III. Três
Havia uma cerimônia de boas-vindas sempre que os alunos do Blasphemous Hampsher voltavam das férias, fossem as de verão ou as de inverno. Essa era uma tradição que o internato orgulhosamente mantinha desde a sua inauguração, em fevereiro de 1885 – naquela época contando com a presença do grande Conde Thierry-Maxine Hampshér, o Fundador.
A história de como o Conde francês veio parar no Brasil era muito mal contada e ninguém nunca entendeu de verdade o que foi que aconteceu do outro lado do Atlântico para fazê-lo se mudar. Muitos duvidam até hoje de que esse seja seu verdadeiro nome e existem até mesmo aqueles que desconfiavam da sua linhagem na realeza – mas é claro que nós, seus orgulhosos discípulos, preferimos acreditar que sim.
Reza a lenda que no final do século XIX, na antiga França, o excêntrico Conde de Selarón se envolveu em um escândalo tão escandaloso que não sobraram alternativas à Igreja Católica a não ser o excomungar. Caso você não seja religioso ou não esteja familiarizado com tal palavra profana, é importante que fique bastante claro que a excomungação é a penitência máxima dentro do catolicismo. Citando o próprio dicionário da língua portuguesa, ser excomungado é não somente ser expulso do convívio religioso e banido da Igreja em si, como também ser amaldiçoado – com Satanás em pessoa o esperando nas portas do Inferno.
Portanto, ao ser enxotado para fora da Igreja, o Conde cuja alma foi condenada ao sofrimento eterno foi excluído da sociedade francesa como um todo, e marcado para sempre como Thierry-Maxine: O Blasfemo.
Muitos dizem que, consumido pela vergonha, o nobre homem empacotou toda a sua fortuna e veio para as terras tupiniquins com um amigo brasileiro (o filho de um senhor do café que foi mandado a Paris para estudar, como era a moda naquela época, e acabou caindo nas graças do Conde, se é que me entendem). Outros acreditam que Thierry tomou a sábia decisão de dizer adeus ao velho continente quando a notícia da excomungação começou a fazer com que ideias nada simpática surgissem entre os cidadãos da pequena cidade onde ele morava.
Não muito tempo atrás, naquela mesma França, reis haviam perdido suas cabeças. E Thierry-Maxine Bordoir Hampshér, o Conde de Selarón, não quis ficar por perto para ser o próximo.
Ele atracou no porto do Rio de Janeiro em 1881, sendo sua chegada anunciada até mesmo nos jornais. Poucas coisas eram mais atraentes no Brasil do século XIX do que um legítimo francês – fossem joias, vestimentas, livros ou pessoas – principalmente se a palavra "realeza" estivesse acompanhada. O próprio Dom Pedro II, Imperador de todo o Brasil, o convidou para um jantar de celebração em sua residência e assim o Conde foi apresentado à sociedade carioca da época.
Hampshér, como se já não bastasse, era uma figura extremamente carismática. Inteligente o suficiente para ser debochado sem que as pessoas ao redor que não estivessem atentas percebessem – e como ele gostava de rir desse mundo de panacas em que vivemos. Gostava, também, de gastar seu dinheiro desenfreadamente, e quando seu "amigo" brasileiro – aquele que conheceu (muito bem) em Paris – sugeriu ao Conde que fundasse ali no Rio uma escola que seguisse os padrões de ensino da França, o homem soube que era isso o que o destino o levara ali para fazer.
Ele era, afinal, um homem letrado, fluente em diversos idiomas e um eterno apaixonado pelas artes e pela extravagância. Não conseguiu, entretanto, não zombar consigo mesmo, e deu ao seu internato sofisticadamente francês o nome que o esconjurou para sempre:
Blasphématoire Hampshér. Blasphemous Hampsher.
Foi assim que, cento e vinte e cinco anos depois, em 2010, outro Hampshér estava sentado em uma das confortáveis poltronas da sala da diretoria, esperando o momento em que dariam início à cerimônia de boas-vindas.
Diferentemente do seu espirituoso e visionário antepassado, Pierre preferia não precisar passar por aquilo todos os anos, mas ser um representante vivo do homem que criou um lugar tão importante quanto o internato era maior do que os desejos do rapaz. Ele batia os dedos no braço da poltrona enquanto o diretor falava ao telefone com Jean-Luc Hampshér, que provavelmente havia ligado para se certificar de que o filho estaria presente.
Em uma das paredes cor de creme da sala, dentro de um quadro pintado a óleo com um metro e meio de altura, Thierry-Maxine encarava o descendente com um ar pomposo. Lá em baixo, no hall de entrada do prédio principal, havia outra pintura dele como essa e também um busto de bronze. Pierre sabia que o Conde sempre gostou de atenção, mas às vezes se perguntava se seu único intuito ao fundar o internato foi para ser adorado para sempre.
Talvez fosse a maneira dele de se vingar pelo exílio.
― Sim, senhor, entendo perfeitamente o procedimento – dizia o diretor, em uma educação polida e simpática que se usa apenas quando se fala com alguém reconhecidamente mais poderoso. Ele encarou Pierre, balançando a cabeça enquanto ouvia atentamente. – Ele está aqui diante de mim, não foi preciso.
Uma das pontas dos lábios do rapaz se curvou milimetricamente para cima, pois ele podia até mesmo ouvir as palavras do seu pai com precisão em sua mente. "Use a força se for necessário para tirá-lo daquele quarto. Chame os seguranças. Ele estará na cerimônia por bem ou por mal". Era esse o tipo de pessoa que Jean-Luc era; preocupado em manter as tradições e as boas maneiras. Havia sempre um Hampshér para dar as boas-vindas aos alunos em cento e vinte e cinco anos de história e isso não mudaria hoje.
― Nós encontraremos o Sr. Ferreira no auditório, os alunos já devem estar todos indo para lá agora mesmo – o diretor continuou a dizer, mas a essa altura já tinha perdido a atenção de Pierre novamente. Mais uma vez lá estava o rapaz mergulhado em seu tédio profundo pelo mundo, tão mergulhado que às vezes parecia que ele não estava mais entre nós.
Pierre era o que podia se chamar de uma pessoa peculiar, com todos os seus silêncios e longos olhares que deixavam as pessoas ao redor desconfortáveis. Ele era exatamente o tipo de gente que causava incômodo e fazia isso de propósito, pois de que outra maneira o descendente de Thierry-Maxine passaria despercebido se não fizesse as pessoas quererem isso também?
Sua família vivia às custas da impressão que causava na sociedade, responsáveis por manter o bom nome do Blasphemous Hampsher intacto e não deixar o legado do Conde morrer. O rapaz foi ensinado desde que era um bebê a como agradar os demais, como sorrir educadamente e entender o que os outros queriam ouvir para poder dizer em seguida. Seu pai, Jean-Luc, era um homem conservador e que muitas vezes parecia ainda viver no passado, sempre às sombras do Conde, se alimentando da glória que viera com ele da França.
Mas Pierre Hampshér, embora buscasse sempre se manter o mais neutro possível, odiava ser apenas a sombra de um grande homem que viveu mais de cem anos atrás.
Desde que era um bebê, ele não era uma pessoa inteira, um ser humano com desejos e aspirações. Ele era apenas o herdeiro de tudo aquilo que a alta classe ansiava para seus filhos, o dono do castelo onde os príncipes eram mandados para receberem um selo de aprovação na testa. Pierre não era Pierre, era apenas a nova geração dos Hampshér, e aos poucos ele acabou usando a sua falta de identidade a seu favor.
Mas aí está uma verdade sobre as pessoas aparentemente quietas do Blasphemous Hampsher: normalmente elas são as mais traiçoeiras. E Pierre Hampshér, ah, esse daí nunca me enganou.
Ele parou de bater os dedos compridos no braço da poltrona quando o diretor desligou o telefone. O homem se levantou da sua cadeira e Pierre demorou um segundo a mais para fazer o mesmo. Ele suspirou, os cabelos escuros precisando de um corte. Tudo em Pierre inspirava soturnidade, desde sua pele quase translúcida até os olhos muito pretos.
― Vamos andando, Sr. Hampshér, o Sr. Ferreira está nos esperando para começarmos isso de uma vez antes que seu pai apareça aqui de helicóptero.
Tudo o que ele conseguia pensar era que não era – nem de longe – o homem certo para nada daquilo. Mas levantou-se mesmo assim e foi ouvindo em silêncio o diretor falar suas baboseiras habituais durante todo o caminho até o auditório. Eles encontraram Derek Ferreira e trocaram apertos de mão, como dizia o protocolo, e o diretor direcionou sua tagarelice ao último.
Derek sim era exatamente o tipo de homem que dominava com excelência a arte de ficar de pé em cima de um palco fingindo simpatia, sorrindo para seus colegas com compostura, exibindo um olhar de liderança. Ele era o "garoto de ouro" desde que pisara seus pés nos Blasphemous Hampsher, o presidente do Grêmio Estudantil, e todos sabiam que a política não estava apenas na linhagem da sua família, mas no seu próprio DNA.
Pierre nunca dedicou quase nenhum segundo do seu tempo a pensar sobre Derek e toda sua perfeição construída, mas agora, ao encarar o rapaz pela primeira vez depois do surpreendente último dia de aula antes das férias, o Hampshér sentiu alguma coisa rachar.
Os dois trocaram um olhar tenso, mas Derek parecia apenas o esqueleto da pessoa que já foi um dia. Ele sorriu, como mandava o script, mas qualquer um que tenha testemunhado o que Pierre testemunhou naquela noite fatídica, reconheceria a destruição em seus olhos.
E Pierre, que passou as últimas três semanas tentando não sentir absolutamente nada, não pensar em absolutamente nada, não foi capaz de evitar o arrepio subindo pela sua espinha.
Porque embora o rapaz tentasse sempre passar despercebido, havia coisas que não poderiam ser desvistas e notícias que não poderiam ser ignoradas, por mais que ele quisesse.
O que ninguém queria era estar ali no auditório naquela manhã, nem mesmo o diretor Silvestre. Por isso fizeram com que a cerimônia acontecesse o mais rápido possível. O hino da escola foi tocado, o direito fez seu discurso, Derek acenou como um bom menino, mas sem conseguir disfarçar sua decadência.
E Pierre, bem, ele estava lá.
Parado, percebendo o tempo passar de uma maneira estranha, ouvindo o nome do seu tatatataravô ser mencionado pela milésima, a bola de chiclete de alguém estourar ao fundo, um celular vibrar no bolso do garoto do primeiro ano na primeira fila. Ele sentia um peso estranho dentro do peito, um que não sabia exatamente de onde vinha e não o deixara desligar a mente totalmente naquele dia. Quando menos esperou, todos estavam de pé batendo palmas, anunciando o final da cerimônia e ansiosos para saírem dali. Ele piscou seus olhos negros algumas vezes, e o mundo, que pareceu em câmera lenta por um instante, voltou à velocidade normal.
Os alunos seguiram para suas salas, agora falando alto uns com os outros. Eu me lembro bem que, naquela manhã, o assunto na boca de todos era a aparência de Derek e o que teria acontecido com ele. Boatos circulavam sobre o Presidente do Grêmio ter tido um surto mental durante as férias de inverno e até mesmo tentado se matar, havia vários comentários sobre o caso na revista de fofoca eletrônica do colégio, mas ninguém acreditara totalmente, até que puderam vê-lo com os próprios olhos.
Pierre passou pelas pessoas às pressas, desviando das conversas com os fones ligados. Ele foi um dos primeiros a chegar na sala de aula do terceiro ano, ainda se sentindo esquisito. Normalmente se sentaria no lugar de sempre, onde Duque e César o encontrariam e conversariam um com o outro enquanto Pierre fingia estar interessado. Normalmente ele teria simplesmente se deixado levar pelo seu tédio patológico, mas nada parecia muito normal. Ao invés disso, naquele dia, ele não seguiu até o final da sala, mas tirou os fones do ouvido e se sentou logo atrás da garota que ocupava a primeira carteira.
Ela fingiu que nada havia acontecido e continuou escrevendo em seu caderno, mas ele soube pelo modo como suas costas ficaram eretas que a garota havia sido pega desprevenida.
― Alice – ele disse, a voz grave sempre uma surpresa quando era usada. Pierre não sabia o que estava fazendo ali, ele não era uma pessoa impulsiva. Mas a imagem de Derek o fez lembrar de coisas que não queria.
Alice von Muhlen estava dando o seu melhor para ignorar o fato de que ele havia sentado ali e considerou fingir que estava surda para ver se ele iria embora. Foi uma estratégia que durou apenas poucos segundos, entretanto, pois logo em seguida a garota sentiu a mão de Pierre sobre o seu ombro.
Ela se encolheu e ele retirou a mão como se a tivesse queimado. Alice se virou para trás e, quando seu olhar se encontrou com o de Pierre naquela manhã, o impacto foi glacial.
Ela não disse nada e Pierre ficou encarando como se, por um momento, tivesse se esquecido de como era o rosto dela e só agora a memória estivesse voltando. Eles estavam todos os dias juntos na sala de aula e passavam pelos mesmos corredores do internato, mas a última conversa que tiveram, a última vez em que se olharam nos olhos de verdade, foi antes do ano novo.
― Como você está? – ele perguntou. Havia sinceridade em suas palavras, mas Alice não conseguia ouvir. Ela não conseguia sequer acreditar que Pierre estava falando com ela como se nada tivesse acontecido. – Sobre a Clarice – emendou.
Ela sabia.
Engoliu em seco, o coração batendo acelerado. Pensou por um minuto no que poderia dizer a ele, mas a única coisa que inundava sua mente era:
― Não finja que você está interessado em alguma coisa além de si mesmo, Pierre.
Curta e grossa.
Ele ficou quieto. Sabia que merecia aquilo e não tinha a intenção de desmentir. Ele sabia que Alice o achava um idiota, mas não poderia fingir que não estava preocupado com ela. Primeiro porque ele a conhecia bem o suficiente para ter certeza de que a garota estava à beira de um colapso. Segundo porque ela estava certa, ele era sim egoísta e apático, e poucas foram as vezes em que de fato se importou com outro alguém.
Pierre Hampshér estava tão mergulhado dentro do próprio tédio que a vida como um todo era apenas um borrão com um senso de humor amargo.
― Eu não finjo – disse ele. – Não gasto minha energia à toa e você sabe disso.
Alice soltou uma risada de escárnio e se virou para frente de novo, certa de que havia perdido seu tempo ao dirigir qualquer palavra que fosse a ele.
― Vai embora, Pierre.
Ele pensou em um monte de coisas que poderia dizer naquele momento, mas nenhuma delas parecia certa ou pertinente. Ao invés disso, descansou as costas na carteira confortável e colocou seus fones no ouvido de novo enquanto seus outros colegas de turma entravam e enchiam a sala aos poucos. Ele se lembrou de como os dois costumavam ser próximos, de como Alice era a única pessoa com quem ele conseguia conversar com sinceridade e sentiu algo se remexer.
Pierre mesmo não entendia porque estava tentando conversar agora, já que nenhum dos dois era bom com as palavras e havia uma história longa que deixava tudo ainda mais complicado. Ele não se lembrava do motivo real pelo qual ele e Alice tinham deixado de ser amigos, mas tinha certeza de que era sua culpa. Entretanto agora tudo parecia tão distorcido, com a expulsão de Clarice e as coisas que o rapaz havia visto, que a única coisa que ele desejava era sentar em silêncio perto da amiga de infância. Não queria que ela dissesse nada, nem que se importasse se ele estava ali ou não ou que estivesse prestando atenção.
Pierre precisava apenas encarar o cabelo loiro dela batendo na gola do blazer azul marinho do uniforme, enquanto sua música tocava nos ouvidos e ele respirava sem fazer barulho. Talvez aquela fosse a sua tentativa de se agarrar a uma imagem que fosse familiar, que o trouxesse de volta para a normalidade, mesmo que ela fosse a sua preguiça de estar vivo e os seus pensamentos maldosos sobre as pessoas ao redor. Ele sempre foi capaz de apenas observar o circo pegando fogo sem se importar com nada do que acabasse sendo queimado, mas nem mesmo Pierre era capaz de ignorar tudo.
Nem mesmo Pierre conseguiu ficar imune às coisas que aconteceram naquele inverno.
No mundo do Blasphemous Hampsher, os incêndios catastróficos faziam parte da rotina. Eles eram tudo o que movia a vida da alta sociedade e tudo o que o pai de Pierre tentava evitar fervorosamente. Os Hampshér eram conciliadores, facilitadores, os responsáveis pelo mantimento da ordem e do prestígio – eles eram aquilo que o rapaz menos queria ser.
Então Pierre, que geralmente evitava todos os tipos de conflitos, fosse para ser o causador ou o apaziguador, abriu a boca novamente, se aproximou das costas da ex-amiga, e disse:
― Eu não sei o que você vai fazer quanto a essa situação, mas se precisar de alguma ajuda, qualquer ajuda, pode contar comigo.
Olha elaaaaaaaaaaaaaaaaaaa! Isso não é uma miragem, eu tô realmente postando BH de novo em menos de 1 semana. Seriam meu sonho? NÃO, É REALIDADE HAHAHAHA Aproveitem esse momento pq nunca se sabe quando vai se repetir *rindo de nervoso*
Eu lembro que na época que postei as matérias do Holy Shit! o Pierre fez MUITO sucesso entre vcs (coisa que eu nem esperava), então espero que tenham gostado desse capítulo do meu filho entediado. Deu pra conhecer um pouquinho sobre ele, sobre o colégio (amém, Conde Hampshér!) e um pouco mais sobre os mistérios da história, né? Algum palpite de quem será o próximo protagonista a ser apresentado? Ainda falta o Duque, a Morg e o Bash.
A música do capítulo foi Bored - Billie Eilish.
Beijos e queijos, câmbio desligo.
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