II. Dois
Pode ser difícil de acreditar, mas nos primeiros anos de existência, o Blasphemous Hampsher era o colégio para onde as famílias tradicionais brasileiras mandavam seus filhos rebeldes para serem disciplinados. Ser aluno do BH era uma espécie de estigma que já deixava claro perante toda a sociedade que você não era flor que se cheire, e que a sua família preferia se livrar de você a ter que lidar contigo.
Em outras palavras, quem estudava no BH não se encaixava – embora aquela segunda afirmação seja algo que aconteça até hoje. Muitos de nós foram jogados no internato não só por causa do prestígio que ele traz consigo, mas porque estar lá significa estar longe de casa.
O mundo, é claro, dá muitas voltas, e o Blasphemous Hampsher não é mais conhecido por ser um reformatório de sociopatas juvenis. Acabou virando moda enviar seus filhos para lá e, em pouco tempo, fazer parte do colégio se tornou uma grande honra que nem todos conseguiam alcançar.
É difícil pensar, mesmo assim, em pessoas que escolheram ir para o BH por vontade própria e não porque era o esperado pela sua família. Há muitos legados na história do internato, aquelas famílias que sempre estiveram do lado de dentro dos portões de ouro e passam a responsabilidade de manter esta enorme honra de geração a geração.
Quem é que não conhece, afinal, a tríade soberana formada pelos Verucca, os Barrington e os von Muhlen?
Junto com os Hampshér, que carregam o colégio no próprio nome, eles são sempre criados juntos, velhos conhecidos desde o berço, graças a uma união que teve início dentro do BH nos anos vinte. É claro que nem sempre os filhos dessas famílias se dão bem como os inseparáveis Luigi Verucca, Anette Barrington e Klaus von Muhlen (os precursores), mas eles são todos inegavelmente farinha do mesmo saco.
Mais do que o afeto, o que une as pessoas do meu ciclo social é o poder e a tradição. Os laços de sangue e de nome são muito mais fortes do que se pode imaginar e nem mesmo os mais transgressores são capazes de rompê-los com facilidade. Eu mesmo nunca fui.
Então lá estávamos nós, debaixo dos nossos uniformes listrados, azuis e marrons como super-heróis nada disfarçados. Mas nem todos os alunos do colégio vinham de ilustres famílias, como se podia imaginar. O mundo realmente dava voltas e ninguém melhor do que Maria Eugênia Barros para comprovar esta afirmação.
Se alguém conhecia os Barros? Oh, não, eles não eram os von Muhlen. Muito menos os Verucca! Havia muito dinheiro em suas contas bancárias e eles se tornaram os sócios majoritários da maior rede de televisão aberta do país em um golpe de sorte e também de malandragem. Se havia algo que os Barros dominavam como ninguém era na arte de se dar bem na vida, que levou a nossa incomparável Mel Barr – como ela mesma decidiu que seria chamada – até o topo.
Confesso que sempre achei curiosa a obsessão das pessoas pelo prestígio. Os Barros viviam para isso, para serem convidados às festas mais distintas, participarem dos clubes mais exclusivos, respirarem o mesmo ar que as famílias tradicionais que comandavam a vida social da elite brasileira. Aposto que o dia em que a Sra. Barros foi convidada para tomar chá com as Esposas (apelido carinhoso para as socialites que nada faziam além de fofocar e dar festas. Dado por mim, é claro) foi o mais feliz da sua deprimente existência. Ela tentava tanto parecer como elas, falar como elas, ser uma delas. Mas da mesma maneira que o sapatinho não servia nas irmãs da Cinderela, não importava o quanto tentassem, a Sra. Barros jamais seria em cinco anos algo que uma mulher von Muhlen aprendeu a ser desde que nasceu.
Ela não era uma pessoa muito inteligente, para ser sincero. Sempre a achei imensamente divertida porque seus esforços só a tornavam mais ainda uma verdadeira piada. Ela era, também, bonita demais para conseguir cair nas graças daquelas mulheres de meia idade invejosas, e quase me fazia sentir pena.
Quase.
Maria Eugênia, por outro lado, havia herdado a inteligência do seu pai trambiqueiro. O Sr. Barros aprendeu rápido como jogar o jogo e por isso conseguiu chegar aonde estava hoje. Um bom jogador é aquele que analisa as regras e os outros jogadores, que entende todos os movimentos no tabuleiro e consegue transformá-lo a seu favor. Ele não tenta ser aquilo que não é para se encaixar, mas faz o universo ao seu redor se adaptar a quem ele é. Não era à toa que Mel Barr havia se tornado a princesa do Blasphemous Hampsher mesmo sendo, na verdade, uma plebeia. Sua família não tinha um nome forte, seu dinheiro era muito novo comparado às fortunas centenárias de certos outros, mas foi com esse mesmo dinheiro, com o seu carisma e a sua esperteza, que a garota conseguiu comprar a sua posição.
Passo número um: faça boas conexões imediatamente.
Ela estava terminando de colocar o uniforme. As malas das suas colegas de quarto estavam espalhadas pelo chão e Mel procurava alguma coisa sua na bolsinha de maquiagem. Sorriu quando encontrou o rímel impermeável e se virou imediatamente para voltar ao banheiro do quarto, mas quase teve um enfarte de susto quando deu de cara com um homem tentando invadir o aposento pela janela.
Ela levou as mãos ao peito, suspirando de alívio quando notou de quem se tratava. O rapaz sorria para ela, daquele seu jeito travesso e sensual que fazia Mel borbulhar por dentro. Bateu na janela pelo lado de fora, se segurando pelo parapeito largo. As janelas dos dormitórios eram altas, quase do tamanho de uma pessoa – como se as estivesse convidando para entrar.
Mel foi até o encontro do garoto e abriu o vidro; ele pulou para dentro e na mesma hora passou seus braços pelo corpo da menina, beijando seu pescoço com luxúria, apertando-a contra si como um garoto que acabou de assistir um filme erótico e foi correndo para sua mulher.
Em se tratando de César Clarencer, era bem provável que tenha sido isso mesmo.
― O que você tá fazendo aqui? – Mel perguntou entre os beijos que o namorado a dava tão apaixonadamente. Ela o adorava, mas adorava mais ainda o fato de que ela era a sua rainha (ou assim achava). César Clarencer era exatamente o príncipe encantado que a garota sonhou em ter na vida: rico, muito bem educado, doce e lindo de morrer. Ele era o sonho de consumo de muita gente dentro do BH, a idealização do namorado perfeito, que mais parecia um acessório do que uma pessoa de carne e osso.
César era algo que as pessoas queriam ter.
Ele piscou os cílios negros dos olhos muito azuis para a namorada e deu um outro beijo nela antes de responder.
― A Morg disse que você já tinha chegado então vim te dar as boas-vindas como tem que ser – respondeu. Ele era um rapaz carinhoso, mas aquele comportamento impulsivo parecia além do seu habitual. Mel estranhou, mas não achou que fosse algo negativo, dadas as circunstâncias. Ele sorriu, subindo as mãos pelo corpo dela sem nenhum constrangimento. – Morg andou conversando comigo sobre algumas coisas – continuou, malicioso e eufórico.
Mel paralisou e a cor sumiu do seu rosto de um jeito que apenas as pessoas que têm algo a dever fazem. É claro que César estava ocupado demais lambendo o pescoço da namorada para perceber que não era mais pelo toque dele que o coração dela estava a mil. Ela o afastou, recompondo-se antes de perguntar:
― Ah é? O que foi que ela disse?
Antes que César pudesse responder, a porta do quarto foi aberta. Ele pulou para longe da garota e ela o ajudou a se enfiar debaixo da primeira cama que avistaram (a de Morgana) enquanto a outra colega de quarto de Mel adentrava o cômodo.
Natasha Verucca (como ela gostava de ser chamada, embora seu nome verdadeiro fosse Carmela. Ninguém podia julgá-la) encarou Mel com desconfiança, carrancuda como ela sempre parecia estar quando tinha que lidar com a garota. Ela era a pessoa mais desagradável com quem Mel já tiveram que lidar e as duas se detestavam.
― O que você está escondendo, Maria Palito? – Natasha perguntou, cruzando os braços e caminhando até onde Mel estava. Ela estourou um chiclete e mapeou o quarto com os olhos, à procura de algo errado. Conhecendo Natasha como eu conheço, aquele teria sido o ponto alto do seu dia se encontrasse.
― Não tem nada que te interesse aqui, Aberração – Maria respondeu à altura. Se Natasha encontrasse César ali, com certeza ela estaria ferrada. Era contra as regras, afinal, que garotos entrassem no quarto, mas Mel não deixou transparecer sua insegurança em nenhum momento.
Ela pegou o rímel que tinha deixado em cima da mesinha de cabeceira e foi até o banheiro terminar sua maquiagem, como se nada tivesse acontecido. Torceu para que César não fizesse nenhum barulho, ou que Natasha não cismasse de olhar debaixo da cama, e ficou alerta a cada movimento dentro do quarto, mesmo que seu teatrinho a fizesse parecer a pessoa mais concentrada do mundo na maquiagem.
Não há nenhuma dúvida de que Mel Barr era uma exímia manipuladora.
Natasha até começou a procurar por esqueletos no armário, mas ela estava com pressa demais para aquilo agora. Pegou alguma coisa dentro de uma das suas malas bagunçadas e saiu do quarto de novo, batendo a porta e mandando Mel ir se ferrar (em uma linguagem mais chula do que essa, tenha certeza).
César saiu do esconderijo no mesmo momento e Mel, aliviada, correu de encontro ao namorado.
― Achei que ela fosse me encontrar – disse ele, ainda apreensivo. – Ela quase bisbilhotou debaixo da cama. Garota esquisita, qual o problema dela?
Mel suspirou, revirando os olhos.
― Ela é uma retardada. Mas é melhor você sair daqui logo, antes que a Chuck volte.
Ele assentiu, querendo ir embora mesmo.
― Tá bom. Me encontra na cafeteria quando terminar.
O rapaz deu um selinho na namorada e saiu pela janela da mesma maneira que havia entrado. Foi só então que Mel conseguiu respirar direito; caiu sentada em cima da cama, a mente trabalhando no que César tinha dito antes. O que será que Morgana andava dizendo para ele? Será que ela sabia?
Não tinha como ela saber... Tinha?
Maria Eugênia sentiu um calafrio de medo e remorso por todo o corpo.
Há semanas ela tentava lidar com o que aconteceu, tentava achar uma solução para o problema que trouxera para si mesma e não conseguia se perdoar por ter sido tão burra. Ela podia perder tudo por causa de uma atitude impulsiva, por causa de uma maldição que ela mesma deixou entrar.
Mel balançou a cabeça, determinada a tirar isso da mente antes que enlouquecesse, e a ir terminar de se arrumar. Ela precisava estar impecável quando aparecesse nos corredores do BH porque tinha uma reputação a zelar, um nome a defender. Talvez os Barros não fossem uma família tão importante quanto os Barrington, mas ela era a primeira e única Mel Barr.
Todos os olhares a seguiam enquanto ela descia as escadas do dormitório e caminhava em direção à cafeteria, no prédio principal. Ela estufou o peito e dava seus passos de supermodelo com uma confiança invejável, sem um movimento sequer de hesitação no quanto era maravilhosa. É assim, ela pensou, que as pessoas se convencem disso também.
Quando chegou ao seu destino, porém, a garota poderosa precisou de um minuto a mais para ter coragem de ir até aonde seu namorado estava, sentado na mesa com seu grupo de amigos de sempre. Morgana foi a primeira a vê-la e acenar para ela. Então o olhar de Mel se cruzou com os de Lucas Alexander Colón-Barrington e Pierre Hampshér.
Ronnie, irmã de Morgana, também estava ali, e normalmente seu namorado Olavo e o amigo Ricardo completavam o time. Mas não dessa vez; não desde o trote do terceiro ano em que todos eles estiveram – exceto Morgana e Mel, que ainda eram segundanistas.
Mel engoliu em seco, e desviou o olhar na mesma hora quando Lucas sorriu para ela. A garota caminhou até onde os amigos estavam e sorriu como se fosse a rainha de todo o universo, a Cleópatra do mundo moderno, brilhando com a pele embainhada a ouro e uma sucessão de súditos fervorosos.
Ela puxou uma cadeira como se não existisse nada na sua cabeça além dos cabelos castanhos e sedosos, como se, por dentro, ela não estivesse a beira de um ataque de nervos. E disse:
― E aí, suckers. Não precisam mais chorar a minha ausência. O que foi que eu perdi?
Hey, folks!!!!! Finalmente consegui terminar esse capítulo e EU QUERO AGRADECER NÃO SÓ A DEUS, MAS A JESUS *coros de aleluia*
O que vocês acharam da menina mel??? Ela é bem diferente da Alice, mas tão poderosa quanto, e já chegou com disposição hahaha dou um beijo em quem acertar qual é o segredo dela!
A música do capítulo é Popular - The Veronicas. Espero que vcs estejam gostando do livro <3
Beijos e queijos, câmbio desligo.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro