas de vacinas ou anticorpos para as doenças mais comuns. E só para completar, apenas uma das moças usava aliança, apesar de não ser a mais velha, aparentemente.
— Talvez pertençam a algum desses grupos que se recusam a se vacinarem. E por que o espanto com a jovem casada? – arqueou uma das sobrancelhas enquanto perguntava aquilo em um tom de curiosidade.
— A tradição da época era que a primogênita tinha a preferência do casamento, mesmo que as outras filhas já fossem comprometidas.
— Você fala como se tivesse certeza de que eles foram congelados há décadas. Será possível, Susana? – seu tom de voz denunciava o quanto estava intrigada com a história.
— Dra. Carmen, essa é só a primeira parte. – a mulher fez uma breve pausa antes de retomar a fala. – O segundo grupo possui cinco pessoas: um casal na mesma faixa etária do anterior, uma jovem e duas crianças, gêmeas bivitelinas. Os resultados mostraram que o homem trajava uma sobrecasaca feita de uma fina lã de carneiro, costurada à mão e tratada em tear manual. A análise química das fibras diz que o tecido tem... tem mais de um século! – relatou extremamente surpresa.
— Então é uma antiguidade! – Carmen compartilhava da reação da assistente.
— É mais do que isso: o tecido está perfeito, sem sinal de desgaste, assim como as roupas das mulheres! Nem mesmo a água do mar, como todo poder de corrosão por causa da salinidade, foi capaz de deteriorá-lo!
— Fibras intactas... – externava seus pensamentos, levantando-se e andando de um lado para o outro do escritório – Eu quero uma segunda análise. O sal também pode ser um poderoso conservante. O sódio, o iodo...
— Não se a peça estiver submersa. – interrompeu. – Doutora, o mais velho dos congelados, que pertence aos terceiro grupo genético, usava um anel de ouro com um diamante vermelho no dedo mínimo esquerdo. Esse é o exemplar mais raro da pedra e, segundo a história, somente membros da nobreza tinham permissão para utilizar tal joia. A julgar pela faixa etária dele que é próxima aos 95 anos, a barba típica dos homens da época e a simbologia do acessório, podemos afirmar que esse homem se destacou no período imperial, talvez como barão ou visconde. – fez uma pausa, ponderando sobre o que diria na sequência. – Imagine um senhor que conviveu com a monarquia despertando em pleno século XXI? – afirma em tom de brincadeira, logo não conseguindo esconder um sorriso nos lábios que estava a se formar neste exato momento.
— Susana, esse não é o melhor momento para piadas! Atenha-se aos fatos! – repreendeu-a. -- Alguma informação sobre a família dele?
— Sim. Ele possui um filho de cerca de 45 anos, que não usava a mesma joia do pai, já que os títulos de nobreza não eram hereditários e, por fim, uma jovem da mesma idade das moças do primeiro grupo. Consideramos que ela seja a neta. Assim como o patriarca, ambos trajavam roupas elegantes, ele com um terno escuro de 03 peças e ela com um vestido longo e detalhes bordados à mão, feitos de tecidos possivelmente importados e que também resistiram à corrosão da água. É intrigante que não haja sinal de mofo ou bolor, que seria comum nesses casos!
— Claro... – suspirou já convencida pelos fatos – Tudo se encaixa então?
— Até o momento sim, Dra. Carmen. Mas ainda falta o último grupo e esse pode ser o mais surpreendente. – Susana afirmou com cautela.
— O que pode ser mais surpreendente do que tudo isso?
— Veja o laudo da mulher que usava o vestido preto: a jugar pela cor usada e o par de alianças no dedo anelar esquerdo, pode se tratar de uma viúva. A idade dela gira em torno dos 40 anos, porém existe uma mecha de cabelo branco muito nítida na parte frontal da cabeça. Poderia ser uma marca de nascença, mas acreditamos que seja por fator emocional. Ela tem algumas cicatrizes pelo corpo e os ossos do antebraço esquerdo possuem uma calcificação em espiral, o que sinaliza uma fratura.
— Mas fratura espiralada é resultado de torção intencional, não de queda ou colisão.
— Exatamente, doutora.
— Essa mulher teve o antebraço torcido... ao ponto de quebrá-lo! - constatou sem conseguir esconder o desgosto em seu tom de voz.
— Outro detalhe: o rapaz mais jovem, de cerca de 23 anos, é filho dela.
— Filho? Então ela foi mãe na adolescência! 17 anos talvez! Ele também possui alguma marca?
— Não. Apenas essa senhora. É verdade que as mulheres engravidavam cedo naquela época, mas se somarmos esse fator com os sinais de agressão e os fios brancos como uma resposta do organismo a um possível dano emocional, podemos dizer que ela foi vítima de violência doméstica.
Carmen sentia um nó se formando em sua garganta após o último relatório, demonstrando que tantos anos lidando com pesquisas, cálculos e explicações lógicas não foram capazes de afetar seu lado humano. Havia passado por duras experiências durante a vida, mas nem de longe se comparava ao que a paciente sofrera.
— Doutora? – chamou Susana, tirando a cientista de seus devaneios – Está tudo bem?
— Sim... Creio que, diante desse histórico detalhado, não restam dúvidas de que essas pessoas foram congeladas no século passado.
— E bem no início. Há mais de 100 anos!
— Certo... Obrigada pela rapidez, Susana. Você fez um excelente trabalho. Pode ir para casa e tirar o dia de folga amanhã.
— Agradeço, Dra. Carmen. Boa noite!
Ao encontrar-se sozinha em seu escritório, a responsável pelos congelados tomou em mãos o laudo da jovem viúva assim que encontrou o mesmo no meio da bagunça que fizera com os papéis dos outros laudos, que trazia uma fotografia de seu rosto pós-resgate. Parecia tão serena... Os pensamentos giravam em sua mente e ela deixou escapar mais um suspiro pesaroso.
— O que fizeram com você?
**********
Algumas horas depois, o nascer do Sol ditava o início de mais um dia frenético na cidade de São Paulo.
Desde a confusão na praia de Boa Viagem, Samuca e Xavier não haviam se encontrado, mas aproveitariam a reunião marcada para colocarem o assunto em dia. Nesse período, trocaram apenas mensagens rápidas, numa forma de dizerem "eu estou bem, não se preocupe".
O presidente da Samvita decidira retornar à capital assim que soube que a mãe estaria à frente do caso na Criotec, para dar apoio emocional e, se necessário, financeiro, porquê se for depender do atual dono daquele empreendimento, capaz do mundo acabar e o homem não se importar com nada do mundo adulto.
— Xavier, até agora eu não entendi o que você fez depois de todo aquele caos do fim de semana.
— Samuel Tercena, pela enésima vez, eu fui levado pela correnteza até um local deserto da orla. Tentei voltar, mas a área estava isolada e eu não tinha permissão para usar aquele caminho, então precisei fazer um contorno imenso, que me deixou exausto. Quando cheguei em casa, só te mandei um sinal de vida e apaguei assim que deitei no sofá.
— Só isso?
— Só! – afirmou o advogado, escondendo que havia resgatado uma das vítimas e a hospedado secretamente em sua residência na praia. – Mas me conte, como está dona Carmen?
— Dando o sangue para cuidar daquelas pessoas. – o jovem não escondia o sorriso orgulhoso diante da novidade. Sempre foram unidos e, por muito tempo, um só podia contar com o outro – Eles estarão bem. Minha mãe é uma cientista fantástica. Está no ramo há muito tempo, é reconhecida internacionalmente e o principal: recusa-se a fazer aqueles testes absurdos em animais e seres humanos, diferente da maioria dos laboratórios.
— Isso é raro. E como ela consegue avançar com as pesquisas? – questionou após tomar um gole da sua água que estava armazenada em um copo, sendo o mesmo segurado pela sua mão direita, enquanto que a outra, uma vez ou outra, mexia no celular, vendo as notificações e analisando-as, procurando algo que esteja catalogado de importante na mente dele.
— Usando a tecnologia! Os resultados são mais demorados, mas vale a pena se considerarmos as vidas que são poupadas.
— Hum... E ficará sozinha nesse caso?
— Não, não. Ela tem uma assistente de laboratório, Susana Adonato. E depois de toda a repercussão, é capaz daquele presidente mesquinho da Criotec aparecer por lá e finalmente investir nos projetos. Criogenia virou o assunto do momento nos jornais. – informou o rapaz, antes de servir-se de uma xícara de café.
Sem que o amigo percebesse, Xavier começava a colher informações que lhe seriam úteis em um futuro próximo. Lady Margareth era um trunfo importante e, com um pouco de sorte, talvez conseguisse o apoio de Susana. Saindo de seus devaneios, tratou de responder à fala de Samuel.
— De fato! Bom, está quase na hora do almoço. Você me acompanha?
— Claro. Só preciso assinar esses documentos e te encontro no refeitório da empresa. – disse Samuca, finalizando as tarefas que tinha agora e não demorando pra ir ao encontro do advogado.
Quinze minutos depois, não só eles, como todos os funcionários da Samvita, iniciaram suas rodadas de assuntos triviais no intervalo da jornada de trabalho.
**********
O dia passou como todos os outros: rápido demais. Enquanto a maioria das pessoas buscava paciência para enfrentar o trânsito lento e congestionado para que finalmente possam chegar em suas casas, Carmen assumia mais um turno no instituto. Não era adepta ao trabalho noturno, porém a situação exigia o máximo do seu empenho.
Deixando seu material no escritório, vistoriou os inúmeros corredores de paredes brancas pérola com piso de mármore cinza claro e, constatando que estava sozinha, acionou o sistema de segurança.
Havia uma única coisa que a incomodava profundamente nesse caso: esperar um tempo indefinido até que aquelas pessoas despertassem. Apesar de estarem clinicamente estáveis, qualquer interferência no processo de adaptação do organismo dos pacientes poderia ser fatal.
As horas avançavam lentamente e o silêncio imperava em cada ambiente da Criotec, permitindo que a mulher dormisse por alguns instantes e em outros ficava mexendo no celular, procurando alguma forma com que faça o tempo passar mais rápido.
De repente, o alarme da sala de criogenia soou, despertando-a de imediato de um desses cochilos. Ela correu até o local, chegando no momento exato em que uma das cápsulas se despressurizava. A partir dali, um novo capítulo daquela história começava a ser escrito: um dos congelados finalmente havia despertado! Ou nesse caso, era uma congelada que havia acabado de despertar.
— O que... está... acontecendo? Que lugar é esse? – levantou-se devagar e virou-se para a doutora. – Qu... quem é você? – questionou com a expressão nitidamente confusa.
— Acalme-se. Eu sou Carmen – aproximou-se cuidadosamente. – Qual é o seu nome?
Como se estivesse absorvendo a informação daquele primeiro contato, pensou um pouco e reunindo forças, respondeu.
— Julieta, eu me chamo Julieta!
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro