IV. Quatro
É bem verdade que para sobreviver à rotina pesada de estudos do Blasphemous Hampsher é preciso ser uma pessoa no mínimo bastante competente em fingir inteligência. É esperado do colégio mais sofisticado e importante do país que exija o máximo dos seus alunos e entregue uma educação de primeiro mundo, até porque todo o dinheiro da mensalidade precisa ser justificado além do famigerado prestígio em ser um de nós.
Se você deseja estudar em uma universidade de ponta fora do Brasil, é aqui que os seus sonhos começam. Mas geralmente os mais interessados em alcançar esse sonho são aqueles que nunca serão convidados a entrar.
Não que o Blasphemous Hampsher não tentasse criar a ilusão de que o acesso era possível.
Todos aqueles que desejam ter uma vaga no ilustre internato precisam passar por um processo seletivo que nada mais é do que uma prova de conhecimentos para os alunos que irão cursar o nono ano do ensino fundamental. O BH não funcionava como os outros colégios que admitiam pessoas em todos os anos escolares: os alunos eram admitidos no nono ano e as turmas permaneceriam as mesmas até a formatura do ensino médio. Até os dias de hoje (no meu presente, em 2017) houve apenas alguns casos raros de alunos que não seguiram até o fim, mas ainda assim ninguém novo ocupa a vaga daqueles que desistem do BH no meio do caminho.
Era esse o processo. Sempre.
A prova, é claro, era extremamente difícil e feita para que os adolescentes falhassem. Mas embora, em teoria, as únicas pessoas que não dependiam da aprovação para estudar no BH fosse a família Hampshér, na prática a coisa funcionava de um jeito diferente. Alice von Muhlen provavelmente tirou a maior nota da sua turma quando eles prestaram o "vestibular Blasfemo"; Frankie Boaventura, César Clarencer e até mesmo Sebastian Verucca provavelmente também passaram pelo seu próprio mérito. Mas você precisa ser muito inocente para acreditar que alguém como Lucas Colón-Barrington fosse aplicado o suficiente para desbancar centenas de outros adolescentes ricos e garantido sua vaga no internato pelo seu esforço. De fato, ele foi o número 35 na classificação geral de 2007 – o que queria dizer o último. É claro que o nome – e o bolso – e tudo aquilo que a família Barrington podia dar em retorno ao BH contaram muito mais do que a excelência cerebral de Lucas.
Assim como também foi o caso das irmãs Rassum.
Não se tratava de as duas serem estúpidas ou não serem brilhantes o suficiente para o BH, mas para Verônica e Morgana Rassum havia coisas muito mais importantes (e divertidas) do que se preocupar com as suas vidas acadêmicas.
Quando a bola veio na direção de Morgana naquela segunda-feira à tarde, a garota bateu com sua raquete com toda a força e a jogo de volta para o outro lado da rede. A bola bateu na quadra e a adversária a acertou com a mesma força, deixando escapar um som esganiçado com a boca pelo esforço. Morgana correu pela quadra a tempo de conseguir rebater mais uma vez, o suor pingando do seu rosto. O braço quase se distendeu quando ela acertou a bola verde de novo e precisou de um segundo a mais para se reequilibrar, sentindo cada célula do seu corpo responder, trabalhando em uma sincronia perfeita em cada um dos seus movimentos.
Quando ela estava dentro do jogo, o mundo parava do lado de fora. Um Rassum era educado para levar seus objetivos a sério e nunca, jamais, perder uma batalha. Eles eram fortes, destemidos, ousados. Sentiam honra pela sua linhagem traçada pela perseverança e a ganância do homem que fez a fortuna desfrutada pelos seus descendentes até hoje. E embora nenhum dos representantes da família tivesse mais que lutar com a mesma garra que Majid Rassum quando ele deixou a palestina para criar sua futura empresa multimilionária na capital inglesa muitos anos atrás, eles gostavam de pensar que essa mesma fibra corria em seu sangue.
E, de certa forma, isso era mesmo verdade.
Tanto Morgana quanto Verônica jogavam como se suas vidas dependessem disso. Poucas pessoas no Blasphemous Hampsher eram mais competitivas do que aquelas duas e olha que estamos falando de um colégio onde a concentração de fedelhos mimados que não sabiam perder era imensa. As irmãs Rassum possuíam o famoso "sangue nos olhos" com relação a tudo em suas vidas e, como seu pai sempre dizia, o jogo só ficava realmente interessante e finalmente páreo a páreo quando um Rassum disputava com outro.
Disputa essa que muitas vezes saía do controle.
Quando paro para pensar nas irmãs Rassum até hoje ainda consigo sentir a degradação psicológica que ambas sofreram desde a infância. Fazer parte de uma família conhecida pela sua resiliência pode ser uma grande honra, mas era também o maior fardo que uma jovem pessoa precisava carregar. Anwar Rassum havia educado suas filhas para serem as melhores, sempre fazendo-as enxergar os outros com os olhos espertos de quem consegue detectar (e liquidar) uma ameaças a quilômetros de distância. Havia apenas treze meses de diferença entre as duas e elas sempre foram, desde a infância, a grande rival uma da outra.
Era como se Anwar sempre estivesse querendo saber qual delas era a melhor e nunca chegasse a uma conclusão. As constantes disputas aconteciam de maneira literal, como as partidas de tênis na quadra do Blasphemous Hampsher, mas também podiam ser muito sutis, como jogos da mente que ele sempre usava para manipular suas meninas e mantê-las em movimento constante, sempre tentando superar a outra e a si mesma.
Afinal de contas, era disso que os Rassum eram feitos.
Verônica e Morgana cresceram não em um lar amoroso, mas em um ringue de batalha onde todos deveriam estar bem atentos para satisfazer o comandante. E embora as duas fossem colocadas uma contra a outra desde que se entendiam por gente, até mesmo nas situações mais inocentes, as irmãs Rassum se idolatravam.
A bola voou na direção de Verônica, que a rebateu com toda a agressividade que caracterizava sua personalidade. Morgana ainda tentou correr pela quadra para conseguir alcançar o objeto, mas dessa vez não foi capaz. Ela tropeçou nos próprios pés e quase caiu no chão, ainda tentando se jogar e esticando a raquete, mas não foi suficiente. A garota deixou o corpo tombar no chão e se deitou de costas, tão exausta que os músculos pareciam ter se derretido, sentindo o coração retumbar dentro do seu peito. O sol de inverno a contemplava lá em cima, fazendo seu corpo brilhar e o suor descer até o piso verde. Não importava o quanto ela tentasse, sempre acabava falhando quando se tratava de derrotar a sua irmã.
Ela sentiu um peso esmagante apertando seu tórax e levantou o tronco, ainda sentada no chão. Verônica estava do outro lado da quadra arrumando o rabo de cavalo nos cabelos loiros com um sorriso presunçoso no rosto, um sorriso de quem já sabia que não perderia para sua irmãzinha. Ela estava conversando com o treinador, cheia do seu charme de uma víbora que está sempre prestes a dar o bote. Ela própria vivia dizendo que era mesmo uma cobra, porque se não fosse, teria sido picada pelas outras cobras que formavam a sua família.
Morgana revirou os olhos e se levantou, arrancando o elástico que estava prendendo seus cabelos vermelhos. As duas irmãs eram muito parecidas, com as peles amareladas e os olhos oblíquos e compridos que denunciavam sua etnia do oriente médio. Os olhos eram verdes, sensuais, do tipo que faziam as pessoas descreverem-nas como donas de belezas exóticas. Os lábios eram cheios, os corpos compridos, mas nem tudo acerca das duas era igual. Enquanto Ronnie tinha o rosto mais redondo e estonteante, o de Morgana era comprido, assim como seu nariz. Seus traços não eram tão simétricos e perfeitos quanto os da irmã mais velha, ela nunca foi a Rassum mais bonita, mas. Seus cabelos castanhos (ao contrário dos fios loiros de Ronnie) estavam tingidos de um tom bem forte de vermelho, que combinava com a sua personalidade intensa.
O olhar das duas se encontrou enquanto Morgana se aproximava da rede e Ronnie cruzou os braços, insuportavelmente vitoriosa.
― Bom jogo o de hoje, meninas – disse o jovem treinador de cabelos escuros e pele morena. Ronnie esquivou uma sobrancelha, mas Morgana ainda estava irada, com todos os sentimentos e a adrenalina à flor da pele.
― Não fique assim, irmãzinha. Na próxima eu tento diminuir o ritmo pra ver se você consegue me acompanhar – disse Ronnie destilando seu veneno de sempre, deixando escapar uma risadinha um tanto desvairada. As irmãs Rassum podiam até ser conhecidas pela sua força e por serem absurdamente intimidadoras, mas nenhum rumor era maior do que o de que as duas eram completamente loucas.
Morgana não se intimidou, embora seu coração ainda estivesse acelerado e houvesse fogo dentro dos seus olhos. Ela jogou os longos cabelos para o lado e apoiou a raquete no chão, torcendo um pouco o quadril.
― E qual seria a graça disso? – falou, esboçando um sorriso provocativo também. – Não estou interessada.
As duas trocaram um olhar cheio de faíscas e sentimentos cúmplices. Ronnie parecia muito satisfeita. Ela tocou o braço do treinador com uma intimidade desnecessária, sem cortar o contato visual com sua irmã, que não esboçou nenhuma reação.
― O Rodrigo estava me falando agora mesmo sobre como consegui melhorar minha recepção – ela disse, curvando a cabeça de um modo afrontoso. Morgana não disse nada, mas sua linguagem corporal dizia tudo o que Ronnie precisava saber. As duas se conheciam como ninguém, tanto suas qualidades quanto suas fraquezas e, por isso, sabiam se ler sem nenhum esforço.
Era por isso que Ronnie sabia exatamente onde atingir a irmã e por isso que Morgana sabia o quão manipuladora a mais velha podia ser. Era como um vício.
Morg apertou os lábios em um sorriso de reconhecimento, pois aquele jogo era jogado entre as duas desde que usavam fraldas e disputavam pelo mesmo brinquedinho, embora pudessem escolher outros trezentos e permanecer em harmonia. Mas não para as irmãs Rassum; não era isso a que as duas foram ensinadas.
― Sim, sua técnica progrediu bastante desde o início do ano – disse Rodrigo, educado, desvencilhando seu braço gentilmente das garras da loira. Ele segurava uma prancheta nas mãos e o apito estava pendurado no pescoço, pendendo sob a camisa polo branca que ele sempre usava. Morgana encarou seu rosto dourado com aqueles traços perfeitos e a barba recentemente aparada, e molhou os lábios.
Todo mundo sabia que Morgana Rassum eram a maior "piranha", por falta de adjetivo melhor, que habitava o Blasphemous Hampsher. "Meretriz" era o seu apelido e ela parecia vesti-lo com orgulho e nenhuma importância aos comentários negativos. Muito pelo contrário, quanto mais as pessoas falavam dela, mais poderosa ela se sentia. Menos ela ligava, mais ela ria e mais bocas beijava enquanto mostrava o dedo do meio para o resto do mundo.
Talvez fosse por isso que as pessoas se intimidavam tanto pelas irmãs Rassum; uma era uma víbora, a outra adorava colocar as pessoas no seu devido lugar. Ambas podiam ser tão venenosas que, se mordessem a própria língua, a morta seria certa.
― Você também progrediu, Morgana – o treinador continuou a dizer, amigável. – Só precisamos trabalhar na sua respiração, pelo que vejo é isso o que mais está atrapalhando o seu desempenho.
Morgana piscou seus longos cílios para ele e, cheia de malícia, disse:
― Talvez eu precise de algumas aulas particulares.
Ronnie teve que engolir uma risada e Rodrigo apertou a caneta que estava segurando. A garota ruiva esquivou as sobrancelhas, tão confiante que chegava a ser assombroso. Em toda minha vida nunca conheci ninguém tão seguro de si quanto Morgana, ninguém tão inconsequente também. E as duas características combinadas podiam ser a fórmula da destruição.
― Podemos pensar nisso depois – o treinador desconversou. – Bom, meninas, por hoje foi só. Vocês já estão liberadas e nos encontramos na quarta de novo.
As irmãs trocaram um olhar e seguiram juntas para o vestiário da quadra lado a lado. Quando se afastaram o suficiente de Rodrigo, Morgana disse:
― Você é uma cachorra barata.
Ronnie gargalhou e parou de frente para o bebedouro ao lado do vestiário.
― Eu? É você quem está namorando, não eu.
― Você também estava até o início das férias – Morgana rebateu e em seguida riu com escárnio. – Como se isso tivesse te impedido de alguma coisa antes.
― Nunca impediu – Ronnie concordou. – Nem a você. Parece que encontramos nosso próximo prêmio para disputar, irmãzinha.
Morgana sentiu a irritação se alastrar pelas suas veias, consumindo-a célula por célula e impedindo sua mente de raciocinar direito. A garota era, sim, uma pessoa aparentemente inabalável, mas a situação mudava de figura quando se tratava do poder que sua irmã exercia sobre ela. Era algo que Morgana nunca foi capaz de controlar totalmente, embora tentasse desde sempre, como tinha que ser. Ela não tinha medo, ela não se intimidava, mas também não saía ilesa. Ronnie sempre arranjava um jeito de conseguir atingi-la, mesmo quando parecia impossível. E por mais doentio que parecesse, ela admirava a mais velha como a ninguém mais.
O relacionamento das irmãs Rassum era algo que, por mais que eu ou qualquer um tentasse entendem completamente, não era possível. Morgana, ao mesmo tempo que queria matar a outra, se sentia sempre atraída pelo poder dela, pela força que ela tinha e que mantinha a irmã presa no jogo que começou com o pai delas e agora não tinha mais controle. Ela amava Ronnie e a desprezava, fantasiava poder estrangulá-la, mas ela era a pessoa por quem Morgana faria qualquer coisa.
Seu coração se acelerou de raiva, com o sentimento venenoso que a contaminava e a fazia ser a sua versão mais perversa. Ronnie estava certa, afinal, sobre precisar ser uma cobra peçonhenta para sobreviver à própria família. Morgana era uma também.
― Não se trata disso dessa vez – Morg disse por fim, o que deixou Ronnie curiosa. – Eu não estou jogando com você.
― Ah, não? – cruzou os braços, provocativa. – E por que não?
Porque nem tudo o que eu tenho eu quero dividir com você, era o que ela provavelmente estava pensando, mas jamais diria. Jamais daria esse gostinho à irmã, mas Ronnie conseguia farejar fraqueza de longe. Ela esboçou um sorriso glorioso no rosto que fez Morgana querer bater com a raquete cem vezes na sua cabeça.
― Ora, ora, você quer o seu brinquedinho só pra você dessa vez, irmãzinha?
E lá estava Morgana novamente no jogo.
― Eu não preciso querer uma coisa dessas, irmã – disse, presunçosa e irritada. – Eu já tenho.
As duas sustentaram um olhar cheio de significado, um olhar que deixava cristalino como água a competitividade que havia entre aquelas duas garotas sem limites ou escrúpulos. Era algo palpável, a tensão que havia no ar entre as duas era o cimento que revestia a relação de amor e ódio, de disputa e inveja entre as duas. Era um carrossel do qual elas receberam o ticket de entrada, mas nenhuma sabia como descer e se ver livre, não sabiam mais como existir sem aquela constante corrida que degradava pouco a pouco toda a humanidade que havia dentro delas.
Verônica então deixou escapar uma risada rouca e seus olhos desvairados penetraram bem dentro dos da irmã mais nova quando ela disse:
― Isso é o que nós vamos ver.
Heyyyyyyyyy, folks!!! VIADO, NEM ACREDITO QUE TO POSTANDO ESSE CAPÍTULO, PARECIA UM SONHO IMPOSSÍVEL hahahahaha Pra ser sincera ela não ficou 100% como eu queria, ainda sinto que falta algo, mas se eu não terminasse logo e postasse isso só ia acontecer em 2018 *rindo de nervoso* To torcendo aqui pra vocês terem gostado mesmo assim <3
Antes de qualquer coisa, vamos falar sobre o nome do livro: Sim, eu mudei de Blasphemous Hampsher para Bem-vindo ao Paraíso. Isso pq o primeiro sempre foi um nome provisório, mas eu nunca consegui pensar em outro que tivesse a essência da história. Então resolvi usar a frase de efeito da sinopse, que pra mim caiu como uma luva! O que vocês acharam dessa mudança?
E o que vocês acharam da Morgana e da Ronnie???? Aposto que todo mundo estava esperando que o capítulo da Morg já fosse ser cheio das putaria (pq ela é dessas), mas trouxe primeiro esse relacionamento mais do que tóxico dela com a irmã mais velha, que é uma das coisas mais significativas sobre ela. A Ronnie, aliás, é uma personagem do meu conto na antologia Doze por Doze (que já contei pra vocês que é o conto onde acontece o mistério do trote dos formandos) e ela é MUITO LOUCA!!!! Vocês verão hahaha
Espero que vocês estejam gostando de tudo aqui e muito obrigada pela paciência, de verdade. Não é fácil escrever BH (vou continuar usando a sigla do nome antigo pq é mais forte do que eu) pq eu tenho que pensar bastante pra conseguir elaborar os capítulos, mas juro que não abandonei e nem irei abandonar <3333
A música de hoje é Confident - Justin Bieber.
Beijos e queijos, câmbio desligo.
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